Militarização das escolas vira propaganda
Militarização das escolas vira peça de propaganda de políticos conservadores
Terceira matéria do especial sobre a onda conservadora na educação aborda o uso político das Escolas Cívico-Militares por parlamentares
Ao longo desta semana, o Sul21 vem publicando uma série de três matérias a respeito do avanço das pautas conservadoras na educação gaúcha e brasileira. Nesta reportagem que fecha a série, abordamos a militarização das escolas públicas por meio do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), lançado pelo governo de Jair Bolsonaro.
Até o momento, a rede estadual de educação do Rio Grande do Sul conta com seis escolas que já tiveram a adesão formalizada ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares: Alexandre Zattera (Caxias do Sul), Carlos Drummond de Andrade (Alvorada), Instituto de Educação Oswaldo Aranha (Alegrete), Osvaldo Aranha (Novo Hamburgo), Santa Cruz (Santa Cruz do Sul) e Nossa Senhora Aparecida, (Tramandaí).
No início de dezembro passado, a Escola Estadual Visconde do Rio Grande, localizada no bairro Cavalhada, tornou-se a primeira da rede estadual em Porto Alegre a aprovar, após votação da comunidade escolar, a adesão ao programa ao Pecim. Apesar da adesão já ter sido aprovada, a direção da escola informou ao Sul21 que ela ainda depende de homologação do MEC para ser formalizada, o que deve fazer com que a transformação da instituição em uma Escola Cívico-Militar (Ecim) só ocorra no final do primeiro semestre de 2022 ou no início do segundo. Quando as aulas forem retomadas em fevereiro, a comunidade escolar ainda não terá percebido mudanças.
O programa, uma iniciativa do Ministério da Educação (MEC) em parceria com o Ministério da Defesa, é oferecido a escolas que tenham de 500 a 1 mil alunos, com turmas do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e/ou o Ensino Médio. Um dos requisitos para a adesão é a aprovação da comunidade escolar. Inicialmente, as escolas recebiam investimentos de R$ 1 milhão em caso de adesão, mas o valor vem sendo reduzido. A adesão também significa que elas passam a contar com servidores militares no apoio à gestão escolar e à gestão educacional, com os servidores civis continuando responsáveis pelo trabalho didático-pedagógico.
Segundo dados divulgados pelo MEC nesta semana, 53 escolas aderiram ao Pecim em 2020, primeiro ano de operação do programa. Em 2021, 74 novas escolas adotaram o modelo cívico-militar e, para 2022, o MEC diz que há 89 novas vagas no programa. Destas, o MEC informa que sete seriam escolas da rede estadual do Rio Grande do Sul, uma delas de Porto Alegre — provavelmente a Visconde de Rio Grande — e as outras das localidades de Rosário do Sul, Canela, São Leopoldo, São Gabriel, Quaraí e São Borja. Além delas, há três escolas municipais gaúchas que devem aderir ao programa, em Bagé, Taquara e Rio Grande. A Secretaria Estadual de Educação (Seduc) diz que este número informado ao MEC diz respeito a instituições que manifestaram interesse de aderir ao programa, mas ainda faltaria a homologação dos processo, como é o caso da Visconde. Por isso, o governo do Estado não confirma ainda este total como escolas cívico-militares em operação no RS.
Apontado (e auto-declarado) como um dos principais defensores da Escola Cívico-Militar no Rio Grande do Sul, o deputado estadual Tenente-Coronel Zucco é o autor da Lei 15401/2019, que permitiu a atuação de monitores cívico-militares em escolas públicas das redes estadual e municipais no Rio Grande do Sul. Segundo a lei, sancionada pelo governador Eduardo Leite em dezembro de 2019, esta função pode ser exercida por policiais militares da reserva e PMs temporários.
