Neoliberalismo vira fobia social
Quando o neoliberalismo vira fobia social
22/07/2025
Por JORGE BARCELLOS*
As imagens dos carrinhos de catadores sendo colocados no caminhão da empresa de lixo viralizaram.
“Não somos criminosos.”
Fagner Antônio Landrey, carrinheiro,
Jornal do Almoço, 17/7.
O Jornal do Almoço (RBS TV), da quinta-feira passada (17.7), dedicou amplo espaço ao que aconteceu no último dia 14 no loteamento Santa Terezinha, conhecido como Vila dos Papeleiros, em Porto Alegre, quando uma ação da Prefeitura resultou na destruição dos carrinhos utilizados pelos moradores. A operação foi precedida, na sexta-feira (11.7), pela operação “Lei e Ordem – Via Dignitatis”, organizada pela Polícia Civil e Brigada Militar para o cumprimento de 17 mandados de busca e apreensão, além de mandados de prisão de foragidos.
As imagens dos carrinhos sendo colocados no caminhão do DMLU para serem levados ao aterro sanitário, segundo a Prefeitura em nota divulgada ao Jornal do Almoço, viralizaram. A reportagem entrevistou trabalhadores da coleta, como Fagner Antônio Landrey, que afirmaram que a ação “impacta na sobrevivência das pessoas, [o carrinho] é o único instrumento de trabalho que as pessoas têm. Ser catador é uma profissão regulamentada, não somos criminosos, a gente quer que os carrinhos sejam devolvidos e que a gente tenha o direito de trabalhar na rua, fazer nosso trabalho como qualquer outra categoria”. O prefeito afirma que assinou decreto em 25 de junho que define que carrinhos autuados seriam enviados à EPTC, já que a lei de 2014 considera infração a triagem ou a catação de resíduos em logradouros públicos. A EPTC diz não ter a ver com a operação e nem está com os carrinhos. “Falaram que era para combater tráfico de drogas na região e furtos de cabos. Mas já vieram jogando tudo fora, os carrinhos de trabalho, o material reciclado”, relata Ismael Luiz da Silva, dono de um ponto de reciclagem no bairro, em reportagem da Matinal (disponível aqui). Minha hipótese a partir das notícias disponíveis nas redes sociais é que a realização de duas operações – uma policial na sexta e outra de limpeza urbana na segunda – em sequência fez os moradores se sentirem perseguidos pelos órgãos públicos, principalmente pelo significado que o recolhimento dos seus carrinhos possui. “No início deste ano, a Matinal mostrou as tentativas da União Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis do Brasil (Unicatadores) em debater o projeto de Parceria Público-Privada (PPP) da gestão do prefeito Sebastião Melo, que pretende conceder a gestão do lixo por 35 anos a uma só empresa por meio de um contrato bilionário”, diz a jornalista Valéria Bressan, na reportagem. Entendo, salvo prova em contrário, que para os moradores, recolher os carrinhos significa uma tomada de posição da Prefeitura em favor das empresas que querem assumir o controle do setor e não dos catadores.
Uma operação de guerra
A reportagem de Matinal relata que a operação contou com cerca de 400 policiais que chegaram às 6 ou 7 horas da manhã, fiscais da prefeitura e funcionários do DMLU. “Nunca me deram ajuda para tentar regularizar meu ponto de reciclagem. A ajuda que dizem que dão é essa: infração para a gente correr atrás. Não deixam mais ninguém trabalhar na Vila dos Papeleiros”, desabafa um morador na reportagem. A ausência de rodas, argumento da Prefeitura para classificar os equipamentos como inservíveis e os recolher, é na verdade a estratégia dos catadores que retiram as rodas para evitar furtos. Tamanho é o desconhecimento dos órgãos públicos da cultura da comunidade que, segundo a reportagem, até outro carrinho foi considerado “material inservível” e recolhido, o carrinho-biblioteca. “Iniciativa do Museu de Resgates, projeto que reúne em um acervo fotografias, pinturas, câmeras antigas, livros e outros objetos encontrados pelos catadores de recicláveis. É uma biblioteca itinerante, em cima de um carrinho de papeleiro adaptado. Ele para na praça da Vila, na escola Porto Alegre, na Praça Brigadeiro Sampaio. Estava estacionado aqui na frente e, como outros carrinhos, foi levado como sucata”, conta Antônio Carboneiro, idealizador do projeto. “Livros encontrados em meio aos resíduos descartados pela população da capital são recolhidos, guardados e cuidados. No carrinho-biblioteca, eram distribuídos pela cidade. Nós não vendemos livros. A pessoa pega e leva para ler, com a promessa de retornar. Se ela não retornar, minha ideia é que o pessoal leia e vá passando de pessoa em pessoa”, finaliza Carboneiro. Ele enfrentou dois incêndios, em que perdeu todo o acervo de livros que coletava, mas resistiu e criou o carrinho-biblioteca”, cita ainda a reportagem de Matinal.
