Lugar da EJA na BNCC
O NÃO LUGAR DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NA BNCC
Roberto Catelli Jr. Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo e doutor em Educação pela FE-USP. É coordenador do Programa Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa e coordenador dos cursos de Educação Profissional do Colégio Santa Cruz.
Na primeira versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), lançada em 2015, chamou atenção a ausência de qualquer formulação referente à Educação de Jovens e Adultos (EJA), que é uma modalidade da Educação Básica. O texto limita-se a informar que determinados eixos e conteúdos se aplicam a crianças, jovens e adultos. Não há qualquer reflexão sobre a especificidade da modalidade tendo em vista os seus sujeitos.
Essa ausência tornou-se tema de debate em encontros com educadores da Educação de Jovens e Adultos em diferentes contextos. Ficou evidente que a BNCC, tal qual estava sendo proposta, era inadequada ao público da EJA. Ainda que se pudesse pensar que os conteúdos destinados a todas as pessoas que se certificam nas diferentes modalidades da Educação Básica deveriam ser os mesmos, garantindo-se a todos os mesmos direitos de aprendizagem – para usar os mesmos termos da BNCC – há outros elementos que precisam ser considerados para a garantia da equidade.
Primeiramente, não havia nenhum texto que problematizasse a especificidade da modalidade tendo em conta a diversidade de sujeitos que se matriculam nas escolas de EJA de todo o país. Seria necessário que se realizasse alguma reflexão com base nas experiências e conhecimentos já produzidos, sobre qual currículo seria adequado para pessoas que deixaram a escola e retornam a ela na fase adulta, tendo já acumulado experiências e aprendizagens significativas nos âmbitos pessoal e profissional.
Sabemos que não faz sentido reproduzir um mesmo rol de conteúdos desenvolvidos ao longo de anos para crianças e adolescentes, uma vez que estas etapas já não se fazem da mesma forma necessárias para a aprendizagens de adultos, que não precisam aprender da mesma forma que as crianças. A pergunta que deveria ser colocada é: quais são os conteúdos necessários para que adultos avancem em seus estudos e possam ampliar suas perspectivas pessoais e profissionais? Que percurso curricular deve ser construído para tanto, levando-se em conta os diferentes sujeitos da EJA?
Grande parte dos educandos da Educação de Jovens e Adultos são pessoas de muito baixa renda que já viveram sucessivas situações de exclusão, que pode ter relação com aspectos raciais, de gênero ou de falta de condições mínimas para permanecer na escola quando eram crianças. Como fazer essas pessoas terem novas oportunidades educativas ampliando suas possibilidades de alcançar novos projetos pessoais? A Base Nacional Comum Curricular não poderia se furtar a minimamente propor esta reflexão sobre os caminhos da construção de currículos para esse público que, enquanto demanda educacional, abrange dezenas de milhões de brasileiros que deixaram de frequentar a escola.
Na segunda versão da BNCC, lançada em abril de 2016, houve algum esforço para incluir a EJA no texto curricular. Entretanto, a solução encontrada foi bastante artificial. Onde antes se lia “crianças e adolescentes”, passou a figurar “crianças, adolescentes, jovens e adultos”. Na prática, essa inclusão só ampliou um problema já existente, pois tornou ainda mais homogêneo o currículo, desconsiderando qualquer especificidade da Educação de Jovens e Adultos.
As modalidades da Educação Básica mereceriam pelo menos um capítulo especial que se dedicasse a problematizar essa especificidade, ou talvez, que reconhecesse que essa BNCC não se aplica a essa modalidade e que deveria ser produzido documento específico.
A solução encontrada apenas endossa o significado marginal da política de Educação de Jovens e Adultos no país, que com poucos recursos e baixo interesse de muitas gestões públicas, continua a fortalecer a ideia de que basta educar as crianças para, em um futuro próximo, extinguir naturalmente a EJA. Ocorre, entretanto, que grande parte do público da Educação de Jovens e Adultos são as crianças e jovens que entram na escola e que, por diferentes caminhos no caso brasileiro, são excluídas, tornandose público da EJA. Da mesma forma, insiste-se em buscar educar os filhos sem olhar para as famílias, quando vários estudos, dentre eles o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), mostram que filhos de pais escolarizados têm maior chance de terem um melhor nível de alfabetismo e de progredir nos estudos.