Cinttia Denise Bordini, professora da Visconde de Rio Grande, conta que o processo de adesão ocorreu de forma acelerada após a eleição da nova direção da escola, que também ocorreu no final de 2021. Ela diz que, três dias após a escolha da nova direção, professores foram comunicados do interesse em aderir ao programa. A informação foi passada ao corpo docente em reunião, realizada no dia 4 de dezembro, que contou com a participação de um militar que atua no gabinete do deputado estadual Tenente-Coronel Zucco. No encontro, a apresentação do que era o programa foi feita por meio de uma cartilha elaborada pelo gabinete do deputado. Ao longo das últimas semanas, a reportagem tem tentado entrevistar Zucco para a matéria, o que não foi possível.
Cinttia diz que a reunião teve apenas o objetivo de comunicar os professores da decisão e, na semana seguinte, pais de alunos já foram convocados para votar a adesão ao programa, o que ocorreu no dia 11, com a aprovação de 89% dos presentes.
“Tudo no prazo de uma semana”, diz. Cinttia, que ainda questiona o quórum da votação. “Não houve, em momento algum, espaço para contraditório e tempo para discussão. Aconteceu à toque de caixa. Em menos de duas semanas, se improvisou uma votação com os pais e com maiores de 18 anos, sendo que o projeto atinge apenas do 6º ano ao Ensino Médio, e a escola tem outros níveis”.
Na avaliação da professora, a comunidade escolar foi, ao mesmo tempo, seduzida e pressionada a aceitar a adesão ao programa. Seduzida pela promessa de que a presença de militares iria trazer mais segurança para a escola, e pressionada pelo fato de a adesão representar acesso a recursos aos quais a instituição não contaria em caso de recusa.
Para uma escola com problemas no telhado, de infiltração, de falta de ventilação adequada no refeitório e em outros problemas — o que se torna um agravante em momento de pandemia –, que convive com o roubo de fios de luz, as promessas de melhoria foram suficientes para sensibilizar a comunidade, avalia. Contudo, ela argumenta que parte dos atrativos são “fictícios”, uma vez que o modelo que a comunidade escola imagina quando ouve falar de Escola Cívico-Militar é o dos colégios militares federal, que possuem gestão e financiamento da União e contam com mais recursos do que as escolas estaduais, mesmo aquelas convertidas ao modelo cívico-militar.
“O problema do projeto é que ele é vendido com a fantasia de que se trata de um colégio militar federal, mas é outra proposta, que tem outra forma de construção. Não é um colégio militar, mas as pessoas, quando ouvem Escola Cívico-Militar, fazem essa confusão, achando que só vai ter militares dentro do colégio, de farda, etc.”, diz Cinttia.
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Faced-UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado em Educação, Iana Lima avalia que a militarização da educação carrega a ideia de controle do trabalho docente, de estabelecer limites para o que professores podem e não podem fazer na escola e o que devem ensinar. Por outro lado, diz que a militarização das escolas é uma pauta que tem ganhado força entre comunidades mais pobres, pois, justamente, é vendida a pais e mães como uma esperança de que as escolas passarão a ter mais investimentos e serão “melhores” do que as demais da rede pública.
A professora Vera Peroni, coordenadora do mesmo grupo de pesquisa, acrescenta que é na esteira da tomada do público pelo privado — tema abordado na primeira matéria deste especial — que surgem movimentos como a militarização das escolas. “As escolas totalmente precarizadas, por essa questão do neoliberalismo, iam ganhar uma verba extra para se tornarem militarizadas. Aí o que acontece? Tem uma disciplina militar e militares dentro da escola que dizem o que professores e alunos têm que fazer. Isso que está acontecendo é muito grave, mas ocorre uma naturalização”.
Na mesma linha, segundo ela, vem a questão do ensino domiciliar, ou homeschooling. “Essa questão é vinculada ao pais não quererem que seus filhos entrem em contato com outras crianças ou o pensamento de outros professores, que possam levar ideias ‘mais comunistas’ ou ideias que sejam aquilo que eles não querem em sua pauta moral. Então, há também uma questão muito forte vinculada à religião, de cerceamento. Isso é o mais visível, eu acho. Mas, para além disso, existe também toda uma parceria em que o privado entra na escola pública há muitos anos e ele vai minando aquilo que a gente vinha construindo há muitos anos como uma democratização da escola”, diz.
