Mais Médicos e os cubanos
Mais Médicos e os cubanos
por Gregório Grisa, no Augere
25 de agosto de 2013
Que belo debate o Brasil está vivendo sobre a saúde pública e o Programa Mais Médicos. Belo porque nasce de uma proposta governamental que tira da inércia as políticas públicas da área e também por expor uma ferida grave do nosso país, qual seja, a falta de atendimento médico que atinge cotidianamente a maioria da população.
Creio que se pode salientar alguns consensos básicos sobre o tema, o Brasil precisa aumentar o investimento em saúde de modo significativo, a infraestrutura tem de ser constantemente qualificada, as 15 profissões da área da saúde precisam de valorização permanente.
Porém, não se vê só beleza nessa discussão, infelizmente ela está sendo palco para raivosos preconceitos, xenofobia, demonstrações de desinformação, superficialidade que nos faz desconfiar se não são intencionais, tamanha a bizarrice de alguns comentários vindo de setores privilegiados da população.
Antes de falar sobre esses comentários é preciso contextualizar o cenário, a polêmica e o desespero de parte da classe médica e dos conservadores se dá quando falam de médicos cubanos, por isso cabe destacar o seguinte.
O Programa Mais Médicos recebeu solicitação de 3.511 municípios apresentando demanda de 15.450 médicos. 1.096 profissionais com diplomas do Brasil e 244 formados no exterior (sendo 99 de nacionalidade brasileira e 145 estrangeiros) confirmaram sua participação no programa. Eles optaram e serão distribuídos em 516 municípios e 15 distritos sanitários indígenas.
Bom, 2995 cidades precisam ser atendidas porque ninguém se inscreveu para elas, nenhum médico brasileiro nem estrangeiro quer ganhar 10 mil reais e instalações para trabalhar nesses municípios. Diante disso o governo fez um acordo com o Estado de Cuba através da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) para trazer nos próximos meses 4 mil médicos daquele país, eles irão se enquadrar nas regras do Programa Mais Médicos. 400 deles chegam nesse fim de semana, abaixo o perfil deles divulgado no site da OPAS.
• 89% têm mais de 35 anos, sendo 65% do total na faixa etária de 41 a 50 anos; 84% têm mais de 16 anos de experiência em medicina; 60% são mulheres e 40% homens; Todos já cumpriram missões em outros países, incluindo participação em missões em países de língua portuguesa; Todos têm especialização em Medicina da Família e da Comunidade e; 20% têm mestrado em Saúde.
Não farei nenhum paralelo de comparação da saúde no Brasil com a de Cuba, esse não é o foco desse debate e os órgãos internacionais como Organização Pan-Americana de Saúde, Unicef, Organização Mundial de Saúde são ótimas fontes para pessoas curiosas sobre isso e bem intencionadas.
Lendo os comentários nas redes sociais, em enquetes, temos alguns padrões nos posicionamento contrários:
— um avalia, de modo maniqueísta, o governo como uma conspiração comunista a serviço de Cuba que deseja enganar a população e perseguir os médicos. Delírio absoluto.
— outro perfil de comentário é mais calcado no senso comum desinformado que afirma que médicos cubanos serão escravos, uns mais ponderados questionam a forma de pagamento do convênio assinado.
Sobre a forma de pagamento, aqui temos um tema bom, nota-se o quão é difícil conceber algo que não se rege pela lógica liberal, como dói compreender que pode existir outro modo de remunerar o trabalho. Cuba tem um regime político diferente do Brasil, goste você ou não, as regras de convênios como esse são claras e legitimadas por dezenas de países.
Os médicos cubanos são funcionários do Estado em Cuba, tem seus trabalhos garantidos, uma carreira. Em missões como essa no exterior eles recebem um adendo em seu salário (4 mil reais provavelmente a depender do custo de vida das cidades para onde serão destinados) e outra parte fica para o Estado que garantiu sua formação gratuita desde sua infância.
Gonzales, um dos médicos cubanos recém-chegados, quando perguntado sobre o quanto vai receber afirmou: “não sabemos ainda, mas será o necessário, pois tenho emprego garantido no meu país e parte dos recursos irá para ajudar o meu povo”.
