Medo do escuro
Bolsonaro tem medo do escuro
João Paulo Cunha 17 de Janeiro de 2020
Filmes ampliam a consciência, e é isso o que o presidente teme
A atitude do presidente com a cultura, o conhecimento e a ciência registra capítulos infames todos os dias. Desrespeito com a universidade, redução do financiamento de pesquisas, demissão de cientistas, afronta a artistas e intelectuais que dignificam a história do país. A saga destrutiva segue com revisionismo da história, negação arrogante de resultados científicos e estímulo a modelos autoritários de organização do ensino público.
A demissão do secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, depois de seu discurso assumidamente nazista – que revoltou o Brasil e o mundo civilizado –, não chega a ser uma correção de rota. No máximo é um sinal constrangido de que o governo teve revelada sua real inspiração em termos de cultura: dirigismo, autoritarismo, exaltação de valores reacionários, pensamento único, perseguição da divergência e combate à diversidade. Uma espécie de linha demarcatória entre a cultura oficial e a arte considerada degenerada.
Roberto Alvim não se mostrou filonazista apenas depois da patética aparição pública ao som de Wagner, durante o lançamento de prêmios que determinariam o direcionamento do investimento público em cultura no país. Suas manifestações já mostravam seu atávico apego à estética e ética do nacional-socialismo. Para um sub-Hitler no poder, um sub-Gobbels na cultura. É bom lembrar que o que alçou Alvim da presidência da Funarte ao posto mais importante da cultura no setor público federal foi sua promessa de criar uma atmosfera propícia aos intelectuais e artistas de extrema direita e a ofensa a maior atriz brasileira. Para o presidente, estava dado um programa para o setor: ignorância e estupidez em uma só pessoa.
A entrega de cargos de comando do setor cultural e científico a pessoas despreparadas e alinhadas com a extinção da inteligência e da liberdade talvez seja a mais destrutiva das ações, já que corrói por dentro as organizações e compromete seu futuro. Tem sido assim no campo das ciências humanas e das instituições de ensino e das artes, como a Fundação Palmares, as universidades federais, a Fundação Casa de Rui Barbosa, a Funarte e a Biblioteca Nacional, entre outras.
E até em áreas aparentemente protegidas pela tradição de alta exigência técnica, como o Ministério da Ciência e Tecnologia, esse método se mantém. O ex-astronauta-garoto-propaganda de travesseiros Marcos Pontes, caroneiro da missão internacional e plantador feijões em algodão no espaço, exerce de forma vergonhosa a feitoria do anticonhecimento em sua pasta. A ele têm sido dadas missões importantes, como cortar recursos e demitir o presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, considerado um dos cientistas mais relevantes no mundo no ano passado pela revista Nature.
Em todos esses postos, os novos titulares estão no cargo para levar adiante a política de terra-arrasada. É assim que entrarão para a história, como pessoas que trocaram a dignidade por poder, mesmo que a mais execrável forma de poder: a missão de destruir exatamente aquilo que define as instituições que comandam. Um cientista que despreza o conhecimento; um intelectual que renega o saber; um artista que defende o dirigismo e a censura; um racista responsável pela defesa e promoção da cultura afro-brasileira. Para espanto dos ingênuos ultraliberais que achavam que estava tudo dominado, essas são promessas cumpridas, não acidentes de percurso.
O novo episódio nessa história deplorável é a nomeação de Laura Rufino como diretora colegiada da Agência Nacional do Cinema, a Ancine, mesmo que ocupando o cargo interinamente. Funcionária de carreira, protegida do ex-secretário especial de Cultura, ela chega embalada por solo de trombetas da Opus Dei, a mais conservadora das prelazias da Igreja Católica. É bom lembrar que Bolsonaro chegou a defender a entrega da agência a um evangélico. A Opus Dei, em matéria de reacionarismo, é uma espécie ponta de lança do fundamentalismo católico. Mais uma promessa cumprida.
O roteiro da produção de horror da Ancine tem sido escrito de forma vergonhosa. O governo anunciou que ia estabelecer filtros (censura), que nomearia pessoas comprometidas com os valores das famílias e da tradição (sabe-se lá o que isso quer dizer), e que, caso não conseguisse prosperar nesse caminho, fecharia vez as portas da agência. Para mostrar que o jogo era para valer, cortou os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual e paralisou todas as políticas do setor. Passou um ano nesse jogo e abre 2020 retomando a briga nivelando por baixo.
Por que tanto ódio ao cinema? A resposta é simples: Bolsonaro tem medo do escuro. Do escurinho ensolarado da tela grande. O que o mundo do cinema vem mostrando nos últimos anos é a retomada de sua vocação humanista e crítica. Num cenário em que a comunicação feita pelos meios hegemônicos tem se mostrado incapaz de mobilizar as pessoas em torno da verdade, a arte tem ocupado cada vez mais esse papel. E o cinema tem recuperado sua função de propor discussões profundas, atento tanto à razão como à emoção. Não é um acaso que a nova safra dos filmes mais falados esteja ligada exatamente a esse sentimento de mal-estar que atravessa a sociedade contemporânea.
Muitos livros excelentes foram produzidos por intelectuais, que perceberam a necessidade de a academia dialogar com o cidadão comum por meio de obras escritas de forma clara e distante do jargão. São estudos que falam da crise da democracia, do fortalecimento da antipolítica e da ascensão das forças da reação. Mas são também trabalhos que refletem a diversidade, a pluralidade de ideias, a emergência de novas vozes, a força dos movimentos populares e o pensamento libertário. É um caminho importante. Mas que não é suficiente.
A cultura, especialmente o cinema, tem representado o potencial de levar esse sentimento de indignação e revolta a outro patamar. O que o saber intelectual capta com suas reflexões, os filmes elevam à mobilização no campo da empatia e do compartilhamento. Por isso, tão bom quanto assistir a filmes é conversar sobre eles depois, pensar a vida por meio de suas histórias, dividir impressões e visões de mundo. E, exatamente pelo mesmo motivo, o cinema preocupa os inimigos da democracia e da inteligência.
A indicação do filme brasileiro Democracia em vertigem, de Petra Costa, ao Oscar de melhor documentário é por isso triplamente importante. Em primeiro lugar, mostra a força humana do cinema e permite ampliar um olhar localizado para um debate que interessa a todos. Além disso, coloca o país em relação com o ambiente político do mundo: o que nos atinge faz parte de uma grande onda que precisa ser compreendida e combatida universalmente. Por fim, o fato de se tratar de uma obra documental é exemplar de como o jornalismo tradicional não tem dado conta de expressar seu tempo.
Mas não se trata apenas do filme brasileiro e menos ainda da força realística do documentário. Em todos os círculos e espaços se debatem filmes como Dois papas, Bacurau, Atlantique, Parasita, O Coringa, O irlandês, História de um casamento, Os miseráveis e uma série de outras produções que nos ajudam a compreender nosso tempo e afiar nossa percepção para o que nos cerca. Pode ser a convivência de modos distintos de fé e compromisso, o papel da revolta num contexto de exceção naturalizada, o drama dos refugiados, o desemprego e a desigualdade social, o isolamento e crise moral, a corrupção e a violência miliciana que a sustenta, a coragem de enfrentar o desamor num mundo de convenções, o destino descartável dos pobres.
São temas que brotam do mundo, chegam às telas pelas lentes de artistas dedicados e retornam a dia a dia como ampliação da consciência. É aí, felizmente, que mora o perigo. É disso que o presidente tem medo, não de Bruna Surfistinha.
Edição: Elis Almeida
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