No tempo rei

No tempo rei

NO TEMPO REI:,OS RICOS TÊM NAVIOS, EU TENHO CANÇÕES

Por João Guató

 

 

De vez em quando, o Brasil inventa um milagre caro. Um luxo vestido de cultura, desses que vendem nostalgia em parcelas e saudade em pacotes all inclusive. Agora é a vez do Navio Tempo Rei — uma ode flutuante a Gilberto Gil, uma celebração oceânica do homem que ensinou o país a cantar esperança com a leveza de quem já atravessou tempestades.

De 1º a 4 de dezembro de 2025, o MSC Preziosa parte do Porto de Santos, fazendo escalas no Rio de Janeiro e em Búzios. A bordo, o mestre baiano canta no teatro Platinum com convidados de gala: Elba, Paralamas, Nando, Liniker, Gilsons, Jorge Vercillo, João Gomes... Uma constelação sobre o mar. Mas, atenção: esse céu tem preço.

A experiência começa na escolha da cabine:

– Interna quádrupla? R$ 4.698,00 por pessoa.

– Yacht Club (luxo)? R$ 16.458,00 — e nem inclui alma lavada.


Mas se você mora longe, como eu, em Mato Grosso, o preço da utopia sobe como maré de janeiro. Passagem aérea Cuiabá–São Paulo–Cuiabá**? Cerca de R$ 2.500,00. Diárias de hotel pré e pós-cruzeiro, alimentação, deslocamentos internos, taxas portuárias, extras não incluídos e, claro, o sonho de ver Gil de perto. Some tudo e o número chega a um absurdo sereno: R$ 26 mil reais.

Vinte e seis mil.

Ou seja, quase um carro popular, duas faculdades particulares, um pedaço de terra, ou o que pagaria dois anos de aluguel no CPA. É o preço para subir a bordo de uma despedida que deveria ser patrimônio cultural do povo — mas virou vitrine de viagem temática.

E, como se não bastasse, há ainda a ironia maior: muita gente da minha quebrada, da minha classe, da minha ralé, que também não vai no cruzeiro e não pode pagar um ingresso para ver Gil nem em terra firme, continua jurando que é de direita, vestindo camisa da CBF e mandando Pix pra ex-presidente desfilar de jet ski, encenando o papel de “mito da periferia” — enquanto a cultura de verdade navega para longe, com nome baiano e alma negra, sem sequer acenar para o cais da ignorância.

Enquanto uns escolhem a vista do camarote, eu escolho a janela do quarto. Enquanto eles brindam com espumante vendo Gil no palco, eu brindo com café requentado ouvindo “Palco” no rádio velho. Porque a música é de todos — mas o evento é para poucos.

O Brasil é essa contradição constante: canta-se o povo em palcos onde o povo não entra. Vende-se “tropicália” em pacotes de agência de luxo. Gil, que foi voz da rua, da mata, do gueto e da universidade pública, agora ecoa por alto-falantes de cruzeiro temático, com cobertura gourmet e roteiro de classe executiva.

E tudo bem, dirão alguns — ele merece. Sim, merece. Mas também merecemos nós. O Brasil que dança de chinelo, que chora com “Drão”, que atravessou a pandemia com “andar com fé” na cabeça e dívida no bolso.

O navio vai partir. E eu, que não embarco, fico à margem. Não por falta de amor, mas por excesso de boleto. Fico com as canções. Fico com a lembrança. Fico com o grito abafado de quem gostaria de aplaudir de pé, mas aplaude de longe.

Porque os ricos têm navios. Eu tenho canções.

E é nelas que navego meus sonhos e utopia.

FONTE:

Pasquim Cuiabano Joao Guato 




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