Negacionismo e sociopatia

Negacionismo e sociopatia

Negacionismo e sociopatia: por que o desprezo pelas pessoas e desrespeito às regras sociais na pandemia?

Em busca de respostas, o Sul21 entrevista a psicóloga clínica Roberta Bolla, para quem as pessoas que se negam a usar máscara e a não promover aglomerações estão tendo um comportamento sociopata. “A sociopatia é uma condição mental caracterizada pelo desprezo ou desrespeito às pessoas ou às normas sociais. Ou seja, a pessoa que continua pensando somente em si, nas suas férias, na vontade de encontrar os amigos, nas suas próprias necessidades, ela está desconectada da realidade e sem perceber a gravidade da situação”, explica Roberta, habituada a atender em seu consultório adolescentes e adultos.

A psicóloga explica que a expressão “negacionismo”, tão usada atualmente, tem origem na psicanálise. Sigmund Freud, “o pai da psicanálise”, tratou do tema num texto clássico intitulado A negação, em que analisa a atitude humana diante de realidades mais dolorosas ou complexas do que se consegue aguentar. A atitude é compreendida como um mecanismo de defesa.

“Se não estou conseguindo aguentar tanta pressão, consigo então ‘lidar com a situação’ negando, porque a partir dali é muito doloroso”, diz Roberta. No Brasil, a crise ganhou contornos particulares a partir do momento em que o vírus foi tratado por autoridades como um “inimigo político”. Com isso, a necessária união da sociedade para enfrentar o problema se transformou em mais um elemento de polarização. “Parece que o mais importante é provar o próprio ponto de vista. Vai se criando um poder para quem abertamente desafia o perigo”, avalia.

Traçando um paralelo com o comportamento do adolescente, caracterizado pela arrogância e a não aceitação da autoridade, Roberta exemplifica: “Aquele jovem que é o mais desafiador, o mais autodestrutivo, também não é o mais popular?”. A psicóloga destaca a importância de a sociedade perceber que está tendo um comportamento adolescente ao negar a realidade. E assim como para o jovem rebelde, ela afirma ser preciso estabelecer limites.

“Tanto na infância e na adolescência, quanto numa sociedade, a ideia do limite vai balizar onde termina o meu direito e começa o meu dever. E esse dever, na ideia do outro, me parece ainda muito incipiente porque quando eu não uso a máscara corretamente, estou pensando só em mim, porque a máscara é ‘desagradável pra mim’, não estou respeitando o outro que está ao meu lado”, explica.

Roberta ainda avalia que a falta de unidade no discurso das autoridades prejudica o enfrentamento da crise. Enquanto no começo da pandemia, há cerca de um ano, houve mais medo e respeito com o vírus, agora a doença caiu na banalização.   

Sul21: O que é o comportamento sociopata?

Roberta Bolla: A sociopatia é uma condição mental caracterizada pelo desprezo ou desrespeito às pessoas ou às normas sociais. Ou seja, a pessoa que continua pensando somente em si, nas suas férias, na vontade de encontrar os amigos, nas suas próprias necessidades, ela está desconectada da realidade e sem perceber a gravidade da situação. Percebo isso até mesmo como um comportamento delirante. Parto do pressuposto de que, de perto, todo mundo é normal, diferentemente da frase conhecida de que “de perto ninguém é normal”. E por quê? Porque é normal ter problema, e todos nós temos direito a, pelo menos, uma psicopatologia. A questão é quando a pessoa está excessivamente refratária ao fato ou a algum ponto de vista mais regressivo, e então esse estado passa a ser um estado alterado, ou seja, ela passa a ter um delírio e ela começa então a se encaminhar para uma patologia, e a sociopatia é uma patologia.

Sul21: Isso é um comportamento consciente ou inconsciente?

