Não dá para acabar com a fome

Não dá para acabar com a fome

“Não dá para acabar com a fome no nível que ela chegou no Brasil com esse teto de gastos”, alerta Graziano
Card Reconta Aí CNTE

 

 

“No supermercado a prateleira está cheia, o que está vazio é o carrinho que o consumidor está empurrando em direção ao caixa”, reflete o criador do programa Fome Zero, José Graziano da Silva. O ex-diretor da FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura - agência das Nações Unidas) e atual diretor do Instituto Fome Zero aponta diversas políticas sociais e econômicas que precisam ser retomadas para que o país volte a sair do Mapa da Fome. Na avaliação de Graziano, o Brasil voltou para o Mapa da Fome devido às decisões tomadas pelo governo Bolsonaro antes mesmo da pandemia. Segundo Graziano, Bolsonaro teve condições para investir na população, mas não priorizou isso. Veja a seguir a entrevista completa ao portal Reconta Aí.

Reconta Aí: O Bolsa Família é um dos programas mais importantes que colaborou para tirar o Brasil do Mapa da Fome. Dá para dizer qual o peso dele na redução da fome e da pobreza?

Graziano: Não há uma medida direta sobre isso. Mas há alguns indicativos importantes sobre o peso dos programas de transferência de renda. Há um estudo do IBGE de 2021 que mostra que sem programas sociais, a proporção de pobres teria ficado em 32,1% em dezembro de 2020. Com os programas sociais, essa proporção cai para 24,1%, uma reducao de 8 pontos percentuais, ou seja, 25%.

pesquisa recente da Vigisan é um outro indicativo interessante. Em abril de 2022, entre as pessoas que recebiam o Auxílio Brasil e o programa Bolsa Família, 44% passavam fome. Entre as pessoas que não recebiam nem Bolsa Família nem Auxílio Emergencial, o número subiu de 44,3% para 57,7% com insegurança alimentar grave. Tomando a população como um todo, a insegurança alimentar chega a 25,7% entre os que recebem o programa Bolsa Família ou o Auxílio Brasil.

Ou seja, um de cada quatro, mostrando que essa transferência de renda é insuficiente para acabar com a fome. Não se acaba com a fome apenas com programas de transferência de renda. Tem que haver melhores salários, geração de emprego de qualidade. Esse foi o caminho que o Brasil seguiu de 2003 a 2014.

Reconta Aí: Quais os outros programas sociais e econômicos que o senhor avalia como fundamentais para retirar, mais uma vez, o Brasil do Mapa da Fome?

Graziano: Vamos separar duas coisas. Existe uma emergência - quem passa fome não pode esperar, como já dizia o Betinho - e aí temos os programas de transferência de renda. E o auxílio emergencial nesse momento, que se for equivalente aos R$ 600 de maio de 2020, teria que ser de R$ 730. Esse tipo de programa é fundamental nesse momento, como são fundamentais as iniciativas do setor privado e da sociedade civil de arrecadação e doação de alimentos. É um tema emergencial!

Mas o que resolve realmente a fome é crescer e distribuir melhor o fruto desse crescimento. Nós temos que ter uma série de programas para geração de empregos de qualidade e programas para elevar o piso salarial, fazer uma melhor distribuição da renda. E não há melhor programa que a política de valorização do salário mínimo. Retomar a política de valorização do salário mínimo agora em janeiro de 2023, dando inclusive um abono de pelo menos de dez por cento, para cobrir a defasagem em que estamos. Então o caminho é por aí: geração de emprego de qualidade.

Um dos programas mais exitosos que tivemos é o programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar chamado PAA. Por quê? Porque por incrível que pareça um dos segmentos da população mais afetado pela fome é justamente a agricultura familiar mais pobre, que não consegue produzir nem para garantir sua própria subsistência. Então quando você abre um mercado para eles, de compras institucionais que usam esses produtos na merenda escolar, nos hospitais, até mesmo nas Forças Armadas e nas polícias, isso cria um mercado para essa agricultura mais pobre e isso tem sido muito importante ou foi muito importante na redução da fome no Brasil nesse contingente específico.

Reconta Aí: No governo Michel Temer foi aprovada pelo Congresso Nacional a Emenda Constitucional 95, conhecida como Teto de Gastos. É uma medida macroeconômica que, a pretexto de controlar despesas públicas, acaba por impedir investimentos do Estado em diversas áreas sociais. É possível avaliar o impacto do teto de gastos nesse cenário de retorno do Brasil ao Mapa da Fome?