A deputada estadual Sofia Cavedon (PT) avalia que o projeto da Escola Cívico-Militar é resultado de uma disputa política em curso sobre o sentido da educação. “Essa disputa sempre esteve em curso, porque a escola tem uma potência enorme de projetar a sociedade. Ela problematiza ou calcifica valores. Eu sempre digo que nós não nascemos racistas, machistas, todos nós aprendemos. A aprendizagem disso se dá na vida e se dá na escola. A escola, se não problematiza, acaba validando. Então a disputa da escola é sobre os sujeitos, se eles vão ser adequados ao capitalismo e à desigualdade, ou se vão ser sujeitos transformadores. Então, a escola pode ensinar por meritocracia, quem venceu, venceu, e naturalizar quem fracassou por não ter se esforçado suficiente. Ou a escola pode discutir as condições que cada um tem na sociedade para avançar e oferecer uma condição diferente para dar conta das diferenças”.
Em seu site, o deputado Zucco oferece uma minuta de um projeto de lei a ser apresentado por municípios para a criação da Escola Cívico-Militar em âmbito municipal. A minuta, cuja a intenção era que fosse reproduzida por prefeitos, define sete funções para o monitor cívico-militar, o militar que passa a atuar nessas instituições. São elas:
1) Coordenar atividades cívicas diárias, externas à sala de aula;
2) Ministrar instrução básica de ordem unida e sinais de respeito;
3) Atuar preventivamente na identificação de problemas que possam influenciar no aprendizado e convivência social do cidadão em desenvolvimento;
4) Aplicar as sanções e recompensas previstas em regulamento próprio, de forma a preparar o aluno para as responsabilidades da vida adulta;
5) Agir de acordo com os valores permanentes da identidade nacional e das virtudes de vida em sociedade;
6) Acompanhar a vida escolar do aluno, identificando desvios que possam influenciar de forma negativa sua formação como aluno e cidadão;
7) Auxiliar como fator de dissuasão na segurança das instalações, dos alunos e dos professores.
Além disso, Zucco é autor de uma cartilha de orientação para municípios a respeito da Escola Cívico-Militar (ver abaixo). Nesta cartilha de 2019, Zucco argumenta que as escolas militares do Exército Brasileiro, bem como as da Brigada Militar, ocupam as primeiras colocação do Enem em 2018, mas ressalta que Estado e União não teriam recursos para ampliar o número de escolas do tipo. O deputado defende ainda que a Escola Cívico-Militar é uma alternativa que pode ser viabilizada financeiramente como a utilização de servidores militares da reserva, da Brigada Militar ou das Forças Armadas, em funções de monitoria.
O documento ignora, contudo, o fato de que as escolas públicas mais bem colocadas no Enem, via de regra, são ligadas às universidades federais. Em 2018, a escola pública com melhores resultados nos exames foi o Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa. Além disso, militares ou com relacionadas a universidades, ambos os modelos possuem maior financiamento do que as escolas estaduais e municipais.
A cartilha define que a Ecim tem como estrutura educacional o trabalho de servidores civis no ensino e na parte pedagógica, enquanto militares “colaboram na formação dos cidadãos”. “Preocupa-se primordialmente em incorporar aos alunos ATITUDES e VALORES (familiares, sociais e patrióticos), trabalhando para que o cidadão em formação tenha consciência de seus DEVERES, direitos e RESPONSABILIDADES, como forma de preparar o aluno para qualquer campo profissional no qual venha a atuar no futuro”, diz a cartilha
O documento diz ainda que a vantagem para os municípios é a “melhora da segurança interna e externa” das escolas e que o modelo “atende o pedido da sociedade por ensino diferenciado pela disciplina e valores”. Também frisa que, em outros estados, a gestão escolar é de responsabilidade do Departamento de Ensino da PM, que tem o poder inclusive de disciplinar professores, mas que, no RS, a participação dos monitores cívico-militares ocorre apenas “da porta para fora”, sem interferência em sala de aula.
O material elaborado por Zucco traz, inclusive, um modelo de uniforme a ser seguido.