Eu posso estar errado, mas entendo que os pobres se transformaram em alvo de intervenção violenta em Porto Alegre desde que o projeto neoliberal conquistou o poder no estado e no município. Assim como Vladimir Safatle vê em artigo recente as universidades públicas como alvo da ofensiva neoliberal (disponível aqui), eu proponho, seguindo sua lógica, que também os pobres de Porto Alegre são alvo desta política a partir de fatos como a retirada de colchões dos moradores de rua pelo DMLU em 2016, na Avenida Borges de Medeiros, passando pela operação de guerra para remover as 70 famílias da ocupação Lanceiros Negros, na rua da Ladeira, em 2017, à retirada das 100 famílias que ocupavam o prédio da Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (FEPAM) em 2024 e agora, com a retirada dos carrinhos dos trabalhadores da Vila dos Papeleiros. Esses casos não podem ser vistos de forma isolada, mas em um continuum que nos mostra que estamos diante de manifestações da aporofobia como característica de governo e os pobres como sujeito de tensionamento no neoliberalismo. É o que eu chamo de neoliberalismo aporofóbico, a forma do capitalismo neoliberal caracterizada pela aversão a pessoas pobres ou a pessoas em situação de vulnerabilidade econômica. Não se trata de desprezar as ações do poder público em outras instituições, áreas e pessoas em benefício dos mais pobres, como realmente faz: trata-se de apontar que, nos exemplos citados, cabe aos gestores uma autocrítica para que elas não se repitam, as ações que vão da reintegração de posse violenta à destruição de instrumentos de vida e de trabalho de camadas pobres. Eu entendo, salvo melhor juízo, que elas são ações aporofóbicas de estado contra os pobres que devem ser combatidas, que visam retirá-los de seus últimos lugares de visibilidade social, e que mostram, diferente do discurso que as autoridades dizem defender, que seu alinhamento em sequência não é um dado isolado das políticas de estado e município, mas é um projeto alinhado às políticas hegemônicas neoliberais de expulsão social. Se não fizerem nada em contrário, no futuro seus representantes políticos serão associados à reencarnação de Justo Veríssimo, o personagem de Chico Anysio que ficou conhecido pelo bordão “Quero que pobre se exploda”. É isso que desejam nossas autoridades? Eu espero que não.
As camadas populares sempre foram um alvo indireto das políticas de predação neoliberal pela omissão ou fraqueza das políticas públicas, incapazes de resolver os problemas dos cidadãos das periferias. Da retirada de colchões no governo anterior, passando pela dissuasão das últimas cinco famílias que ainda moravam no bairro Sarandi junto ao Dique, chegando à retirada das carroças dos coletores seletivos, salvo maior juízo, o que eu vejo é os pobres sendo tratados como objeto de uma intervenção direta dos poderes públicos, suas casas transformadas em um espaço de tensão, seus instrumentos de trabalho destruídos, ações típicas de governos de direita que se apoiam na estigmatização destas classes sociais, oferecendo-lhes tratamentos similares às formas de criminalização que já sofreram servidores públicos e professores quando atacados com gás de pimenta por órgãos de segurança no momento em que reivindicavam seus direitos. Estas ações têm como justificativa a necessidade de organização da ordem social, argumento que se revela falso quando vemos como suas ações se articulam com grandes interesses do capital.
