Neurociência na recomposição de aprendizagem
Como a neurociência pode contribuir para a recomposição de aprendizagens?
Entenda como funciona o processo de aprendizagem no cérebro para planejar atividades que permitam o avanço dos estudantes
Por Paula Salas 13/10/2022
Cada estudante é formado pelas diferentes aprendizagens e estímulos acumulados que recebeu desde o seu nascimento. Ilustração: Bruna Martins
Como faço para que meu aluno aprenda? É possível que você já tenha se feito essa pergunta, especialmente durante a recomposição de aprendizagens pós-pandemia. No entanto, para responder a essa questão, é preciso dar um passo atrás e entender como crianças e adolescentes aprendem.
A aprendizagem é um processo complexo que envolve criar, fortalecer ou modificar sinapses, região de conexão entre neurônios onde há troca de informações entre essas células. Dessa forma, adquirir novas habilidades ou um novo comportamento sempre gera uma modificação no cérebro. Essa capacidade de se (re)modelar é o que conhecemos como plasticidade cerebral (ou neuroplasticidade).
O cérebro de cada estudante é resultado dos estímulos acumulados desde o momento em que nascemos, por isso não existem dois iguais nem duas pessoas que aprendam exatamente da mesma forma. Daí a importância de, em sala de aula, adotar estratégias diversificadas para ampliar a variedade de estímulos e incluir a todos os estudantes.
Geração de memórias
Alfred Sholl-Franco, professor de Neurobiologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que armazenar informações exige uma série de etapas até que elas sejam consolidadas em memórias de longo prazo – as quais, por sua vez, mobilizam diferentes processos e variáveis para seu uso e para a produção de comportamentos.
Veja, no esquema a seguir, as etapas envolvidas para transformar uma informação em aprendizado. Para saber mais, acesse gratuitamente, no botão abaixo, o material completo.
Representação das etapas que acontecem no cérebro desde o momento em que o aluno receber uma informação até ela ser consolidada como um conhecimento ou uma habilidade. O esquema foi uma adaptação de Alfred Sholl-Franco, professor de Neurobiologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ilustrações: Bruna Martins
Tempo é fundamental
Todo esse processo, desde que o aluno é exposto a uma nova informação até o armazenamento dela como memória de longo prazo, exige tempo, uma vez que ele acontece aos poucos, a cada noite de sono. Essa consolidação também demanda que os estudantes sejam expostos àquelas informações mais de uma vez e, preferencialmente, de formas diferentes, com um aumento gradual de complexidade – essa ideia de aprendizagem em espiral é uma característica que orienta a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Logo, aprender requer tempo. Por isso, acreditar que é possível dar contar de tudo que seria trabalhado no ciclo 2020-2022 em apenas dois semestres é algo distante da realidade. “Não adianta pensar que vai dar todo o conteúdo, porque, se tudo é importante e em grande quantidade, há uma sobrecarga. Não dá para atropelar os processos”, diz Alfred.
Vale salientar, no entanto, que a modificabilidade cerebral depende de fatores que podem limitá-la, como “o tempo e a motivação”, exemplifica o professor da UFRJ. A partir dessa afirmação, vamos nos aprofundar nessas outras variáveis que influenciam o processo de aprendizagem.
Aspectos emocionais também afetam o processo de aprendizagem
Além de não ser possível acelerar o processo complexo que envolve aprender, há outros pontos que devem ser considerados
As emoções têm uma relação direta com a aprendizagem. Por isso, o olhar para os aspectos socioemocionais não pode ser menosprezado no contexto atual. “Depois de dois anos de pandemia, o cérebro está fisicamente alterado pela quantidade de estresse desse período. Há uma pressa muito grande [para enfrentar as defasagens] que desconsidera como o aluno está naquele momento”, explica Taís Bento, pedagoga especializada em Aprendizagem Baseada no Funcionamento do Cérebro e uma das fundadoras do SOS Educação, no site do Estadão. “Uma criança que está muito ansiosa não tem espaço, energia mental para aprender”, complementa Adriana Fóz, diretora da Neuroconecte e especialista em Psicopedagogia e Neuropsicologia.
Motivação como diretriz
Ao entrar na rede municipal do Rio de Janeiro, em 2001, a professora de Matemática Kátia Machinez sentiu a necessidade de criar um projeto para motivar os alunos, que funciona como uma espécie de apoio pedagógico. Para além de atividades diferenciadas para garantir as aprendizagens matemáticas, também iniciou um trabalho visando incentivar, preparar e orientar os jovens a prosseguir com os estudos no Ensino Médio e, posteriormente, no Ensino Superior. Rapidamente, a iniciativa começou a gerar bons resultados – o trabalho foi iniciado na EM Presidente Médici e hoje continua na EM Estácio de Sá e na EEEF República, todas localizadas na cidade do Rio de Janeiro (RJ).
Em 2012, com o objetivo de potencializar o trabalho, a professora buscou a neurociência. Com base em seus estudos, ela entendeu o que estava por trás do sucesso de seu projeto: a motivação. Esse tornou-se então seu objeto de estudo e passou a integrar, intencionalmente, sua prática pedagógica. “Sem motivação não tem esforço, e toda a aprendizagem fica comprometida. Um estudante motivado vai buscar aprender mais”, defende a professora.
Personalização para melhores resultados
Quando o aluno está diante de algo que é tão desafiador que se sente incapaz, sua resposta é fugir, buscar uma recompensa positiva, um prazer imediato – por exemplo, pegar o celular e abrir uma rede social.