A cartilha de Zucco sugere também que as escolas cívico-militares poderiam fazer parcerias público-privadas para a reforma e manutenção de prédios, para o fornecimento de uniformes, para o fornecimento de merenda escolar e para programas profissionalizantes. Orienta ainda que a seleção dos alunos deve ser feita por “cotas por bairros, concurso, sorteio ou outras medidas semelhantes”, mas indica que alunos e professores devem ser voluntários.
Sofia Cavedon destaca que o projeto dos monitores cívico-militares, que viabilizou à adesão das escolas gaúchas ao modelo, foi aprovado por maioria na Assembleia Legislativa e que há outros deputados estaduais envolvidos na promoção do programa, como o deputado Vilmar Lourenço (PSL, mas que ele tem no deputado Zucco o seu principal defensor. “É uma disputa de um campo que é conservador, de um campo que na economia defende o estado mínimo, a concentração de renda e de poder, e que para o povo pobre, então, é preciso usar a disciplina. Um País que disciplina hierarquicamente o Estado se impõe ao povo pobre, o que resulta que a única política para pobre é a repressão policial.”
Para a deputada, um primeiro estranhamento relacionado à implementação do projeto no Rio Grande do Sul é o fato de um deputado da carreira militar estar conduzindo uma “política educacional” que deveria ser de responsabilidade do governo estadual, indo às escolas “propagandear” o programa a oferecer recursos e segurança. A deputada reconhece que não há ilegalidade na atuação de Zucco e de outros parlamentares que tomaram para si a iniciativa de promoveram o programa, mas avalia que é uma “imoralidade” no que tange a um projeto educacional de Estado.
“Uma das questões é que a maioria das escolas tem péssimas condições financeiras, inclusive para fazer manutenção básica, atualização de computador. Qual é o sentido de algumas escolas, ao adotarem o sistema cívico-militar, serem bonificadas? Qual é o sentido republicano disso? Os alunos e os pais e mães que não se submeterem à lógica militar na sua escola não receberão recursos? Esses alunos são menos importantes ou têm menos direitos que os alunos que estarão nas escolas cívico-militares? Essa é uma questão, inclusive, passível de análise e discussão no Ministério Público. Eu pretendo representar essa discriminação material dos estudantes”, diz a deputada.
Em novembro passado, Zucco lançou inclusive um livro em defesa do modelo: “Escola Cívico-Militar: uma esperança paraa o Brasil”. Na solenidade de lançamento, que contou com a participação do vice-presidente Hamilton Mourão e foi realizada na Assembleia Legislativa, o deputado explicou que o livro traz um conjunto de conceitos e depoimentos sobre o programa, tendo como objetivo que a “sociedade conheça melhor” a proposta. “Cerca de 40 municípios gaúchos já manifestaram interesse em aderir ao modelo, comprovando a busca deste ensino de qualidade caracterizado por conteúdo e comprometimento na formação de cidadãos íntegros”, disse Zucco, na ocasião.
Em maio passado, o Conselho Municipal de Educação (CME) de Porto Alegre emitiu um parecer sobre a implementação do Pecim em Porto Alegre em que recomenda às escolas municipais se absterem de aderirem ao programa. Um dos principais elementos citados pelo CME para a adoção da posição é a avaliação de que as escolas não possuíam, na ocasião, informações suficientes sobre o projeto educacional do programa, suas bases conceituais, metodológicas e operacionais.
Além disso, avalia que o processo de ingresso sugerido pelo Manual das Escolas Cívico-Militares é excludente ao permitir a transferência compulsória de estudantes. “O estudante que não se subordinar às determinações disciplinares será orientado e até coagido a se transferir, já que os responsáveis assinam termos de responsabilidade a esse respeito. Quem conhece as periferias da cidade sabe que muitos conflitos nos territórios impedem que alguns moradores transitem em áreas do bairro, o que obrigará o deslocamento dos estudantes para instituições distantes de sua moradia. Este expediente fere o direito das crianças e dos adolescentes estabelecido no ECA. O aluno não poderá escolher a escola, mas a escola escolherá os alunos”, diz a nota da CMS.