A direita e os pobres
A direita e a extrema direita sabem que, para garantir a expansão do capital, é preciso uma articulação, um modo de fazer política que, ao menos, afete as condições de vida destas populações. Elas sabem como criar condições para a expansão do capital a partir da erosão provocada nas condições de sobrevivência das classes populares. O serviço público é um lugar de contradições porque nele convivem servidores efetivos comprometidos com a construção de um estado de bem-estar social e cargos em comissão comprometidos com a agenda particular dos representantes no poder. Essa porosidade entre fins públicos e privados é responsável pela disseminação em seu interior de ações que jamais poderíamos imaginar serem feitas por um poder público. Eles mobilizam a aceitação pelos demais setores sociais de suas ações, pois fazem da distância social a base da indiferença coletiva. Os colchões dos moradores de rua sujam o viaduto da Borges? Lixo para eles. Os carrinhos dos catadores atravancam a rua? Lixo para eles. Quem se importa?
A remoção de colchões de moradores de rua e carrinhos dos catadores é simbólica. Ela importa porque é a prova de que o que é dado a uns é tirado de outros. Eu penso que, se a prefeitura e o governo do estado são capazes de destinar 7 milhões para a realização do South Summit Brazil, bem poderiam destinar recursos para recuperar os carrinhos danificados pelo uso dos recicladores, se fosse o caso, o que os próprios desmentem, ou garantir as casas reivindicadas pelos moradores do Sarandi. Eu penso que a Bienal do Mercosul, recentemente encerrada e que teve autorização de captação, via Lei de Incentivo a Cultura, inclusive a estadual, de R$ 999.540,74, e que teve como tema “Estalo”, que partia do gesto de se friccionar os dedos como metáfora de diversos processos sociais, tivessem tido o “estalo”, no sentido de ideia, de adquirir ou trocar os carrinhos velhos destes moradores por novos para a criação de suas instalações ( um carrinho é uma ninharia de 2.500 reais comparados aos preços de mercado destas obras) aí sim seus organizadores teriam cumprido seus objetivos de mostrar o movimento de transformação de um estado para outro onde realmente importa: junto as camadas mais pobres da população. É verdade que o próprio prefeito já defendeu a requalificação desses cidadãos, mas por suas ações entendo que agora recuou desta posição para benefício dos empresários do setor. É também verdade que quem decide o que é arte são os artistas, mas se a arte de mercado é sempre um negócio, então por que eles iriam se importar com carrinheiros? Porque eles são pobres. E é assim que, como a espuma do mar, desaparecem os recursos e políticas de uns para benefícios de outros, que instrumentos de trabalho das pessoas pobres são destruídos.
Precisamos nos preocupar com os pobres porque são pessoas. Mas o que vemos com a ascensão das políticas neoliberais é o fim do discurso de auxílio aos pobres, fim das políticas de atendimento aos mais necessitados da cidade, simplesmente porque a cidade não é mais deles, é do capitalismo predador sob as mais diversas formas de ações de nosso empresariado. Não é necessário que milhares de pessoas morram para que haja um genocídio. Basta que seus elementos simbólicos sejam produzidos: nos termos de Vladimir Safatle, eles têm “os elementos clássicos de apagamento do luto, de dessensibilização, desumanização, indistinção entre civis e combatentes e destruição generalizada.” Eu entendo que o silêncio de intelectuais, servidores públicos e sociedade em geral com estes casos contrasta com a compreensão de que os moradores restantes da Vila Dique foram dissuadidos a desistir de seus objetivos e que os carrinheiros foram vítimas de violência. Aliás, quem entendeu o que estava acontecendo eram apenas as vítimas, que gritaram contra a violência. Eles entenderam que levar seus carrinhos, mesmo estragados, era desrespeito, assim como não ter atendidas as reivindicações de suas moradias. Eles perceberam que era mais uma política que agia pela violência, que visava destruir seus instrumentos de trabalho. É verdade que seu único órgão, o jornal Boca de Urna, vem há meses denunciando notícias de violência. Tarde demais: os veículos da RBS trataram de silenciar a divulgação da ação no primeiro após o acontecimento, o que realmente prejudicava seus patrocinadores, fazendo uma reportagem light onde o comentarista Paulo Germano mostra indignação. Você consegue perceber as alianças de interesses? Estas alianças não somente fazem a limpeza dos pobres da cidade, mas fazem o apagamento de suas vozes, de seu sofrimento, o que é muito pior. É isso, nos termos de Safatle, que “merece nossa indignação e revolta.” Safatle fala do assassinato da universidade e eu sigo sua lógica interna para falar do assassinato simbólico dos pobres.
