Nota técnica sobre SNE

Nota técnica sobre SNE

 

 

Nota técnica sobre o Sistema Nacional de Educação: análise do Parecer da Câmara dos Deputados ao PLP 235/2019

Campanha e parceiros reconhecem a urgência e a importância da aprovação do SNE, mas reiteram que o substitutivo apresenta retrocessos gravíssimos e demanda maior aprofundamento do debate para a garantia do pleno direito à educação

 

 

Em Nota Técnica, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação analisa o Parecer da Câmara dos Deputados ao PLP 325/2019, que institui o Sistema Nacional de Educação (SNE). Campanha e parceiros reconhecem a urgência e a importância da aprovação do SNE, mas reiteram que o substitutivo apresenta retrocessos gravíssimos e demanda maior aprofundamento do debate para a garantia do pleno direito à educação. Saiba mais no documento reproduzido abaixo.

 

*

Sistema Nacional de Educação: análise do Parecer da Câmara dos Deputados ao PLP 235/2019 (PDF)[1] 

Brasil, 01 de setembro de 2025.

Seguindo sua tradição de colaborar para o aprimoramento técnico e político da legislação e das políticas educacionais, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação divulga nota técnica sobre o Parecer de Plenário do deputado Rafael Brito (MDBL/AL) ao Projeto de Lei Complementar 235/2019, de autoria do Senador Flávio Arns (PODE/PR), que institui o Sistema Nacional de Educação, nos termos do art. 23, parágrafo único, e do art. 211 da Constituição Federal, aprovado no Senado Federal. 

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação reconhece a urgência e a importância da aprovação e implementação do Sistema Nacional de Educação, no entanto, reitera que um maior aprofundamento do debate é necessário para que os ajustes necessários para a garantia do pleno direito à educação sejam contemplados, nesse sentido, destacamos questões fundamentais que precisam ser contempladas no texto do PLP 235/2019.

 

Sistema Nacional de Educação: análise do Parecer da Câmara dos Deputados ao PLP 235/2019 1

1. Do financiamento adequado e justo da educação pública brasileira 2

2. Do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB) 3

3. Do fortalecimento da gestão democrática 4

4. Dos princípios e objetivos do SNE 5

5. Das competências dos Entes Federados 6

6. Da Cite e da Cibes 10

7. Das Instâncias Normativas no Sistema Nacional de Educação 13

8. Das Instâncias de Participação e Acompanhamento e Controle Social 14

9. Dos instrumentos ou funções integradoras do SNE 16

10. Do Planejamento da Educação Nacional 16

11. Dos Territórios Etnoeducacionais Indígenas e Quilombolas 17

 

1. Do financiamento adequado e justo da educação pública brasileira 

Conforme a Constituição Federal, a partir da função supletiva e redistributiva da União e dos Estados, devem ser promovidas medidas de redistribuição dos recursos financeiros para universalização do padrão mínimo de qualidade, garantindo as condições adequadas de oferta, combate ao analfabetismo, à discriminação e às demais desigualdades educacionais e apoio aos sistemas de ensino, tendo como referência os parâmetros do Custo Aluno Qualidade (CAQ). 

É fundamental que seja garantido um piso salarial para os profissionais da educação, política de carreira, número adequado de alunos por turma, biblioteca e sala de leitura, laboratório de ciências, internet banda larga, quadra poliesportiva coberta, alimentação nutritiva, transporte escolar digno, banheiros, água potável, acesso a tratamento de água e esgoto, energia elétrica, ventilação adequada - a serem acrescidos no inciso VI do Art. 34. Para garantir a alocação dos recursos adequados para a manutenção e desenvolvimento do ensino nos entes federados, a função supletiva e redistributiva da União e dos Estados é condição basilar para o enfrentamento às desigualdades. Isso não consta do texto do substitutivo. Ainda, a condicionalidade da disponibilidade de recursos é uma inversão da lógica do CAQ e do investimento adequado e deve ser excluída.

