Medicina negacionista

Medicina negacionista

Medicina negacionista, uma crise à parte

“Tratamento precoce”, cloroquina, ivermectina: parte dos médicos insistem em basear-se em vivências pessoais e fundamentalismos, como se dava há dois séculos. Má qualidade da formação científica dos profissionais pode estar por trás do problema

 

Por Cátia Guimarães, na EPSJV/Fiocruz

Cloroquina, ivermectina, antibiótico preventivo, tratamento precoce… A tensa relação entre conduta profissional e conhecimento científico tem feito dos médicos um capítulo à parte na história da pandemia. Em entrevista para outra reportagem da Poli, na edição nº 73, a professora e médica sanitarista Ligia Bahia, representando a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), destacou a carência de base científica na formação dos médicos no Brasil como uma das explicações para esse comportamento. Já José Ricardo Ayres acredita que é preciso um “estudo mais cuidadoso” para se afirmar que “haja de fato um déficit de formação científica nas escolas médicas de maneira geral”. Ele justifica a ‘hesitação’: “Especialmente nas grandes escolas de medicina no país, há uma ênfase crescente na chamada medicina baseada em evidências”.

Ayres se refere a um ‘movimento’ que nasceu no final do século 19 a partir da crítica à forma como os médicos tomavam suas decisões clínicas. A percepção era de que essas medidas eram influenciadas principalmente pela vivência pessoal. “E muitas vezes a experiência daquele médico era particular, carregada de preconceitos e concepções enviesadas e não levava às melhores práticas”, explica.

Para solucionar esse problema, começou-se a mapear tudo que se fazia em termos de diagnóstico, prevenção, tratamento e prescrição e classificar de acordo com as evidências comprovadas na produção científica disponível. “Por exemplo, fazer screening para câncer de próstata é eficaz? Compensa? [Para responder], faz-se a análise de uma série de estudos”, ilustra o professor, explicando que há “uma certa hierarquização” do que se considera cientificamente válido: enquanto os ensaios clínicos randomizados duplo cego são considerados de alto valor do ponto de vista científico, um relato de caso enviado por médicos é sistematizado, mas reconhecido como de baixa evidência. A partir dessa gradação, as práticas são organizadas desde o ‘altamente recomendável’ até o ‘altamente não recomendável’.

Desde o final do século passado, no entanto, essa “adesão quase religiosa” à medicina baseada em evidências vem sendo questionada. “Na saúde coletiva foi muito comum a crítica a esse cientificismo, que muitas vezes perdia de vista o que se obtém com uma interação mais empática com os pacientes, de compreender o que está acontecendo, e não se guiar tanto por princípios gerais e abstratos”, argumenta Ayres, que completa: “A gente tem que atingir o equilíbrio entre uma formação que valoriza a ciência – porque ela é um legado importante para as decisões, para que a gente tenha referências sobre o real e algum grau de possibilidade de crítica intersubjetiva e aceitação racional de uma proposição –, mas não pode endeusar isso como se fosse a única coisa que contasse”.

O professor da USP, no entanto, reconhece que “esse equilíbrio está difícil”. “Na atual conjuntura, a gente vê discursos que questionam a cientificidade, mas não como crítica ao cientificismo, ao contrário: como uma forma de justificar certos fundamentalismos que a gente também tem que afastar”, alerta.

E como o comportamento anticientífico de parte da comunidade médica em meio à pandemia se encaixa nesse desenho? “No cotidiano, o médico é obrigado a resolver situações práticas, ele é treinado para dar resposta. E as condições de práticas muitas vezes fazem com que essa resposta mais pragmática ocorra num ambiente de incerteza muito grande”, contextualiza Ayres. Ele exemplifica: um paciente com febre e dor de garganta pode estar com uma amigdalite viral ou bacteriana. O ideal é aguardar e pedir para o usuário voltar para se ter certeza do diagnóstico mas, se não tem condições de fazer isso, seja pelo excesso de demanda, seja porque sabe que há chances de ele não retornar à unidade de saúde, o médico acaba prescrevendo um antibiótico. “Essa pressão de fazer alguma coisa muitas vezes leva o profissional de saúde, mesmo tendo uma base científica, a precipitar uma atitude pragmática para cercar as possibilidades de ter algum tipo de efetividade garantida”, explica. Mas pondera: “O que não justifica o uso de qualquer medicamento em qualquer circunstância. Especialmente quando há evidências de que não funciona, e pior, quando há evidências de que pode trazer outros efeitos”.

A isso somam-se, na avaliação do professor, as inseguranças e incertezas trazidas pela pandemia e a influência do “ambiente político”. E ele acredita que todo esse coquetel, muitas vezes, atropela o que foi aprendido durante a formação.

De acordo com o estudo ‘Demografia Médica 2020, da USP com o CFM, 25,8% das vagas de cursos de medicina hoje são oferecidas em instituições públicas, contra 74,2% em privadas. A significativa expansão de estudantes de medicina nos últimos anos se deu sobre as mesmas bases: segundo a pesquisa, entre 2011 e 2020, 84% dessas novas vagas foram de instituições particulares. “A intensificação da abertura de cursos e vagas privadas deve ser acompanhada, considerando seus eventuais efeitos na qualidade da formação, no perfil e na trajetória profissional dos egressos”, recomenda o relatório.


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