Aporofobia: os pobres como alvo
Os pobres são um alvo da política neoliberal local. É o enquadramento neoliberal de que fala Safatle, o que significa não apenas interagir para que sejam objetos de forças econômicas, como também sejam incluídos na lógica predatória das forças neoliberais. Na lógica das empresas, eles sofrem os efeitos desta luta, onde são tratados como perdedores, pois não são atrativos, moram em capital fixo de alto valor – terrenos – ou transformam um novo objeto de riqueza – o lixo; não são bons consumidores, incapazes que são de constituir algum mercado consumidor de valor. Há muitas maneiras de governos neoliberais calarem a voz dos pobres. Isso é quase natural no país. O governo Bolsonaro foi uma verdadeira escola de exclusão, já que, a começar pelas políticas das vacinas, satanizou as formas de proteção à saúde dos mais pobres. A maneira dos governos neoliberais de tratarem os pobres é sempre como as empresas fazem, a partir da exclusão pura e simples. Como os jovens dos rolês que foram expulsos dos shoppings centers, quem não consome não tem direito de ficar no lugar.
Eu diria que o modelo que iniciou com o prefeito anterior continua como atual, o de uma luta contra o pobre. Eu diria que, em termos genéricos, o neoliberalismo de que são portadores é aporofóbico. Adelia Cortina, em A aversão ao pobre: um desafio à democracia (Contracorrente, 2020), afirma que “incomoda, isso sim, porque são pobres, que vêm a complicar a vida dos que, bem ou mal, vão se defendendo. É o pobre que incomoda, o sem recursos, o desamparado, o que parece que não pode trazer nada de positivo ao PIB, o que, aparentemente, pelo menos, não trará mais do que complicações. É o pobre que, segundo dizem, aumentará os custos da saúde pública, tomará o trabalho dos nativos, será um potencial terrorista, removerá, sem dúvidas, o “bem-estar” de nossas sociedades. São amostras palatáveis de aporofobia, de rejeição, aversão, temor e desprezo ao pobre, ao desamparado que, ao menos aparentemente, não pode devolver nada de bom em troca” (p. 18).
Quando uma empresa pública de coleta e remoção de lixo retira os carrinhos dos recicladores, ou seus pertences, ela passa uma mensagem clara de aversão, de desprezo, “o rechaço a quem não pode entregar nada em troca” (p. 19), central na definição de Aporofobia. Nos termos de Cortina, os carrinheiros são excluídos do contrato político, esquecendo que o objetivo do Estado de Direito é justamente a proteção social destas classes. Não é que a prefeitura, em outras esferas, não faça algo de bom pelos pobres, o que evidentemente faz, mas neste ponto, em relação a uma categoria e em regiões específicas, estabelece uma dinâmica de produção de exclusão de forma contínua, terminando por ampliar a precarização na qual essas categorias se encontram. O prefeito tentou uma dinâmica de reengenharia de classe no passado, é verdade, oferecendo qualificação para recicladores, mas esse projeto também era baseado numa mistificação que é o binômio formação/empregabilidade, o que no atual modelo capitalista também não ocorre.
O homo reciprocans
Por que os pobres são descartados do jogo social? Cortina remonta às origens da aporofobia na capacidade dos seres humanos de retribuir. Ele é o tópico da antropologia evolucionista que substitui a evolução humana não pela seleção natural, mas pelo altruísmo biológico, que significa que não apenas os egoístas triunfam na luta pela vida, mas também aqueles que “investem parte de suas energias na adaptação dos outros” (p. 91). Seguindo nessa linha, Cortina afirma que “há ações altruístas que não são explicadas pelo parentesco, mas pela expectativa de reciprocidade” (p. 92). Isso significa a substituição da “figura do homo oeconomicus, maximizador de seu lucro, pelo do homo reciprocans, do homem capaz de dar e receber, de retribuir, cooperar, que se move racionalmente” (idem). A sociedade neoliberal, essa espécie de sociedade contratual perversa em que vivemos, é regida por um princípio de troca que diz que qualquer “ação espera um retorno”. Nesse sistema, os governos então teriam a tendência de tentar distanciar-se das pessoas que possam perturbar esse fundamento, o que significa excluir aqueles que “parecem não contribuir com nada de positivo para sua própria sobrevivência e bem-estar. Infelizmente, na sociedade contratualista e cooperativa de troca, excluiu-se radicalmente o estranho, o que não entra no jogo da troca, porque não parece que possa oferecer qualquer benefício ou retorno. Esse é o pobre em cada âmbito da vida social” (p. 94).