Para exemplificar, Kátia se lembra de uma aluna que estava fazendo um exercício de potencialização e travou ao chegar nas potências de dois dígitos. Ela questionou a estudante como tinha feito os cálculos anteriores, e a jovem contou a estratégia utilizada. Com base nessa resposta, a educadora identificou que a menina não sabia fazer multiplicação com dois algarismos e explicou o processo. Em seguida, ouviu da aluna que o conteúdo “até que era maneirinho”. “Se eu dissesse que já deveria saber, ela não iria aprender. Como fiz uma intervenção diretamente em sua dificuldade, eu a ajudei a ter uma experiência positiva”, ressalta a professora de Matemática.
Esse é outro aprendizado que Kátia trouxe da neurociência. “Todos os alunos são diferentes, únicos. Eu busco entender o nível de cada um e penso como posso, a partir do ponto em que ele está, promover uma evolução”, explica a educadora.
Nessa perspectiva, ela propõe atividades que respeitem o nível de aprendizagem do estudante para proporcionar uma boa experiência – isto é, que não sejam nem tão difíceis, de modo que se sintam incapazes de resolver, nem tão fáceis, para que não fiquem desinteressados. Quando eles conseguem solucionar aquela proposta, sentem-se capazes e estimulados a continuar aprendendo.
Esse tipo de proposta pode ser utilizada em qualquer momento, mas, no contexto atual, é uma boa estratégia para motivar os estudantes e garantir o avanço. E foi essencial para a professora de Matemática, pois a possibilitou atender as necessidades individuais em turmas de 40 alunos ou mais. “Eles se motivam a aprender e ganham autonomia. Cada um avança e vai ajudando o colega a também evoluir”, explica.
Aposta no potencial dos alunos
A neurociência evidencia que a motivação não é algo externo, que depende de outra pessoa, mas algo interno, inerente aos estudantes. “Você não se motiva se não acha que é capaz ou se acha que aquilo não tem importância”, diz Kátia. “Algo grave é quando ele começa a acreditar que não é capaz e deixa de tentar”, complementa a professora de Matemática. Nesse aspecto, a educadora pontua que o professor pode contribuir ao se mostrar preocupado com o estudante e reforçar seu potencial.
Saber disso fez toda a diferença para a prática de Vera Lúcia Cavalcante, professora de Educação Física dos Anos Finais no CIEP 016 Abílio Henrique Correia, em São João de Meriti (RJ). “O meu papel é pensar como estimular, ajudar e desafiar [os alunos]”, relata. “A expectativa dos adultos têm um impacto tão grande que é capaz até de modificar o cérebro. Os alunos só vão conseguir atingir seu potencial máximo de aprendizagem se os professores mostrarem que acreditam que são capazes”, complementa Taís Bento, pedagoga especializada em Aprendizagem Baseada no Funcionamento do Cérebro.
Neurociência para todos componentes
E engana-se quem pensa que a neurociência não tem como contribuir com a Educação Física, ou que os alunos estão sempre engajados com as atividades do componente. Foi inclusive a insatisfação com a falta de resultados que motivou Vera Lúcia a buscar novos caminhos. “Foi uma forma de recomeçar, mudou minha visão, passei a entender melhor o aluno e como poderia ajudá-lo a seguir”, explica.
Baseando-se em sua experiência, ela notou que metodologias ativas apoiam a participação dos alunos e a eficácia das práticas. “Eu começo buscando a bagagem deles [sobre determinado assunto] e os coloco diante de um problema. Eles começam a criar hipóteses e propor experimentações, pesquisas”, compartilha a educadora. Com essa estratégia, Vera estimula que a turma organize pensamentos, busque soluções, produza conhecimento e pense sobre como comunicar suas descobertas. Em resumo, favorece o desenvolvimento de aprendizagens mais significativas.
Segundo Taís Bento, o exercício físico é fundamental para produzir novos neurônios e preparar o aluno para o aprendizado. No entanto, só ele não é suficiente. “Os outros professores me disseram para 'gastar' o aluno na Educação Física para voltarem mais calmos para a sala, mas não é pelo fato de 'cansá-lo' que ele irá prestar atenção na próxima [aula]. A aula em si [do colega professor] tem de mudar, precisa de algo mais”, afirma Vera.
Como favorecer a atenção dos alunos
A especialista Taís Bento compartilha quatro aspectos importantes para incluir no seu planejamento
A atenção é um aspecto fundamental para a aprendizagem dos alunos, como é possível verificar no esquema disponibilizado no início desta reportagem. Pensando nisso, a especialista Taís Bento compartilhou quatro aspectos que podem ser incluídos em sua prática.
1. Contraste. Ao ensinar um conteúdo, deve-se não somente apresentá-lo isoladamente, mas colocá-lo em relação com outro. “Por exemplo, ao explicar sobre um país, no lugar de falar apenas sobre ele, procure contrastá-lo com outro”, aconselha a pedagoga.
2. Novidade. Procure diversificar as propostas e os ambientes pedagógicos. “Fazer aulas em ambientes e com formatos e estímulos variados tem um impacto muito positivo.”
3. Movimento. Depois de 20 minutos prestando atenção, o cérebro perde muita energia, diz a especialista. “Por mais que queiramos continuar, é difícil. Para recarregar, é preciso beber líquido, comer e se movimentar”, explica. Em sala de aula, é possível planejar atividades que exijam algum tipo de movimentação, mesmo que seja apenas levantar para conversar com o colega. “Isso já é suficiente para gerar energia e [o aluno] se concentrar por mais tempo.”
4. Recompensa. Aqui, vale ressaltar que o ideal é que a recompensa não seja algo material, mas algo que traga reconhecimento. “Por exemplo, [o professor] pode combinar que depois daquela atividade a turma pode escolher uma música ou um jogo”, sugere Taís.
Consultoria: Alfred Sholl-Franco, professor de Neurobiologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).