Na terceira versão da BNCC para o Ensino Fundamental, a EJA deixou de ser mencionada novamente, indicando que este documento não se aplicaria a esta modalidade. Com isso, a Base parece reconhecer a sua inadequação para a modalidade, sem realizar, contudo, qualquer outra proposição, tornando a EJA ainda mais marginal, uma vez que ela nem mesmo se insere no conjunto das políticas educacionais para a Educação Básica. Em abril de 2018 foi lançada uma nova versão da BNCC para o Ensino Médio e nela se repete o que ocorreu na última versão para o Ensino Fundamental: a completa ausência da EJA.
No texto introdutório menciona- se as várias modalidades em uma breve passagem, mas ao longo das propostas desenvolvidas para as áreas e componentes curriculares não há mais qualquer menção à modalidade.
Neste contexto, cabe perguntar então qual o lugar da Educação de Jovens e Adultos em um país em que cerca da metade da população com 15 anos ou mais não concluiu nem mesmo o Ensino Fundamental. Como se espera sanar esta grande dívida social sem que se estabeleça uma política pública para a modalidade?
Evidentemente, a inclusão da EJA na BNCC não seria de pronto a solução para que tivéssemos avanços significativos na modalidade. Entretanto, a ausência completa de propostas e o esvaziamento da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do MEC (SECADI/MEC) a partir de 2016, com a chegada de Michel Temer à presidência, vêm apenas reforçando o lugar marginal da Educação de Jovens e Adultos no país.
Um passo a mais nessa direção se estabeleceu com a decisão do Conselho Nacional de Educação, de fins de 2018, que permite que 80% da carga definida para a Educação de Jovens e Adultos possa ser cumprida a distância. A Educação a Distância deve ser mais uma opção a ser oferecida aos jovens e adultos, levando em conta a diversidade de sujeitos e condições para retomar os estudos. Entretanto, o que se avizinha é a possibilidade de fazer cursos ainda mais baratos com participação da iniciativa privada e a redução da oferta de vagas em cursos presenciais para jovens e adultos nas redes públicas.
Em muitas redes estaduais brasileiras assistimos a um processo de redução de matrículas, fechamento de turmas e investimentos cada vez menores na modalidade. Em 2007, o Brasil tinha 4.985.338 matrículas na EJA, que se reduziu para 3.598.716 em 2017. Em alguns estados, como São Paulo, a redução é ainda mais acelerada, pois em 2007 eram 930.948 estudantes e, em 2017, 446.449, ou seja, menos da metade do que havia dez anos antes, conforme os dados do Censo Escolar.
Do ponto de vista curricular, os estudos recentes vêm indicando que não será possível avançar na Educação de Jovens e Adultos sem que se avance na construção de um currículo identificado com a diversidade de sujeitos demandantes da modalidade. Conforme indica Maria Clara Di Pierro:
O recuo na procura pelos cursos é atribuído pelos analistas, sobretudo, à precariedade e inadequação da oferta – considerada pouco atrativa e relevante, devido à abordagem estritamente setorial, ao despreparo dos docentes, aos rígidos modelos de organização do tempo e espaço escolar, e à desconexão dos currículos com as necessidades de aprendizagem dos jovens, adultos e idosos. (2017, p. 10)
O que se evidencia é que, para além de orientações curriculares nacionais específicas que poderiam ser produzidas pelo governo federal para ampliar o diálogo sobre a modalidade, é necessário que se constituam meios para que em cada um dos municípios brasileiros se possa criar uma rede educacional para jovens e adultos que esteja preparada para atender à diversidade de públicos e leve em conta também as pretensões de jovens e adultos ao retomar os estudos.
É necessário que seja possível atender populações ribeirinhas, trabalhadores rurais e urbanos, jovens que foram expulsos do sistema regular, infratores, mães que abandonaram os estudos para cuidar dos filhos, idosos, população LGBT, enfim, todos aqueles que tiveram seu direito à educação cerceado em diversos contextos.
Para isso, certamente, a BNCC terá pouca serventia, pois é preciso definir currículos localmente, abrindo mão dos conteúdos convencionais das escolas para escolher aqueles que melhor possam fazer com que estes diversos sujeitos possam de fato avançar em suas possibilidades em termos pessoais e profissionais.