Quando autoridades públicas destroem os carrinhos dos carrinheiros, dos recicladores, elas estão reconhecendo que estes grupos sociais não têm nada a dar em troca neste mundo baseado no jogo de dar e receber. Eles são os sem poder, como outros qualificados por Cortina que “podem ser os incapacitados psíquicos, os doentes mentais, os pobres de solenidade, os sem papéis, os descartáveis, os sem amigos bem situados. Em cada esfera social, aqueles que não podem devolver os bens que nela são trocados, que podem ser favores, empregos, cargos, dinheiro, votos, apoio para ganhar as eleições, honras e regalias que satisfazem a vaidade.” Os pobres, os carrinheiros, são os novos “áporoi”, os que são excluídos porque simplesmente não têm nada de bom a oferecer em troca.
Os recicladores não têm mais lugar onde até o lixo deve ser empresariado. O detalhe que chama a atenção de Safatle e que deve ser aplicado ao caso dos recicladores é que, em ambos casos, há uma variável negligenciada: “saiu de cena a crença na necessidade de modelos de gestão baseados na conciliação e integração de setores da população potencialmente desestabilizadores, como os trabalhadores pobres. Aqui, o poder público cede de seu lugar de operar na mediação dos conflitos sociais, para a aceleração pura e simples de exclusão das categorias que não servem mais para setores novos da indústria, como a da reciclagem do lixo. Agora, nada de preservar catadores e suas formas arcaicas de trabalho e sobrevivência; é preciso empresariar também o lixo, fonte de lucro e concentração de capital. Se é preciso excluir para aumentar o lucro, não há por que preservar os carrinhos dos catadores.
O compromisso do PT com os pobres
Sabemos que a política de apoio e organização dos movimentos de catadores em Porto Alegre iniciou nas gestões do Partido dos Trabalhadores. Caroline Silva da Silva e Luís Felipe Machado do Nascimento, em 25 Anos da coleta seletiva de Porto Alegre: história e perspectivas (disponível aqui), afirmam que, depois de décadas de descaso das autoridades públicas municipais com a questão social do lixo, ela foi tratada como política pública com os governos do Partido dos Trabalhadores em Porto Alegre, a partir de 1989. “A inspiração da Coleta Seletiva de Porto Alegre surgiu num seminário promovido pelo Instituto Goethe e pela AEBA, com participação ativa do DMLU, onde se discutiu a relação da coleta seletiva e a reciclagem dos resíduos com a recuperação de marginalizados. A partir deste seminário, o DMLU definiu o formato do projeto de Coleta Seletiva a ser implantado em Porto Alegre. A primeira ação tomada pela prefeitura, naquele ano, foi iniciar o projeto de recuperação da área degradada dos lixões das Zonas Sul e Norte. No lixão da Zona Norte, houve um extenso trabalho de conscientização e reabilitação dos catadores que lá trabalhavam. Foram estabelecidas regras e obrigações que incluíam a proibição de instalar moradia no lixão; a permanência só era permitida em horário de expediente, além de se proibir o trabalho infantil nos lixões. A Coleta Seletiva permitiu que os trabalhadores fossem tirados de cima do lixo e realocados em lugares adequados, dentro da área do lixão, mas afastados do local onde aconteciam os desembarques dos caminhões da coleta tradicional. Neste novo espaço, os trabalhadores faziam a triagem do material vindo exclusivamente da Coleta Seletiva, a qual, por sua vez, propiciou a inclusão dos chamados “catadores dos lixões”, oferecendo melhores condições de trabalho e melhor remuneração. A partir de então, em vez de recolher material com valor comercial do lixão, os trabalhadores passaram a fazer a triagem do “lixo seco” recebido, isto é, resíduos já separados pela população e entregues para a Coleta Seletiva.”