Ademais, há a confusão sobre custeio da educação a partir de condições mínimas de qualidade a partir de insumos com avaliação da educação, que são questões distintas e há riscos latentes em serem agrupados - conforme proposição no substitutivo -, inclusive sob pena de aprofundamento das desigualdades educacionais e sociais. Indica-se supressão do Art. 32, o (II) “rendimento escolar”, conforme debate superado na tramitação da EC 108/2020, do novo e permanente Fundeb, assim como a supressão do Art. 34, que define tais padrões mínimos de qualidade da educação básica referentes ao rendimento escolar. 

A exclusão dos dispositivos que detalham a competência da Cite para definir o Custo Aluno Qualidade (CAQ) em nível nacional, com base em estudos técnicos do Inep e considerando critérios fundamentais como os fatores de ponderação do Fundeb, representa um retrocesso também para a concretização do direito à educação de qualidade com equidade. A retirada da obrigação de a Cite definir o CAQ com base em parâmetros técnicos específicos - e por conseguinte à Cibe na adaptação às diversidades dos territórios - remove a espinha dorsal do regime de colaboração. Sem uma definição nacional clara, pactuada e técnica, cada ente federativo ficará à deriva, podendo definir seu próprio "padrão" de acordo com conveniências políticas e restrições orçamentárias locais, e não com base nas reais necessidades educacionais. Ainda, perde o lastro de diversificação para implementação dos parâmetros nos níveis territoriais, de acordo com as demandas específicas, mas sempre acima do mínimo nacional.

O apagamento do artigo que facultava à União suplementar recursos para entes que não conseguissem atingir o CAQ, usando-o explicitamente como referência, anula o caráter redistributivo do sistema. Sem esse dispositivo, a complementação financeira da União perde seu norte, desvinculando-se do objetivo de garantir um patamar mínimo de qualidade para todos, em todos os cantos do Brasil. Em resumo, a exclusão desses dispositivos não é uma mera simplificação textual; é a desmontagem deliberada do principal mecanismo de financiamento e equalização da educação básica previsto no SNE, condenando-o à inefetividade e perpetuando um modelo injusto e fragmentado.

Acerca do financiamento do ensino superior, o substitutivo apresenta uma mudança significativa na abordagem, notadamente ao enxugar substancialmente as disposições sobre o tema que constavam em propostas anteriores. Esta opção por um texto mais conciso representa uma opção arriscada ao deixar de explicitamente vincular o financiamento às necessidades de expansão com qualidade.  Paralelamente, o texto introduz uma proposta nova ao estabelecer a criação de “padrões de qualidade” para a educação superior, definindo-os como referenciais para a autorização de funcionamento de instituições e cursos. Esta é uma iniciativa potencialmente positiva, no entanto, a proposta carece de profundidade e detalhamento neste estágio, deixando em aberto questões cruciais sobre como esses padrões se relacionarão com o financiamento – se serão condicionantes para repasses ou se existirão mecanismos de apoio para que instituições menos aquinhoadas possam atingi-los. A definição concreta desses padrões, seus parâmetros mínimos e a metodologia de avaliação demandarão amplos debates com as comunidades acadêmica e científica, para que não se tornem meros instrumentos burocráticos ou, na pior das hipóteses, barreiras que aprofundem desigualdades em vez de promover a qualidade.

2. Do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB)

A incorporação do SINAEB foi um avanço da EC nº 108/2020, uma vez que é um mecanismo que contribui diretamente para a melhoria das políticas públicas educacionais pois amplia o sentido da avaliação, ao se propor a avaliar a qualidade, a equidade e a eficiência da educação básica no país. O foco deixa de ser os testes padronizados e passa a considerar e analisar a aprendizagem dos alunos, as condições de oferta do ensino e os territórios onde se localizam as escolas, ou seja, o SINAEB considera as diversas dimensões que implicam na qualidade da educação na educação básica. 