O Conselho também criticou a imposição de uniformes, alertando que esta medida já havia sido tentada na rede municipal e foi revertida diante da impossibilidade de cumprimento pelas famílias. “Quantas peças de uniforme são necessárias para garantir que, durante todo o ano letivo, em todas as estações, o estudante se apresente uniformizado? As famílias de periferia frequentemente não dispõem de máquinas de lavar e secar roupas. O uso de uniforme, disponibilizado pela SMED em 2014, já foi uma experiência vivenciada na rede municipal de ensino, que trouxe muitos problemas”.
Cinttia Bordini avalia que o caráter excludente é uma das principais características da Escola Cívico-Militar, enquanto a escola pública, por natureza, deveria ser universal e aberta a todos os alunos e famílias, o que não é o caso. “É um programa excludente, porque aquele aluno que não quiser seguir aquelas regras, inclusive proíbe o uso de tatuagens, vai ser expulso, tem que procurar outras escolas. Hoje, temos o fechamento de escolas no Rio Grande do Sul. E esse aluno pobre vai para onde? Não tem nem dinheiro da passagem. A escola tem que estar perto de onde mora o aluno. E ela é sexista, porque estabelece que os meninos devem cortar o cabelo bem curtinho e as meninas têm que usar cabelo preso. Esse caráter excludente, esse caráter sexista, são complicados”, diz.
Ela também questiona o fato de o programa ter como base a contratação de militares aposentados com salários acima dos percebidos pelos professores e com a garantia de preenchimento de vagas de monitoria e coordenação que não estão disponíveis para as demais escolas da rede. Além disso, pontua que o programa acaba sendo uma desvirtuação de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), uma vez que os militares são pagos com esta verba.
“Esses monitores já estão aposentados. Um soldado raso recebe o dobro do salário de uma professora de formação média que trabalha 40 horas. Além da aposentadoria, ele passa a receber mais um subsídio para trabalhar como monitor nesse projeto. De onde vem esse dinheiro? Vem do Fundeb, que é para pagar e/ou complementar um salário digno para os profissionais da educação. E está indo para quem? Para pessoas que já recebem aposentadoria. Não está se pensando em contratar monitores, pessoas com especialização, pessoas que estudaram para trabalhar em escola, com caráter mais pedagógico. Que formação tem esses brigadianos? O que os habilita a tratar com crianças e adolescentes? São questões bastante preocupantes”, pondera. “Precisamos de monitores? Precisamos, mas não precisamos de militares dentro das escolas. Se tem dinheiro para pagar militares, então que se contratem monitores para escolas”.
Cinttia argumenta ainda que o fato de apenas a escola que decide aderir ao programa ter acesso à verba extra também é uma medida de caráter excludente. “As direções são seduzidas porque eles oferecem dinheiro. Para a minha escola, ofereceram R$ 650 mil. Então, as escolas estão sendo compradas. Mas por que umas escolas recebem verba e outras não, se os recursos vêm do Fundeb? Outra medida de caráter excludente desse projeto”.
A adesão ao modelo cívico-militar pressupõe que só poderão permanecer na escola os alunos que seguirem as novas regras. Mas o que acontecerá com aqueles que não cumprirem? Esse é o questionamento da deputada Sofia Cavedon. “A experiência de outros estados é a de padronização. O aluno que não aceita, não fica. Fracassa é expulso. Aí vai ter que estudar mais longe de casa. Qual o impacto na autoestima, nos estudos? Essa é a lógica da Escola Cívico-Militar, excluir quem não se adapta”, diz.
Há ainda, por trás do projeto de militarização das escolas, a lógica de controle ideológico dos alunos. Essa lógica veio à tona em novembro passado em um colégio cívico-militar do Distrito Federal. Conforme noticiou o jornal Correio Braziliense em 26 de novembro, a direção militar do CED 1 pediu que a vice-diretora civil da instituição, Luciana Pain, retirasse de um mural elaborado em razão do Dia da Consciência Negra imagens de policiais relacionadas a atitudes racistas e ao nazismo. Luciana se recusou e, segundo disse ao jornal, teve aberto contra ela um procedimento interno na Corregedoria da Secretaria de Educação do DF.