O que constato é uma adesão instável dos órgãos municipais, como o DMLU, nesse horizonte de silêncio, cooptação e exclusão enquanto órgão que se torna instrumento a serviço de um projeto neoliberal também no campo da reciclagem. Neoliberalismo do lixo. Fim do projeto de inserção de catadores no processo produtivo através de seu trabalho, substituído por um modelo ligado a setores capitalistas em ascensão. Nesse novo contexto, as decisões de políticas públicas para resolver os problemas dos mais pobres são substituídas por aquelas que resolvam os problemas dos mais ricos: a gestão dos conflitos não tem mais ênfase nas políticas públicas de emprego e trabalho, mas abre, por omissão, para a destruição das capacidades e ferramentas de trabalho que não se integram mais na lógica capitalista do setor específico. A criminalização simbólica dos movimentos sociais, como o dos recicladores, por meio de ações que marcam o imaginário da comunidade, tem efeito tão destrutivo quanto a destruição dos seus carrinhos. Diz Fagner Antônio Landrey ao Jornal do Almoço: ‘O que mais nos chama a atenção é o processo de criminalização da comunidade, da pobreza, é colocar todo mundo no mesmo saco, como se todo mundo fosse criminoso, e que a comunidade aqui não tivesse grandes iniciativas de trabalho digno. A gente defende que os catadores executem a coleta seletiva, que já fazem hoje de forma informal, de uma forma muito mais eficiente que os órgãos como o DMLU. Coletamos quatro vezes mais que o DMLU e desejamos ser contratados, valorizados e reconhecidos pelo trabalho que fazemos pela cidade e não ser perseguidos, ter o trabalho proibido”. O que a expressão “doí na alma” quer dizer é a dor de trabalhar e se sentir tratados como criminosos pelo poder público, quando são trabalhadores da reciclagem.
O elemento ausente dos programas de direita
Isso já estava evidente no programa de governo do atual prefeito (disponível aqui). Nele, os carroceiros e recicladores de lixo são os atores sociais ausentes. Encontrei apenas uma referência no documento de 27 páginas disponibilizado pelo Tribunal Regional Eleitoral. Nele, somente o lixo é objeto de política: afirma que houve redução dos depósitos de lixo (p.5), diz que aprovou isenção de lixo para condomínios de interesse social (p.9), que recolheu mais de 100 toneladas de lixo (p.14), que pretende combater focos de lixo crônico (p.17), mas, o principal vem a seguir já que está no programa que pretende “concretizar a parceria público-privada para concentrar os 70 contratos envolvidos na coleta de lixo e na destinação de resíduos, exceto os serviços de varrição, roçada e capina de vias, praças e parques” (p. 25). Nenhuma referência a expressões como reciclagem de lixo, recicladores, e apenas uma vez aparece a referência a “trabalhadores” (p.23), referente à extensão de horários para atendimento por unidades esportivas (p. 10). Também aparece uma única vez a palavra “recicladores” como objetivo de benefício de auxílios da prefeitura. Os catadores estão praticamente excluídos das previsões de políticas para os que mais precisam, aparecendo outros grupos como moradores de rua. Esta ausência também estava no programa do prefeito anterior (disponível aqui), onde, em 16 páginas, a palavra reciclagem é citada uma única vez, em referência à visita do candidato para conhecer experiências deste campo na Europa (p.6), num programa onde as expressões lixo, catadores, recicladores e pobres, sequer são mencionadas em todo o texto. Nele, o tratamento de resíduos é assim definido: “Estabelecer uma política arrojada de tratamento de resíduos, em que as empresas emissoras de resíduos sólidos e poluentes sejam devidamente responsabilizadas pela sua destinação final, nos termos da política nacional de resíduos.” Objetivo que exclui, de uma vez por todas, a municipalidade da responsabilidade na área. É o contrário do que desejam os catadores.