O substitutivo retrocede, em seus Art. 47 e 48, ao destituir o “Sistema” do processo de Avaliação da Educação Básica, esvaziando toda a construção acumulada legal, social e academicamente ao longo dos últimos anos. Indica-se, portanto, a recuperação da redação, em todo o texto, que trata não de elementos ou políticas de avaliação mas de um sistema de avaliação, garantindo os princípios e as diretrizes propostas a seguir.


Devem ser princípios do SINAEB: 

  • o caráter ético, público e republicano nos processos avaliativos;

  • o respeito à identidade e à diversidade dos sistemas e redes de ensino e suas instituições de educação básica; a regularidade na coleta e disponibilização de dados, séries históricas, informações e outros documentos orientadores produzidos pelo SINAEB;

  • a transparência na divulgação dos objetivos, das metodologias e dos resultados das avaliações;

  • a promoção do acesso e do uso das evidências produzidas pelo SINAEB para gestores, legisladores, órgãos governamentais e sociedade em geral, com vistas ao aprimoramento das políticas educacionais das diferentes esferas de governo;

  • o estabelecimento de formas de colaboração entre os sistemas, redes de ensino e as instituições de educação básica para a construção de metodologias participativas e dialógicas para os processos de avaliação, a utilizar dimensões avaliadas, com apoio de instituições de educação superior, de organizações de pesquisa e da sociedade civil;

  • a articulação com o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES;

  • a articulação com o Custo Aluno Qualidade (CAQ), de modo a fornecer indicadores para a avaliação dos padrões mínimos de qualidade do ensino. ação das informações produzidas e o aprofundamento do entendimento dos aspectos e dimensões avaliadas, com apoio de instituições de educação superior, de organizações de pesquisa e da sociedade civil. 

     

O SINAEB precisa ter como diretrizes: 

  • Universalização do atendimento escolar

  • Melhoria da qualidade do aprendizado

  • Valorização dos profissionais da educação

  • Gestão democrática

  • Superação das desigualdades educacionais 

     

3. Do fortalecimento da gestão democrática

O Sistema Nacional de Educação não deve se restringir a um agrupamento dos sistemas de ensino federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal, pois assume funções e objetivos que envolvem, de modo mais amplo, os poderes públicos de todas as esferas de governo, bem como a participação da sociedade. Debates mais aprofundados ainda são necessários para a construção de um consenso em uma redação que cumpra com os princípios constitucionais e infralegais, para um Sistema promotor do direito. 

É preciso aprimorar a participação tanto nos municípios quanto da comunidade educacional, acadêmica e da sociedade civil, que não foram consideradas nas instâncias principais de governança no substitutivo de Rafael Brito. A democracia participativa se fortalece com o aprimoramento da gestão democrática, seja por meio do reconhecimento e fortalecimento dos fóruns de educação e do Conselho Nacional de Educação enquanto instâncias autônomas e plurais, pela elaboração, implementação e monitoramento dos planos de educação em todos os níveis da Federação, seja pela garantia de realização das Conferências Nacionais de Educação. É fundamental que no SINAEB a participação social seja garantida, por meio do tripartismo na educação, bem como o acesso à informação e à transparência com sujeição aos controles interno, externo e social, em consonância com a Lei 12.527/2011. 

4. Dos princípios e objetivos do SNE

O Sistema Nacional de Educação (SNE) deve ser a espinha dorsal que organiza, articula e fortalece a educação brasileira, tornando realidade o preceito constitucional que a define como um direito social (Item I). A exclusão dos princípios e objetivos listados no texto substitutivo, no entanto, fragiliza essa estrutura desde a sua fundação, criando um sistema vazio de compromissos essenciais. Sua reafirmação é urgente e justifica-se pelos seguintes argumentos:

1. Garantia de acesso, equidade e combate às desigualdades:

Os itens XVI (redução das desigualdades), V (reconhecimento de identidades indígenas e quilombolas), o X (atendimento educacional inclusivo), o XXI (acesso e equidade), o XXII (erradicar o analfabetismo),  do texto aprovado no Senado são pilares para uma educação verdadeiramente para todos. Um SNE que não explicita o combate às disparidades regionais, socioeconômicas e de acesso; para populações tradicionais, indígenas e quilombolas, observando em quaisquer processos a consulta prévia e informada à respectiva comunidade; não define os sujeitos da inclusão; não reafirma a necessidade de acesso, equidade, erradicação do analfabetismo, estará, na prática, perpetuando um modelo excludente.