Concordamos ou não com essa lógica, essa dinâmica, isso é ter contato com outro modo de ver a vida, de olhar para as relações sociais e humanas, assim como temos direito de termos nossas interações trabalhistas pautadas em uma lógica mais mercantil e individual, os profissionais de outros países tem o direito de pensar e agir diferente de nós.
Nesse caso, criticar o PT, ter uma postura arrogante se retirando do debate da urgência de atendimento médico que temos no país, deixar escapar do inconsciente um sério “complexo de superioridade” (que pensa ser 10 mil reais um salário escravo, que não quer permitir que outros profissionais vão aos rincões do país por eles serem estrangeiros) é um desfavor que parte da classe médica presta a sua nação.
Para maioria da população pobre brasileira que, não acessa a internet 53,5% (IBGE, 2011), que não tem acesso a essas polêmicas, que não tem alternativas para seus problemas de saúde, esse debate político e corporativo não interessa. O importante para eles e elas é sobreviver, se curar agora, melhorar minimamente a qualidade de vida e a condição do seu organismo.
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Em muitos lugares onde serão alocados os médicos cubanos nunca se pensou em medicina preventiva, nunca se executou programas de medicina comunitária com equipes multidisciplinares. Essa ação governamental é emergencial, mas já vem tarde, era para ter sido feita a muito tempo, por qualquer governo. O Tocantins, em 1998 no governo de direita de Siqueira Campos (então no extinto PFL, hoje filiado ao PSDB e novamente governador) teve inciativa parecida ao trazer médicos cubanos por convênio.
Outro grupo de comentários que tratam do Revalida, da questão do idioma, questionam a competência dos estrangeiros, cegamente ainda afirmam que não faltam médicos, não merecem nota diante do real debate que deve ser feito.
Qual é esse real debate? A lógica mercantil da nossa saúde, a formação para uma medicina que concebe a doença como mercadoria e fonte de lucro, as relações nefastas entre médicos e laboratórios farmacêuticos, a cultura da pulverização de medicamentos em detrimento de prevenção e ações integradas, a gestão pública e das fundações, o poder e o lucro dos planos de saúde e seus precários serviços, além daqueles consensos básicos listados no começo do texto que são estruturais.
Tenho um adendo fundamental sobre exigência demagógica pelo Revalida em um programa emergencial com tempo de duração determinado, vou ser didático. É óbvio que a exigência de revalida em um programa como o “Mais Médicos” seria o principal motivo para o seu fracasso. Todo profissional que faz o Revalida no Brasil pode trabalhar em qualquer lugar, com qualquer carga horária, se quiser somente na sua especialidade, e ainda cobrar a quantia que achar adequada pelos seus serviços, além de disputar livremente mercado com os profissionais formados no Brasil.
Isso é tudo o que não prevê o programa, com a licença especial de 3 anos e com avaliação permanente das universidades, se garante o objetivo de segurar os profissionais somente na atenção básica de saúde, por 40 horas semanais, com a bolsa de 10 mil reais e, o principal, trabalhando estritamente nos municípios e regiões que forem alocados, que são as que mais necessitam de médicos. Sem comentar a burocracia e a morosidade que envolve o Revalida.
Por fim, penso que vale dizer que não costuro meu argumento no intuito de me por do lado do governo na rasa dicotomia entre “governo e cidadão de bem” que as entidades representativas da classe médica querem incutir na opinião pública. Sou critico do ponto de vista macro político ao governo do PT, mas creio que este não é o cerne da discussão em tela, apesar de ser um elemento dela.
Todavia, não posso me furtar de marcar meu apoio ao Mais Médicos e a vinda de médicos cubanos para trabalharem nas circunstâncias colocadas. Ainda mais diante dessa onda de preconceito e de alucinações conspiratórias que a direita faz circular nas redes sociais e que infelizmente, por inúmeros motivos, conquista alguns desavisados que, ao invés de aproveitarem esse momento para oxigenar as consciências ao ter contato com princípios de humanidade e solidariedade tão deturpados em nossas rotinas, preferem reproduzir mantras corporativos, medos antiquados e moralismos constrangedoramente elitistas.