Minha conclusão, salvo engano, é que para que a expansão da iniciativa privada no campo da recuperação de resíduos possa ser estabelecida, os agentes públicos precisam demitir-se de sua responsabilidade na construção de uma política pública junto aos catadores, exatamente o contrário do realizado nas gestões petistas do passado. Entendo que as políticas que saem dos programas neoliberais neutralizam os espaços conquistados junto ao poder público por tais categorias. Esses processos ocorrem pela cooptação da classe política em sua função histórica de atender as classes desfavorecidas ao assumir uma flagrante aliança com determinadas classes, como o empresariado da construção civil, da coleta de lixo, entre outros, brilhantemente descrita por Marcelo Kunrath, professor do Departamento de Sociologia da UFRGS e coordenador do Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento, em depoimento à Sul 21 (disponível aqui): “a ação desta segunda-feira faz parte da política de exclusão dos catadores da cidade: criminaliza os catadores autônomos e estrangula economicamente as cooperativas e associações. E a PPP coloca que, onde não houver catadores para trabalhar na reciclagem, a empresa pode assumir e comercializar os materiais recicláveis. Parece que é uma forma de atacar aquele setor que tem confrontado a PPP e, ao mesmo tempo, abrir o setor da reciclagem para a empresa, aumentando a rentabilidade da concessão”, afirma. “Há uma tentativa de criminalização dos catadores, com a associação direta da categoria aos roubos de fios na cidade”, acrescenta. Entendo, salvo argumento em contrário, que a ação encarna uma gestão pública comprometida com outros interesses e projetos que retiram as preocupações do poder público na reciclagem popular para substituí-los por iniciativas privadas. O que significa retirar os carrinhos dos trabalhadores da reciclagem se não um ataque às formas de sobrevivência deles? Felizmente, o processo é tão indefensável que até comentaristas simpáticos ao governo municipal, como o jornalista da RBS, Paulo Germano, criticam a iniciativa por seu caráter desumano no Jornal do Almoço.
Um gueto para ricos
A gestão pública da cidade está se transformando nesse gueto dos ricos, um lugar que é misto de administração pública com iniciativas que visam criar condições para a predação capitalista, com seus novos prédios autorizados a serem construídos sem limites, com expansão urbana autorizada para zonas que deveriam ser de preservação ambiental, transformando-se a administração em uma agência de realização dos interesses privados. Aos poucos, esquece-se a função da administração pública e os pobres cada vez mais perdem relevância como referência para sua construção. A cidade que conheceu no passado administrações políticas preocupadas com os interesses dos catadores e recicladores, agora cede a uma administração que se demite dessa função, que assume um novo local de pacto. Melhor teria sido se a cidade tivesse feito a opção pela candidata da oposição que, em um programa superior, com 57 páginas, dedicava seção especial para catadores e reciclagem de resíduos, com propostas para gestão de resíduos sólidos e qualificação da coleta seletiva pelas unidades de triagem, além da recuperação da própria limpeza urbana municipal, com programas específicos para a melhoria do DMLU.
Assim, desmontando-se a base de sobrevivência destas populações, produz-se a impossibilidade de novas tensões e resistências das camadas populares à privatização da reciclagem. Esse esvaziamento não é apenas das classes recicladoras, mas também dos movimentos de moradores sem teto, dos que lutam pela moradia própria e que significam entrave na reprodução do capitalismo. Como o estado sequer vê a necessidade de mediação de seus conflitos sociais, ele não age preventivamente, exceto para garantir o acesso do capital privado a estes campos. Reportagem do site G1 (disponível aqui) assinala desde 2022 o medo dos moradores da Vila dos Papeleiros. Diz a reportagem: “Os projetos de urbanização, que levam esperança de revitalização na região, também causam preocupação entre os moradores mais pobres. O presidente do IAB-RS, Rafael Passos, fala dos riscos de a população precisar procurar outros locais para viver. Segundo ele, o projeto do quarto distrito tem um potencial mais concentrador de renda do que distribuidor de renda, justamente porque ele não atende, de forma eficaz, nos seus instrumentos propostos, uma integração e uma produção da habitação e da qualificação urbana dessas áreas”, pontua. À época, a Secretaria Municipal de Habitação negou qualquer tipo de mudança dos moradores.