2. Defesa de um Padrão Mínimo de Qualidade concreto, com valorização profissional:

A retirada dos Itens VII, XXIII, XXIV, XXV, XXVI e XXX do texto aprovado no Senado, que estabelece o Custo Aluno Qualidade (CAQ) como referência, inclusive para o financiamento, esvazia completamente o conceito de "qualidade" nos princípios do SNE. O CAQ, constitucionalmente previsto, traduz o direito à educação em insumos concretos: salário digno para professores, infraestrutura adequada, recursos pedagógicos, etc. Ainda, a valorização não é retórica; é concurso público, salário digno, carreira e condições de trabalho. A exigência do cumprimento do piso em todas as unidades da federação é crucial para acabar com a judicialização constante desse direito. Sem ele, "padrão de qualidade" vira uma expressão vaga e subjetiva, impossível de ser cobrada judicialmente e facilmente negligenciada por gestores públicos.

3. Proteção contra o retrocesso e a descontinuidade:

O princípio da proibição de retrocesso (Item XVIII do texto aprovado no Senado) é crucial em um contexto de instabilidade política e orçamentária. Ele funciona como um escudo legal que protege conquistas já consolidadas, impedindo que mudanças de governo resultem no desmonte de políticas públicas educacionais. Um SNE sem essa cláusula de barreira abre espaço para que avanços históricos sejam revertidos por meio de cortes de verba ou alterações normativas.

4. Sustentação da gestão democrática e da autonomia:

A exclusão do Item IV (gestão democrática na governança do sistema e pactuação) e do Item XIX (autonomia universitária e escolha de dirigentes pela comunidade acadêmica) do texto aprovado no Senado ataca o coração da educação pública. A gestão democrática garante que pais, professores, estudantes e funcionários participem das decisões, evitando a imposição de projetos autoritários e de curto prazo, inclusive devendo ser partícipes da governança do SNE. Da mesma forma, a autonomia universitária é um pilar da liberdade acadêmica e da produção crítica de conhecimento. Um SNE que silencia sobre isso abre caminho para a centralização decisória e a instrumentalização política das instituições.

5. Educação contextualizada e conectada com a realidade:

Itens como o VI (articulação com o trabalho e práticas sociais) e o XX (promoção do empreendedorismo e inovação, de forma conectada com o mundo do trabalho) do texto aprovado no Senado são vitais para que a educação não se torne um processo alienado. No entanto, essa conexão deve ser crítica e cidadã, e não meramente utilitarista. É fundamental que esses itens dialoguem com a revisão da base nacional comum curricular (Item X do texto aprovado no Senado), garantindo um currículo diverso e articulado, e com a valorização dos profissionais (Item X do texto aprovado no Senado), que são os agentes dessa mediação entre conhecimento científico e realidade social.

6. Avaliar e regulamentar a oferta do setor público e do setor privado, com transparência e controle social

Itens como o XXXVI do texto do Senado, que fora excluído pelo substitutivo de Brito, devem ser incorporados dado que um verdadeiro SNE deve regular todo o campo educacional, inclusive o privado. Este princípio garante que o setor privado, que atende a uma parcela significativa da população, também seja supervisionado pelo poder público e pela sociedade, com vistas à qualidade social e não apenas ao lucro.

