Lugar de fala na escola

Lugar de fala na escola

Professores brancos podem falar sobre racismo estrutural com os alunos? A dúvida mostra que a discussão sobre “lugar de fala” também chegou à escola. Segundo a professora do programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Ana Cristina Juvenal da Cruz, o termo se originou em teorias do movimento feminista e feminismo negro, em um contexto de questionamento sobre a vivência das mulheres em sociedade. “Embora vivam neste mesmo espaço, cada gênero terá uma experiência diferente. Os modos de funcionamento de nossas sociedades produzem hierarquias que geram desigualdades”, explica Cruz, que integra também o núcleo de estudos afrobrasileiros da universidade.

No senso comum, no entanto, o conceito de “lugar de fala” passou a significar que somente pessoas de um determinado grupo poderiam falar sobre ele. “Você pode falar sobre um grupo, mas não pelo grupo”, diferencia a professora da faculdade de educação da Universidade de São Paulo (USP) Iracema Santos do Nascimento. “Uma mulher transgênero não se sentirá representada ao ver um homem cisgênero falando por ela em um espaço de discussão. Porém, ele pode estudar a população trans como um pesquisador”, explica.

“Isso significa que todos podem falar sobre qualquer assunto, mas respeitando suas experiências e as do outro”, elucida a professora. No caso do racismo estrutural, um branco não poderia falar sobre como uma pessoa negra se sente porque não vive nessa sociedade sob o ponto de vista de quem sofre discriminação racial. “Mas pode relatar as dores causadas pelo racismo nele, seja por testemunhar ou ter exercido uma atitude racista. Isso é muito potente, especialmente na escola”, lembra Nascimento.

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“É equivocado teórica e politicamente limitar as falas das pessoas, ou seja, definir o que podem ou não falar sobre um problema comum. O racismo é um problema de todas as pessoas. Assim como você não precisa ser uma pessoa com deficiência para querer uma sociedade inclusiva, não precisa ser negro para desejar a igualdade racial”, ressalta Cruz.

E na escola?

Há mais motivos para o professor abordar o racismo estrutural em aula do que para não o fazer. “O racismo não é um problema exclusivo da pessoa negra e as leis de valorização da cultura afro-brasileira da educação também visam desconstruí-lo”, esclarece Nascimento. Vale, ainda, a máxima da pensadora Ângela Davis. “Não basta não ser racista, mas é preciso ser antirracista”.

“A luta antirracista é mais urgente e central. Ela renova o que se espera de um professor ou professora: compromisso e luta contra todas as desigualdades”, analisa Cruz. Por ser estrutural, o racismo também atinge a escola. “Se, por exemplo, eventualmente ocupo espaços de poder dentro de uma estrutura ainda não inclusiva com pessoas negras, e opto por me omitir, não serei antirracista”, complementa a educadora. Porém, é necessário estudo do professor para entender o assunto.

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Racismo estrutural não pode ser visto como preconceito e discriminação contra uma determinada pessoa, mas como uma estrutura que organiza relações de poder. “A população negra foi inferiorizada para justificar o processo de colonização, que construiu a ideia de que populações não brancas seriam inferiores. Assim, geraram-se opressões políticas, ideológicas e simbólicas que vemos hoje em todos os espaços sociais”, lembra Cruz. Na prática, tanto o genocídio da juventude negra pela polícia no Brasil quanto a baixa presença de pessoas negras como símbolos de beleza, inteligência e sucesso na mídia são exemplos do racismo estrutural.

Como fazer?

Cruz sugere a criação de espaços de escuta e fala. Pessoas negras, porém, não são obrigadas a falar sobre o assunto. “São séculos de conteúdos e experiências de opressão física e simbólica que causam dor”, justifica Nascimento. Nesse caso, o professor pode recorrer a depoimentos do cinema e literatura.

O professor branco pode falar sobre como o racismo lhe afetou, reconhecendo privilégios. “Saia da defensiva e evite começar a conversa com frases como: sou branco, mas adoro, tenho amigos, namorei pessoas negras, portanto, não sou racista”, recomenda Nascimento.

Além disso, ela sugere ao docente ouvir a todos com paciência, ainda que não concorde. O estudo também evita comparar diferentes tipos de opressões. Como dizer que “mulheres e pobres sofrem mais que negros”. “Problemas diversos geram situações específicas e incomparáveis, assim, são necessárias solidariedade e responsabilidade com esses temas”, afirma Cruz.

Vai doer

Para completar, o professor não deve evitar o conflito e o desconforto que o assunto trará. “A sociedade brasileira é violenta e foi constituída pela escravidão da população negra e outras opressões. Isso faz emergir violências do passado e do presente. É preciso se preparar e não temer o conflito que esses temas necessariamente promovem”, adianta Cruz.

O racismo estrutural também pode ser combatido na escola por meio de atividades que valorizem a cultura e as pessoas negras. O tema não precisa ser tratado, necessariamente, como um tópico, mas aparecer espontaneamente em projetos e processos. “Na aula de história, não trate ´história negra’ como algo separado dos outros conteúdos da área. Em literatura, apenas mostre exemplos de autores negros quando apresentar diversas correntes literárias, sem precisar fazer discurso sobre”, exemplifica Nascimento.

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