Roberta Bolla: É um comportamento inconsciente. As pessoas que estão com mais consciência, estão conseguindo perceber e lidar mais com esse momento de insegurança que estamos vivendo. O delírio tem um componente muito forte de negação. Em algum momento da vida, todos nós temos algum tipo de delírio. Por exemplo: a paranoia é um delírio de perseguição. O ciúme patológico é o delírio de que “com certeza estou sendo traída”. Essa certeza é uma das características da formação delirante, a pessoa que está absolutamente certa e tem uma ideia fechada e inquestionável, ela não tem mais o comportamento balizado pela ciência. Por si só, o que é científico pressupõe o questionamento, o debate de ideias, o levantamento de hipóteses, então a certeza absoluta acaba cegando o indivíduo.

Com relação à covid-19, temos muitas incertezas. O conhecimento científico sobre o funcionamento do vírus e estratégias de tratamento ainda é um terreno de tentativa e erro. A gente sabe sobre o mecanismo de transmissão e a alta periculosidade. Então isso tudo é difícil de lidar porque nos coloca num lugar de muita insegurança. A única certeza que temos é a de seguir os protocolos de segurança e aí aparece a negação, mesmo quando representa um risco de morte. Isso é que é tão assustador e tem nos chocado nesse momento, em como diante de um risco tão grave, não só com a própria vida, mas também dos familiares e amigos, a gente ainda percebe pessoas lutando contra a ideia do uso correto da máscara e do distanciamento social.

Sul21: O comportamento de negação pode ser um mecanismo de defesa para ignorar o risco?

Roberta Bolla: Sim. A expressão “negacionismo” não é nova, foi usada por Freud (Sigmund Freud), que tem um texto clássico chamado “A negação”. A expressão “negacionismo” vem da psicanálise. Nesse texto, Freud escreve sobre nossa atitude diante das realidades que são mais dolorosas ou complexas do que aquilo que a gente consegue aguentar. Ou seja, é um mecanismo de defesa. Se não estou conseguindo aguentar tanta pressão, consigo então “lidar com a situação” negando, porque a partir dali é muito doloroso. E aí já entramos na psicopatologia, porque o ser que está se sentindo desamparado perante o mundo, ele está precisando, inclusive pra se fortalecer, arrebanhar outros inseguros pra se sentir mais forte. Somos um ser gregário, é importante se sentir em grupo pra se fortalecer.

As redes sociais conseguem transmitir claramente a necessidade que a gente tem de andar em bando. A gente não anda mais em bando fisicamente, mas pela internet e redes sociais sim. Ficou claro que uma série de teorias conspiratórias ganharam muita força pelas redes sociais. Começa a ficar estranho… quanto mais seguidores tenho no Instagram, mais certa estou, independente do meu conteúdo. O sofrimento psíquico não está mais associado ao problema em si, mas fica o ideal de felicidade, liberdade e prazer, sem qualquer responsabilidade.

Sul21: O comportamento negacionista tem sido visto em outros países também, mas no Brasil parece ser mais forte, considerando o altíssimo número de mortes. Algo explica isso?

Roberta Bolla: Temos uma história muito jovem, uma cultura muito jovem, nosso processo de evolução, como sociedade brasileira, está em formação. Se a gente comparar com o processo de evolução do ser humano, por exemplo, o Brasil ainda está numa fase infanto-juvenil. A criança quando começa a aprender, logo percebe o poder da negação. Tem uma fase em que a criança diz não pra tudo e fica pedindo para os pais o porquê de tudo. Essa fase do porquê é uma descoberta de que ela pode se auto afirmar negando o saber dos pais. E quem são os pais nesse momento? As autoridades. Isso traz um poder pra criança, que se sente mais segura por ganhar um poder que até então ela não tinha. Ela consegue criticar as autoridades, que no caso da criança são o pai e a mãe.

Isso aparece novamente na fase da adolescência. Na adolescência, o sujeito começa a criar teses, até improváveis, pra travar grande embates e assuntos polêmicos justamente pra se auto afirmar. E aí não só se auto afirmando como indivíduo, mas ele precisa do bando, dos iguais, dos outros adolescentes. E quem são as figuras de autoridade? O pai e a mãe, que nesse momento da adolescência passam a ser o inimigo comum ao grupo de adolescentes. Mais adiante, com a maturidade, a gente consegue aceitar a autoridade dos pais ou de outras figuras. E nesse momento, pra sociedade, as figuras de autoridade são os professores, os cientistas, os pesquisadores, os profissionais de saúde. A gente percebe que povos maduros, como alemães e italianos, têm outra história como nação e lidaram de uma maneira mais responsável.