Nesse sentido, vale mencionar um dos conceitos relacionados aos direitos humanos, que Katerina Tomasevski define como adaptabilidade. Segundo ela, não são os sujeitos que devem se adaptar às instituições e às políticas, mas o inverso, ou seja, as instituições precisam criar propostas e programas que se adaptem às possibilidades e às condições de vida dos sujeitos. Caso isso não ocorra, estaremos sempre promovendo a exclusão (TOMASEVISKI, 2006).
Neste sentido, a Educação de Jovens e Adultos poderia se aproximar de alguns dos pressupostos da educação popular, que, sem estar preocupada com a escolaridade formal, propõe o diálogo com os educandos e considera suas demandas como princípio educativo.
A educação popular pugna pela valorização das experiências de vida e dos saberes dos jovens e adultos, pelo diálogo entre professor e aluno, pela relação entre os saberes científicos e populares, pela adoção de metodologias ativas, críticas, criativas, investigativas e problematizadoras. (MOTA NETO, 2017, p. 155)
Paulo Freire também realiza esta conexão entre a educação popular e a Educação de Jovens e Adultos, na perspectiva de que não é possível realizá-la sem levar em conta as especificidades de seus sujeitos.
Não é possível a educadoras e educadores pensar apenas os procedimentos didáticos e os conteúdos a serem ensinados aos grupos populares. Os próprios conteúdos a serem ensinados não podem ser totalmente estranhos àquela cotidianidade. O que acontece, no meio popular, nas periferias das cidades, nos campos – trabalhadores urbanos e rurais reunindose para rezar ou para discutir seus direitos –, nada pode escapar à curiosidade arguta dos educadores envolvidos na prática da Educação Popular. (FREIRE, 2001, p. 16)
Assim, é necessário que educadores da EJA se mobilizem e tomem posição para construir uma Educação de Jovens e Adultos que esteja a serviço do desenvolvimento de jovens e adultos com aspirações diversas: ingressar em uma universidade, melhorar suas possibilidades de inserção no mercado de trabalho ou avançar em sua aprendizagem para ampliar sua participação na sociedade. Para tanto, sabemos que a Base Nacional Comum Curricular tem pouco a contribuir. Entretanto, a ausência da modalidade dos documentos curriculares também expressa um descaso com esta enorme fatia da população que vem tendo historicamente cerceado o seu direito à educação em algum momento da vida.
REFERÊNCIAS
AÇÃO EDUCATIVA; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. INAF Brasil 2018: Resultados preliminares. São Paulo: Ação Educativa / IPM, 2018. Disponível em:
DI PIERRO, M. C. (Coord.). Centros públicos de educação de jovens e adultos no estado de São Paulo. São Paulo: FEUSP, 2017. Disponível em: <www.livrosabertos.sibi.usp.br/portalde livrosUSP/catalog/download/148/127/6381?inline=1>. Acesso em: 30 nov. 2018. FREIRE, P. Política e educação. São Paulo: Cortez, 2001. Disponível em: <forumeja.org.br/ files/PoliticaeEducacao.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2018.
MOTA NETO, J. C. A educação popular e o desenvolvimento de propostas pedagógicas na Educação de Jovens e Adultos. In: CATELLI JR., R. (Org.). Formação e práticas na Educação de Jovens e Adultos. São Paulo: Ação Educativa, 2017.
TOMASEVSKI, K. Por que a educação não é gratuita? In: HADDAD, S.; GRACIANO, M. (Org.). A educação entre os direitos humanos. Campinas/São Paulo: Autores Associados/Ação Educativa, 2006. p. 6191.
https://www.caiodib.com.br/blog/educacao-e-a-base-educadores-discutem-bncc/
Educação é a Base? 23 educadores discutem a BNCC
“Educação é a Base? 23 educadores discutem a BNCC” é uma publicação da Ação Educativa em parceira coma UFABC. No livro, eles ampliam o debate sobre o que é a BNCC e como esse tema, apesar de muito específico, é de interesse de todos os brasileiros.
https://www.caiodib.com.br/blog/educacao-e-a-base-educadores-discutem-bncc/