Após o caso ganhar notoriedade, a Associação dos Oficiais da Polícia Militar do Distrito Federal (ASOF/PMDF) emitiu nota repudiando o mural, que fora produzido pelos alunos. “A exposição não traz um debate enriquecedor”, diz a nota.
Sofia Cavedon aponta que essa lógica de controle também acabará por produzir a exclusão de alunos e famílias que não se adaptarem às regras da Ecim. E, acima de tudo, uma escola que se opõe à diversidade.
“É uma visão de educação moduladora de sujeitos, homogeneizadora, que estabelece regras a serem obedecidas de fora para dentro, de disciplina, e que esvazia a dimensão pedagógica da constituição de regras para o convívio social”, diz. “Ninguém esconde, nem mesmo o deputado Zucco, que tu vai aprender a fazer ordem unida, todo mundo se comportar da mesma maneira, cortar o cabelo do mesmo jeito, usar uniforme. É uma falsa construção de igualdade. A gente precisa construir a ideia da igualdade em cima da equidade, da diversidade. Todos são iguais porque todos têm direitos a ser o que são, a viverem a religião que queiram viver, a serem respeitados por sua etnia, por sua cor, pela classe social”, diz.
A deputada diz que o Estado, inclusive, se omite de fazer discussões sobre disciplina e convívio social na rede de educação ao aceitar a imposição da lógica militar. “A minha defesa é que as escolas incorporem as regras de convivência no projeto pedagógico, no sentido de que meninos e meninas aprendam e discutam as regras de convivência da escola, elaborem juntos e respeitem essas regras a partir da compreensão da necessidade delas. Uma construção de sujeitos autônomos, com uma consciência de cidadania, não vinda de fora para dentro. ‘Eu sou disciplinado porque tem alguém me controlando’. É uma diferença muito importante”, afirma. “A ideia da escola cívico-militar é do temor ao Estado, que tu tema o Estado e se submeta a uma regra.”
A professora Vera Peroni pontua que, após a redemocratização do País, foi ganhando força a defesa da democratização interna das escolas, a partir de construções de que a comunidade escolar deveria ser envolvida na escolha de diretores, de representantes e de projetos educacionais. Um processo, no entanto, que é minado diretamente pelo avanço do setor privado na escola pública.
“Ninguém aprende democracia senão na construção do dia a dia. E isso a gente já foi perdendo quando entrava dentro da escola pública, ou da própria política educacional nacional, setores vinculados ao mercado com uma proposta que era contrária à democratização da escola. Uma pauta de empreendedorismo, da bonificação, totalmente vinculada ao individualismo. E o individualismo é uma pauta comum ao neoliberalismo e ao neoconservadorismo, que não quer que exista um poder público que diga o que o seu filho tem que fazer. Eu, como indivíduo, defino se eu vou tomar vacina, se o meu filho vai ou não conhecer questões vinculadas à sexualidade.”
Ela avalia que as pautas conservadoras e as chamadas fake news foram instrumentalizadas para minar a confiança que os pais possuíam na escola, quando, pela lógica da gestão democrática das escolas, a participação deles era essencial na construção das instituições.
Para Sofia Cavedon, ao fim e ao cabo, o Pecim está inserido no mesmo projeto político de parlamentares da Assembleia Legislativa e da Câmara Municipal de Porto Alegre, onde ela ocupou uma cadeira até 2018, que têm promovido pautas como a educação domiciliar, a Escola Sem Partido e as mudanças curriculares que retiram espaço de disciplinas como a Filosofia.
“É um conjunto de incidências sobre a educação que combina com o projeto ainda hegemônico no Brasil do Estado mínimo e conservador, disciplinador. Um Estado que é mínimo, a lógica do mercado quem fica com as maiores fatias da riqueza pública, tudo que puder entrega à iniciativa privada, então é preciso calar a escola que constrói sujeitos libertários e cidadãos. É um conjunto de ações sobre a educação, inclusive a redução de recursos na ciência e na pesquisa, a intervenção nas universidades, como aqui na UFRGS, é um conjunto seríssimo de ataques à Educação pública e democrática que todos nós projetamos na Constituição de 1988”.
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