Sul21: Então é por isso que esse comportamento negacionista é visto em várias faixas etárias, mas chama mais atenção nos jovens?

Roberta Bolla: Sim, porque a característica básica da adolescência é a arrogância. É importante entender que, por adolescência, seria a faixa etária dos 13 aos 20 anos, mas culturalmente… recebo no meu consultório adolescente de 50 anos. Então já não há mais essa limitação cronológica. A gente percebe, cada vez mais, que a adolescência se estendeu e levou consigo a sua característica básica que é a arrogância. Por isso o adolescente muitas vezes é aquele sujeito que incomoda o meio familiar, porque ele traz o componente da arrogância muito forte. Muitas vezes ele é visto como um ser desagradável justamente pelo seu egocentrismo, que ainda é um resquício dos conteúdos infantis.

Então como nação, estamos ainda na fase juvenil porque temos muito forte na nossa cultura a arrogância, o egoísmo e a preocupação com o próprio prazer. São as pessoas que são muito preocupadas em sair de férias, ir passear, encontrar os amigos, todas com um discurso consistente de “com todos os protocolos de segurança”. Então, quanto mais tempo levar para as pessoas perceberem que a situação é gravíssima, mais tempo vamos ficar nessa situação gravíssima. Numa nação, as figuras de autoridade são, primeiro, as oficiais, mas também as autoridade científicas e, nesse momento, é que tem que mostrar o respeito ao conhecimento de pessoas que estão estudando e trabalhando com a saúde. E acatar. O adolescente normalmente não acata os seus pais, ele desafia. Por isso, percebo que nossa nação está tendo um comportamento adolescente e, infelizmente, as figuras de autoridade que têm o conhecimento estão sendo desvalorizadas por figuras de autoridade que foram nomeadas. É como se o pai desvalorizasse a figura da mãe na frente do filho.

O presidente da República não fazer o uso correto da máscara é desautorizar essas pessoas que, de fato, são autoridades e estão dizendo: “Vocês precisam mudar de comportamento para que juntos possamos sair disso”. Nós já vínhamos num momento político do País extremamente polarizado e entramos na pandemia e seguimos na polarização, sem nos darmos conta de que nós todos, como País, estamos perdendo.

Sul21: Como ocorre o processo de banalização da morte, como vemos hoje, diferente do grande impacto que tiveram, no ano passado, as cenas na Itália?

Roberta Bolla: É mais uma vez um mecanismo de defesa. Num primeiro momento, quando começamos a nos deparar com um grande número de mortes, ficamos assustados, congelados. E ali então realmente tudo parou, naquele momento estávamos fazendo o verdadeiro isolamento social. Agora, não estamos mais fazendo isso mesmo estando em bandeira preta. Parece que o ponto de virada, infelizmente, vai chegar quando todos nós tivermos o vírus muito próximo de nós, e é o que está acontecendo agora. Antes era na China, depois na Itália, depois veio pro Brasil, mas era sempre lá no jornal e, à medida em que o vírus foi se aproximando do cotidiano de cada um de nós, algumas pessoas foram entrando nesse negacionismo para continuar trabalhando, continuar circulando. Há um processo de defesa ignorando que, cada vez mais, esse vírus e a possibilidade de morte estão batendo à nossa porta.

Acho que infelizmente o ponto de virada, porque nos próximos dias a crise ainda vai piorar, será quando essa negação cair por terra e a pessoa começar a pensar: “Como me deixei levar nesse comportamento?”. E então surge o comportamento de culpa. Só que, até lá, muitos inocentes já terão morrido e isso é irreversível. Nós ainda podemos nos preservar.

 

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