O final de um longo caminho
Georges Vigarello, em seu O limpo e o sujo (Martins Fontes, 1996), mostra que, ao longo do tempo, sempre subjacente a uma organização sanitária das coletividades, está uma lógica econômica vinculada a práticas políticas. Em nome da prevenção, Estados iniciaram práticas de limpeza e salubridade que identificam nas vilas populares o acúmulo de imundícies das cidades do século XVII, imaginário que aqui a Vila dos Papeleiros atualiza. “Os lugares suspeitos são antes de tudo aqueles em que se acumulam pobres” (p. 163). A justificativa de higiene do prefeito remonta às premissas estabelecidas em 1760 e desenvolvidas nos séculos seguintes. Seja na Paris de 1790 ou na Porto Alegre de 2025, o mal sempre está nas aglomerações populares, o que “leva a se compreender a atenção dada à limpeza popular. No passado, médicos e higienistas eram os responsáveis pelo remanejamento popular; hoje, bastam alguns funcionários do DMLU para realizar o serviço. No fundo, tanto administradores atuais como higienistas do passado acreditavam no compartilhamento dos preceitos médicos e políticos e esse é o tom dos procedimentos atuais junto com os carrinheiros, mas a influência na vida cotidiana tem consequências de outra ordem: transforma-se em espécie de pedagogia destinada aos pobres, transformar seus costumes para serem aceitos dentro da lógica do capital. Os caminhões mecânicos que hoje recolhem o lixo das caçambas de nossas ruas são a atualização da carroça basculante de Charles Ernest Clerget (1812-1870) descrita por Vigarello como “uma carroça basculante concebida para limpar os detritos das ruas com ajuda de vassouras mecânicas [que] sublinha o papel crescente, no imaginário do século XIX, do imaginário mecânico” (p. 212). No mundo dos novos empresários do lixo da cidade, o sonho é de que não será mais preciso a mão humana para guiar as carroças, o que justamente produz o medo presente no inconsciente dos carrinheiros, de serem, também eles, substituídos por máquinas, no mesmo processo que já levou outras profissões, como bancários, e tantos outros trabalhadores a perderem locais de trabalho. Enquanto o governo fala em limpeza do lugar, sua prática fala em exclusão popular. O ideal de limpeza do passado assim se atualiza no presente, pois “ela garante a ordem” (p. 254). Dos micróbios aos grupos sociais, é sempre uma extensão do que é considerado virtude, transferindo-se medidas do espaço privado para o público, das classes burguesas para as classes populares, que engolem os carrinheiros da capital. O gestor não mentiu: no campo visível, ele está fazendo uma limpeza sim, a das carrocinhas. Ganha um doce quem imaginar qual a limpeza no campo invisível que está em andamento.
A conclusão é que as ações de desmonte do trabalho popular correspondem, nos termos de Safatle, a uma era de contrarrevolução preventiva. “Isso significa que, diante de uma situação de crise conexa e de possibilidade de desidentificação generalizada com instâncias de reprodução material da vida social, toda e qualquer possibilidade de questionamento com força de mobilização social deve ser paralisada em seu nascedouro.” Assim, desmontando-se a base de sobrevivência destas populações, produz-se a impossibilidade de novas tensões e resistências das camadas populares à privatização da reciclagem. Esse esvaziamento não é apenas das classes recicladoras, mas também dos movimentos de moradores sem teto, dos que lutam pela moradia própria, que significam entrave na reprodução do capitalismo. Como o estado sequer vê a necessidade de mediação de seus conflitos sociais, ele não age preventivamente, exceto para garantir o acesso do capital privado a estes campos. Falta, no entanto, nos termos de Cortina, uma ética que oriente suas ações baseadas no acolhimento do Outro, do carrinheiro, dos pobres em geral. É preciso reconhecer a dignidade de seu trabalho, mostrar respeito por quem tem um trabalho tão digno como os demais, o dos carrinheiros, o que Cortina denomina de “exigência da hospitalidade universal”. É preciso que os cidadãos entendam que eleições têm consequências e que na próxima sejam capazes de eleger um governo capaz de assumir a perspectiva dos que sofrem e se comprometer com eles.
Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br . Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: Reprodução RBS TV.
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