Não gostava de bombacha
O GAÚCHO QUE NÃO GOSTAVA DA BOMBACHA
“Nunca usei bombacha, não gosto de chimarrão e nem de me lembrar da última vez que subi num cavalo. Aliás, o cavalo também não gosta de mim.”
Luis Fernando Verissimo
Por João Guató
Luiz Fernando Verissimo sempre foi um cronista de paradoxos. Um gaúcho de nascimento, mas não de estampa. Nunca usou bombacha, não sorveu chimarrão com devoção, tampouco cultivou intimidade com cavalos — ao contrário, dizia que o cavalo também não gostava dele. Era como se tivesse nascido num território simbólico que exigia rituais de pertencimento, mas ele preferisse atravessá-lo com ironia e delicadeza.
No fundo, Verissimo nos ensinava que identidade não é uniforme de CTG, nem bandeira fincada no pampa. É, antes, uma negociação permanente entre o que se espera de nós e o que escolhemos ser. O gaúcho de bombacha é um mito coletivo, mas o gaúcho que escreve crônicas finas sobre política, futebol, amores e absurdos cotidianos é uma invenção muito mais poderosa.
Se havia um “não gosto” em cada traço regional, havia também uma astúcia: ao rejeitar os símbolos clássicos, Verissimo ampliava o território do ser gaúcho. Mostrava que não é preciso cavalo para cavalgar na imaginação, nem chimarrão para compartilhar afetos, nem bombacha para carregar ironia. Sua pátria verdadeira era a linguagem, e nela fundou estâncias de humor e crítica que atravessaram gerações.
Hoje, quando lembramos de suas tiradas, ouvimos o riso discreto de quem desmontava solenidades com meia dúzia de palavras. Um gaúcho que não queria ser gaúcho — e talvez por isso tenha sido o mais gaúcho de todos: aquele que não precisou de adereços para revelar a alma do Rio Grande e do Brasil, entre goles de café e frases que ainda galopam dentro da gente.
FONTE:
https://www.facebook.com/joaoguato?locale=pt_BR
ANALISTA DE BAGÉ DÁ JOELHAÇO PÓSTUMO NO MITO

Morreu hoje Luis Fernando Verissimo, e com ele se apaga uma das vozes mais lúcidas e bem-humoradas da nossa literatura. O cronista que usava a ironia como bisturi nos deixou órfãos de riso crítico, desse riso que incomoda mais que discurso inflamado.
Foi com essa ironia que olhou para Jair Bolsonaro. Não o chamou de presidente, mas de “cataclismo”. E Verissimo sabia do que falava: cataclismos não constroem, destroem; não governam, arrasam. Onde cabia Estado, houve Estado de sítio moral. Onde se esperava liderança, veio live no cercadinho. Onde se pedia civilidade, brotou grosseria de uniforme.
E ele provocava com simplicidade cirúrgica: “Como pode alguém, vivendo no Brasil, respirando nossas misérias e desigualdades, não ser de esquerda?” A pergunta pesa como bomba silenciosa sobre cada bolsonarista de condomínio, desses que acreditam que o Brasil termina no portão do Alphaville.
Mas o cataclismo não veio sozinho. Produziu cataclisminhos: seguidores de zap, tios do churrasco, influenciadores de quarteirão, todos empunhando fake news como se fossem relíquias sagradas. A ignorância virou hino nacional cantado em lives dominicais.
Verissimo enxergou neles o espelho de um país doente: se um Bolsonaro chegou à presidência, tudo é permitido — até transformar a estupidez em política de Estado. E por isso temos Abílio Brunini como prefeito de Cuiabá.
Entre seus personagens, nenhum faria melhor justiça ao momento que o Analista de Bagé. Meio terapeuta, meio boleador de charque, o homem de bombachas e divã já havia sido escalado por Verissimo: daria um joelhaço em Bolsonaro — “para inveja de muita gente”
Pois foi isso que aconteceu no velório simbólico do escritor: o Analista se levantou, ajeitou as bombachas e aplicou o golpe certeiro. O mito tombou — não pelo peso da História, mas pela graça de uma caricatura. Contra negacionismo, joelhaço. Contra cloroquina, joelhaço. Contra cercadinho de quinta-feira, joelhaço.
Nem a Velhinha de Taubaté, símbolo da crença ingênua nos governos, conseguiu manter a fé. Pediu reembolso das cartelas de cloroquina, alegando “propaganda enganosa”. O país degringolou a tal ponto que até a mais crédula das personagens desistiu da farsa.
O Brasil virou crônica mal escrita, e Verissimo, infelizmente, não está mais aqui para revisá-la.
Fica o antídoto: suas crônicas. Cada uma é dose de reforço contra o autoritarismo, gargalhada que imuniza, ironia que cicatriza. Se Bolsonaro foi cataclismo, Verissimo foi vacina.
E agora, quando rirmos da tragédia, será sempre com a lembrança de quem nos ensinou que rir é também resistir.