Mentindo nas ruas e nas redes

Mentindo nas ruas e nas redes

SE ESTÃO MENTINDO NAS RUAS, ESTÃO MENTINDO NAS REDES

19/11/2022

 

No domingo retrasado, eu cometi um grande erro. Estava num samba de comemoração dessa espécie de “missa de sétimo dia” da derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas urnas, quando uma mensagem mentirosa chegou num grupo de família.

Um tio compartilhou pedidos de golpe e uma foto que supostamente comprovaria a ligação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandovski a um grupo comunista armado que teria lutado contra a ditadura militar. Aquilo fedeu a fake news e fiz uma busca rápida. Em poucos segundos achei a checagem e compartilhei no grupo.

Seguiram-se 10 minutos de agonia e ataques contra mim. Desisti, silenciei e arquivei o grupo novamente. Aquela batalha já estava perdida, melhor aceitar.

Inclusive, se os apoiadores de Bolsonaro aceitassem a última disputa que perderam, tudo seria mais fácil. Mas não. Na volta do samba, me deparei com uns gatos pingados de verde e amarelo pedindo que o atual presidente se negue a entregar o cargo em janeiro como mandou a vontade popular. Provavelmente haviam ido parar ali depois de, como meu tio, receber vários vídeos, imagens e mensagens falsas que os convenceram de que o STF é comunista, as eleições foram fraudadas e todos comeremos cachorros a partir de janeiro de 2023.

Desde julho, eu e outros repórteres da Agência Pública temos acompanhado e analisado o mundo online para entender de que forma as redes sociais e as mentiras que ali circulam estão moldando a política e o debate público. O Sentinela Eleitoral, projeto que dá nome a essa força-tarefa, não busca apenas desmentir informações falsas ou apontar os principais desinformadores — duas funções importantes —, mas entender de que forma algumas pessoas estão se utilizando de mentiras para manipular outras.

Nessa última campanha eleitoral, identificamos diversas narrativas falsas sendo construídas pelo bolsonarismo, como aquela que buscava desacreditar as pesquisas eleitorais às vésperas do 1º turno, ou inventar uma relação inexistente entre o PT e o crime organizado assim que se iniciou a segunda parte do pleito. Também descobrimos que os aplicativos Tiktok e Kwai são a origem de 41,3% dos vídeos que circulam em grupos de WhatsApp, muitos deles com desinformação sobre o sistema eleitoral e as Forças Armadas.

Investigamos a disputa pelo votos dos gamers no metaverso e resumimos as principais correntes mentirosas que pipocaram nas redes durante os finais de semana de votação. Para isso, nos unimos a outros veículos de comunicação independentes, Aos Fatos e Núcleo Jornalismo. Fizemos isso porque acreditamos que a colaboração é muito melhor do que a competição, ainda mais quando o futuro da democracia está em jogo.

Um ponto importante que sempre guiou nossa cobertura é que não se trata apenas de responsabilizar gente desavisada compartilhando nas redes algo que parecia ser verdade, mas não é. Existe um farto investimento financeiro na produção e disseminação dessas mentiras — ou você achava que os vídeos se editavam sozinhos antes de aparecer no seu WhatsApp?

Por vezes, nosso próprio dinheiro — dinheiro público — é usado para produzir ou impulsionar os conteúdos que mais tarde tentarão nos enganar. Descobrimos, por exemplo, que alguns candidatos bolsonaristas usaram verba destinada ao financiamento eleitoral para criar e divulgar vídeos mentirosos, como um que dizia que existe um plano comunista para tomar as mentes das crianças nas igrejas.

Também ficamos atentos às vezes em que a lei eleitoral pode ter sido descumprida no ambiente digital, como quando Jair Bolsonaro (PL) impulsionou anúncios com vídeos dos atos de 7 de setembro, o que foi proibido pela Justiça Eleitoral para que a máquina pública não fosse usada para fazer campanha. O presidente chegou a gastar R$ 4,5 milhões em um só dia em propagandas no YouTube.

Desde julho estamos prendendo a respiração e mergulhando no ambiente digital bolsonarista pra entender o papel das fake news na eleição de 2022. Pensávamos que as coisas arrefeceriam ao menos um pouco depois do fim do pleito, até porque a transição para o novo governo já se iniciou. Mas as rodovias e cidades se encheram de caminhoneiros e bolsonaristas em atos golpistas incitados por fake news. É por essas e por outras que nosso trabalho continua necessário.

Já mostramos que esses atos vêm sendo articulados desde antes do fim das eleições, ou seja, não são tão espontâneos quanto se pode pensar. Se não ficarmos atentos, é possível que daqui a dias ou semanas vejamos surpresos o resultado da desinformação que hoje se compartilha nas redes. Se tem gente mentindo nas ruas, tem gente mentindo nas redes. Não é possível separar as duas coisas.

Laura Scofield

Repórter da Pública em Brasília

Agência Pública




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