Graziano: Eu acho que uma das poucas coisas que caminha para uma unanimidade nacional, pelo menos entre os economistas, é que com esse teto de gastos que nós temos hoje é impossível fazer os programas sociais que necessitamos. Nós estamos enfrentando uma situação de calamidade pública como já foi definido. Isso tem que ser relevado por um tempo. Temos que ter outra regra? Bom, essa é uma discussão ainda pendente. Os investidores querem uma certa garantia para os seus investimentos, mas precisa ter uma garantia também que o povo não vai passar fome, não vai faltar escola, não vai faltar saúde. E dentro dos limites hoje existentes isso não é possível. Não dá para acabar com a fome no nível que ela chegou no Brasil com esse teto de gastos.

Não podemos esquecer que nós temos 65 milhões de pessoas passando fome no Brasil, segundo o último dado da Vigisan. O número mais divulgado é da insegurança alimentar grave, onde as pessoas passam pelo menos um dia inteiro sem comer nada, de 33 milhões. Mas isso é um erro. Pessoas com insegurança alimentar moderada, que são outras 32 milhões no Brasil, precisam ser consideradas como passando fome também porque não comem o suficiente para ter uma vida saudável.

É a população da França. Nós temos no país hoje uma França inteira de famintos. Gente passando fome, com as consequências que isso tem pra impacto na saúde, na produtividade do trabalho e no crescimento intelectual e físico das crianças. Essa é a questão que me preocupa mais ainda, da gente comprometer uma geração inteira que passa fome na infância.

Reconta Aí: O governo Bolsonaro enfraqueceu ou abandonou vários programas sociais importantes para conter a pobreza. O governo federal dispunha de recursos no orçamento para manter os programas sociais dos governos anteriores, especialmente os programas dos governos Lula e Dilma? Quais ele poderia ter mantido? Ou a única solução seria acabar com o teto de gastos?

Graziano: O governo Bolsonaro podia perfeitamente ter mantido todos esses programas de segurança alimentar e nutricional inclusive ampliado no momento de crise. Não faltou recurso para isso. Foi uma decisão deliberada e que vem antes da pandemia. Na verdade, estava em curso um desmonte das políticas de segurança alimentar junto com outras políticas sociais quando veio a pandemia. E aí a única medida na contramão desse desmonte foi o auxílio emergencial em maio de 2020, que foi dado pelo Congresso Nacional no valor de R$ 600 porque a proposta original do governo era algo em torno de R$ 200. Era preciso de alguma maneira ampliar o existente Bolsa Família.

Então, deu R$ 600 para 65 milhões de pessoas. Não pode esquecer desse número. E depois foi reduzindo gradativamente até chegar aos 20 milhões de pessoas, que é absolutamente insuficiente para fazer frente a essa população faminta.

Se isso cabia dentro do teto de gastos? Eu acho que a pergunta que tem que ser feita é outra. Se cabia dentro do teto de gastos toda essa lambança que se fez com o orçamento secreto e com essa premiação política de recursos dos mais variados. Quer dizer, se tivesse invertido, se tivesse primeiro aplicado no gasto social, que eu acho que deve ser considerado um investimento em saúde, em nutrição das pessoas, combate à fome, eu tenho certeza de que haveria dinheiro suficiente.

Reconta Aí: Pela sua experiência, quanto tempo o senhor acha que o Brasil levará para sair novamente do mapa da fome?

Graziano: Nós já sabemos o que tem que ser feito. E temos instrumentos que não tínhamos antes, não só a legislação, como temos o Cadastro Único. Uma das coisas que mais demorou no início do programa Fome Zero, quando comecei a implantar, é que não tinha uma lista de pessoas. Você sabia que tinha gente com fome, mas não tinha o nome, o endereço e a conta bancária para fazer o depósito deles. Hoje nós temos um cadastro único que pode acelerar o processo, como temos legislação do PAA, como temos a legislação da merenda escolar com compras da agricultura familiar. Ou seja, uma série de leis que estão prontas para serem postas em prática. Isso pode abreviar o processo.

Por outro lado, nós temos uma dimensão de fome nunca vista no país. Exceto naquelas grandes secas do nordeste no início do século passado. Não temos isso, nem durante a guerra se tem notícia de um nível tão grande da população nessa situação. Sessenta e cinco milhões, em duzentos milhões, nós estamos falando de praticamente quarenta por cento da população passando fome. Um país de famintos. Isso demora um tempo. Mas eu acho que um número estimativo razoável é que em quatro anos dá para eliminar a fome mais grave, a insegurança alimentar grave, que são os trinta e três milhões de pessoas - que são literalmente as pessoas que não comem, não tem o que comer no dia a dia.