7. Resposta a contextos de crise com direitos preservados:

A permissão para atividades não presenciais em situações de calamidade (que estava presente no parágrafo único do texto aprovado no Senado e foi excluído no substitutivo) é pragmaticamente necessária. 

5. Das competências dos Entes Federados

União Analisar o substitutivo do deputado Rafael Brito requer um olhar crítico sobre as consequências práticas de retirar competências específicas da União. A centralização excessiva é problemática, mas a descentralização de funções estratégicas e indutoras de igualdade é igualmente perigosa. A retirada das competências listadas abaixo, do Art. 5º, representa um equívoco grave que pode levar à fragmentação do sistema, ao aprofundamento das desigualdades regionais e ao abandono de populações vulneráveis.

1. Financiamento do Sistema Federal de Ensino (Inciso II, Art. 5º)

O que foi retirado: A competência da União de financiar diretamente as instituições federais de ensino (universidades, institutos federais, colégios de aplicação).

Por que é um equívoco: Esta alteração é juridicamente frágil e operacionalmente catastrófica. O sistema federal de ensino é de responsabilidade direta e imediata da União, conforme disposto na Constituição Federal (Art. 23, V e Art. 211). Ao retirar essa competência explícita do texto do SNE, o substitutivo cria uma ambiguidade perigosa sobre quem é o ente responsável por manter e desenvolver essas instituições. Isso abre espaço para disputas de recursos e tentativas de privatização, fragilizando seu financiamento e sua missão de serem instituições de ponta, públicas, gratuitas e de qualidade para todo o país.

Por que deve ser reintegrado: A reintegração é imperativa para garantir a segurança jurídica e orçamentária das universidades e institutos federais. Essas instituições são fundamentais para a produção de conhecimento, inovação tecnológica e formação de profissionais de alto nível em todos os estados. Seu financiamento deve ser obrigação clara e indelegável da União, protegido de oscilações políticas e orçamentárias locais. Sem essa previsão, o sistema federal, um dos mais bem-sucedidos do país, fica vulnerável.

2. Gestão dos Sistemas de Avaliação da Educação (Inciso IV, Art. 5º)

O que foi retirado: A competência da União de gerir os sistemas nacionais de avaliação (como o Sinaeb, Sinaes, e Sinaept).

Por que é um equívoco: A avaliação sistêmica é a ferramenta mais importante para diagnosticar problemas, orientar políticas públicas e combater desigualdades com base em evidências. Se a gestão desses sistemas for descentralizada ou não for uma competência clara da União, perde-se a comparabilidade nacional dos dados. Sem uma bússola nacional, cada estado avaliará com seus próprios parâmetros, tornando impossível uma visão de conjunto e a implementação de políticas redistributivas eficazes.

Por que deve ser reintegrado: A reintegração é fundamental para a coerência e a equidade do SNE. A União, por estar em uma posição neutra em relação às unidades federativas, é a entidade mais adequada para aplicar avaliações isentas e comparáveis. Esses dados são essenciais para direcionar assistência técnica e financeira para os estados e municípios mais necessitados, cumprindo o princípio do regime de colaboração.

3. Oferta de educação para populações do Campo, Indígenas e Quilombolas

O que foi retirado: A competência da União de assegurar a oferta educacional para essas populações, "sem prejuízo das contrapartidas" de estados e municípios.

Por que é um equívoco: Esta é talvez a retirada mais socialmente regressiva. Populações indígenas, quilombolas e do campo estão historicamente em territórios de baixa densidade econômica e política, onde estados e municípios frequentemente não têm capacidade orçamentária ou interesse político para oferecer uma educação específica e de qualidade, como determina a lei. A União, com seu poder redistributivo, tem o dever constitucional de suplementar a ação desses entes para garantir a equidade (Art. 211, § 1º, CF). Retirar essa competência explícita é abandonar essas populações à própria sorte, aprofundando um histórico de violação de direitos.

