Minando a democracia
Minando a democracia
Se fosse necessária alguma outra demonstração de que a proposta de alteração da composição do Supremo Tribunal Federal (STF) tem o objetivo de controlar as decisões da mais alta Corte jurídica do país, a afirmação do líder do governo, deputado Ricardo Barros, de que seria uma reação à ação ativista do STF, que precisaria “ser enquadrado”, é a confissão de culpa que faltava.
Governos de diversos matizes já usaram essa tática para controlar o Supremo, desde os militares depois do golpe de 64 até governos de esquerda e de direita na América Latina. Nos Estados Unidos, a maior democracia ocidental, em diversas ocasiões houve tentativa de aumentar o número de integrantes da Suprema Corte, tanto para manter medidas consideradas progressistas quanto para conseguir uma maioria conservadora que alterasse decisões.
Entre nós, no regime militar, por meio do Ato Institucional nº 2, de 1965, o presidente Castello Branco aumentou de 11 para 16 o número de ministros do STF, para controlar a maioria, considerada de esquerda pelos militares. Com o AI-5, três juízes foram aposentados — Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal —, e dois renunciaram em protesto: ministros Antônio Gonçalves de Oliveira, presidente do tribunal, e Antônio Carlos Lafayette de Andrada.
Podendo nomear cinco novos ministros, Costa e Silva restabeleceu a composição da Corte com 11 ministros, número vigente até hoje. O presidente Jair Bolsonaro já defendeu o aumento de cadeiras do Supremo de 11 para 21, alegando que a atual composição da Corte é muito esquerdista, tema que retomou agora como mote de campanha. Na América Latina, vários países governados por esquerdistas ou direitistas alteraram a composição da Corte para controlar as decisões e manter uma aparência de normalidade democrática.
Alberto Fujimori, no Peru, e Hugo Chávez, na Venezuela, são exemplos de políticos com posições opostas, mas o mesmo objetivo. Nos EUA, recentemente, a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg (RBG), um ícone dos progressistas americanos, deu lugar a um plenário majoritariamente conservador, marcando por décadas a configuração da Suprema Corte. A nomeação da substituta de RBG deveria ficar para o próximo presidente que seria eleito dentro de 38 dias, de acordo com precedente dos próprios republicanos. Quando o ministro Antonin Scalia morreu, em fevereiro de 2016, o Senado americano, dominado pelos republicanos como agora, não permitiu que o presidente Barack Obama nomeasse o sucessor, sob alegação de que estava em seu último ano de mandato.
Os mesmos republicanos defenderam a nomeação por Trump do novo ministro da Suprema Corte. O golpe parlamentar dos republicanos fez a Suprema Corte ficar com maioria de seis conservadores contra três progressistas. Seria maior se não tivesse havido uma reação dos democratas. O juiz mais velho, Stephen Breyer, decidiu se aposentar voluntariamente, abrindo espaço para que o presidente Joe Biden pudesse nomear a primeira juíza negra da Suprema Corte, mantendo pelo menos os três juízes liberais.
A tese de que os democratas podem aumentar o número de integrantes da Corte para desfazer a maioria conservadora continua em discussão, caso mantenham a maioria no Senado nas próximas eleições. O democrata Franklin Roosevelt também ameaçou aumentar o número de integrantes da Suprema Corte para aprovar medidas de seu programa New Deal, lançado para combater as consequências da Grande Depressão de 1929, que estava sendo barrado pela maioria conservadora.
Propôs ao Congresso, em 1937, lei aumentando a composição da Corte para 15 juízes e estabelecendo a nomeação de um juiz adicional, até o máximo de seis, para quem superasse a idade de 70 anos, quando o mandato, até hoje, é vitalício. Em meio a uma crise institucional sem precedentes, a Suprema Corte mudou de posição devido ao juiz moderado Owen Roberts, cujo voto ficou conhecido como “the switch in time that saved nine” (“a mudança no tempo que salvou nove”, em tradução livre), e formou-se maioria a favor do “New Deal”.
Todas essas tentativas de controlar o Judiciário, não importa a tendência ideológica do governo, mostram que o sistema de freios e contrapesos que caracteriza a democracia incomoda governantes que pretendem impor suas vontades, que não convivem com o contraditório. Por isso mesmo, os constituintes em 1988 decidiram pôr entre as cláusulas pétreas a independência e separação dos Poderes da República. A proposta que o presidente Bolsonaro ameaça reviver num eventual segundo mandato é mais chantagem política do que possibilidade de realidade futura, mas diz bem de seu autor.
Merval Pereira, jornalista e escritor
Fonte: https://oglobo.globo.com/