Aí temos que cuidar daqueles que estão comendo menos do que o necessário ou também daqueles que estão comendo mal que é um agravante da situação hoje. Nós temos uma percentagem importante - cerca de vinte e cinco por cento da população que está em insegurança alimentar leve. Ou seja, não come frutas, verduras, legumes; come praticamente só arroz e farinha. E isso deve levar a um debilitamento e a um problema crônico de obesidade. O Brasil hoje é um dos campeões de obesidade da América Latina. Isso afeta tanto ou mais as mulheres e crianças, que é a fome. Precisamos cuidar disso também, mas isso vamos dizer são etapas posteriores do processo. Acho que em quatro anos dá para acabar com a fome grave.

Reconta Aí: Como uma parcela significativa da população brasileira está em situação de insegurança alimentar em um país que é uma potência agropecuária?

Graziano: A FAO destaca que o Brasil e a América Latina sofreram o maior retrocesso nesse segundo ano da pandemia. E esse retrocesso se deve ao agravamento da crise econômica em função da dependência da região da exportação de commodities, principalmente commodities metálicas - caso aqui por exemplo do Chile que depende do cobre. Mas também queda dos preços das commodities minerais, que foi retomada agora no início de 2022 com um aumento do preço do petróleo em função da guerra da Ucrânia. O aumento do preço do petróleo contamina, vamos dizer, todos os outros preços de commodities, devido ao aumento de custos aí de transporte de custos de produção.

Boa parte dos fertilizantes são derivados de petróleo. Mas há um segundo elemento que a FAO destaca também que é muito importante, que é o nível de concentração de renda na região. E o Brasil é o campeão disso na América Latina. Nós temos um nível de concentração de renda o mais alto do mundo e é isso que faz impactar qualquer queda no poder aquisitivo, aumenta desproporcionalmente o número de pessoas na miséria. O faminto não tem acesso às condições básicas da sua sobrevivência, não tem dinheiro nem para comer.

Reconta Aí: A força política do agronegócio - uma das expressões é a bancada ruralista no Congresso Nacional - poderá inviabilizar a retomada e o fortalecimento de programas como o PAA ou o PNAE? Ou a criação de programas voltados para a viabilizar a política de subsídios à dieta saudável da FAO?

Graziano: Nós estamos vivendo uma situação no Brasil onde ao lado da pujança da nossa produção agropecuária que bate recordes sucessivos de exportação, mandando alimentos, cereais e carnes para o mundo todo, isso externamente e internamente, o outro lado da moeda é que temos um país de famintos. Muita gente espanta com isso, mas o que sempre digo é que infelizmente uma coisa não tem nada a ver com a outra, no sentido de ser considerada causa e consequência.

A pujança, o aumento das exportações brasileiras, é a saída encontrada para queda do poder aquisitivo, para redução do nosso mercado interno. Não tem mercado interno para absorver a produção. Então a saída é exportar. Não quer dizer que seja uma boa saída, mas é a saída encontrada para o agronegócio. O problema do consumo é outro setor. Não estamos falando de produção. A fome no Brasil hoje não é um problema de produção, não falta arroz, feijão. No supermercado a prateleira está cheia, o que está vazio é o carrinho que o consumidor está empurrando em direção ao caixa.

O que eu acho que é inviável politicamente é um país ser o maior exportador de frango e a população desse país comer pé de frango, pele de frango, carcaça de frango como a gente está vendo se multiplicar. Isso é fatal para a imagem do agronegócio, como tem sido fatal essa imagem de desmatamento da Amazônia. Eu acho que nenhum produtor de frango, nenhum grande exportador vai se sentir seguro em produzir mais, se essa situação transparece internacionalmente.

A bancada ruralista faz a defesa do agronegócio, dos grandes produtores. Ela vai querer sempre ter compensações. Então cada centavo que você der para o PAA, ou para o Pnae, vai ter que dar alguns milhares de dólares para eles na forma de crédito, na forma de isenção de impostos das exportações. O Brasil não paga imposto para exportar, diferentemente da Argentina, por exemplo, que tachou as exportações de soja, para criar um fundo para subsidiar o consumo de pão. Essa é uma medida que poderia ser feita no Brasil, subsidiar os produtos saudáveis, com uma sobretaxa do aumento dos preços de exportação.

Então há muitas políticas para fazer, mas não são as políticas prioritárias para a bancada ruralista. Eles vão se opor às políticas que não lhes interessem. Possivelmente o país vai ter que decidir na política, principalmente no início do governo. Daí a importância dessa eleição, não só do presidente, mas também da bancada que vai compor o Congresso. Se continuarmos com um Congresso formado basicamente com a bancada do boi, a bancada da bala, bancada ruralista entre outras, dificilmente vamos conseguir alterar ou promulgar as leis que nós precisamos para enfrentar essa catástrofe que o país está vivendo.

Por Silmara Cossolino (22/07/2022)

 

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