Por que deve ser reintegrado: A reintegração é uma questão de justiça social e de cumprimento de obrigação constitucional. A cláusula "sem prejuízo das contrapartidas" já estabelece que estados e municípios não estão isentos de suas responsabilidades. No entanto, a primazia da União em assegurar essa oferta é crucial para que o direito à educação diferenciada e de qualidade saia do papel nessas localidades. É o SNE operando como instrumento de redução de desigualdades históricas.

Estados - A retirada explícita da obrigação de os Estados atuarem como agentes equalizadores usando o CAQ como referência e priorizando as redes mais críticas, representa um retrocesso ao conceito de regime de colaboração e condena o Sistema Nacional de Educação (SNE) à perpetuação das desigualdades.

1. Retirada da competência de equalizar com referência ao CAQ

O que foi retirado: A menção específica de que é competência dos Estados equalizar a oferta educacional, “tendo como referência o Custo Aluno Qualidade (CAQ)".

Por que é um equívoco: O regime de colaboração não é sobre todos fazerem a mesma coisa, mas sobre cada ente fazer sua parte para nivelar por cima. O Estado, como ente intermediário, tem a posição estratégica e a capacidade técnica e financeira para redistribuir recursos dentro de seu território, compensando as assimetrias entre municípios ricos e pobres. Retirar a referência ao CAQ (o instrumento que define o patamar de qualidade a ser alcançado) transforma a colaboração em uma mera troca de favores, sem um objetivo claro de justiça educacional. O CAQ corre o risco de se tornar apenas uma fórmula de cálculo teórica se não for internalizado como a bússola obrigatória para o financiamento e a ação de todos os entes. Ao não vincular expressamente a ação dos Estados ao CAQ, o substitutivo abre espaço para que outros critérios, menos técnicos e mais políticos, orientem a distribuição de recursos, perpetuando privilégios e negligenciando áreas carentes.

Por que deve ser reintegrado: A reintegração é fundamental para transformar o princípio abstrato da equidade em uma ação concreta e mensurável. O Estado deve ser legalmente obrigado a usar o CAQ como parâmetro para direcionar assistência técnica e financeira, garantindo que um aluno no município mais pobre do estado tenha acesso aos mesmos insumos de qualidade (previstos no CAQ) que um aluno na capital. 

2. Retirada da priorização de sistemas com maior vulnerabilidade

O que foi retirado: A determinação de que os Estados devem considerar como prioritários os sistemas de ensino que apresentarem situação crítica de desempenho e maior carência de recursos para atingir o padrão mínimo de qualidade.

Por que é um equívoco: Sem a obrigação de priorizar, a assistência do Estado pode seguir a lógica do "quem tem mais, recebe mais" ou ser guiada por interesses políticos clientelistas. Redes já consolidadas e com maior poder de pressão podem continuar recebendo a maior parte dos recursos, enquanto as redes mais vulneráveis, que são justamente as que mais precisam, ficam para trás. Isso aprofunda o abismo educacional.

Por que deve ser reintegrado: Redes com baixos indicadores muitas vezes estão presas em um ciclo de baixa arrecadação, falta de capacitação e exclusão escolar. Sem uma intervenção prioritária e massiva do Estado, esse ciclo se perpetua. Esta competência é a ferramenta legal para que o Estado quebre esse ciclo, investindo prioritariamente nessas redes para elevar seu patamar de qualidade.

Municípios - A retirada da competência dos Municípios de elaboração dos planos municipais e de que os planos municipais sejam elaborados com ampla participação e em consonância com os planos nacional e estadual não é uma simplificação inocente; é um equívoco grave que esvazia o significado do próprio Sistema Nacional de Educação (SNE).

O que foi retirado: A menção específica da competência dos Municípios de elaboração dos planos municipais e de que o plano municipal deve ser elaborado com a "ampla participação de representantes da comunidade educacional e da sociedade civil".

Por que é um equívoco: A extinção da competência municipal de elaborar os planos municipais quebra o paralelismo federativo que está posto para a União e os Estados, deixando em aberto a quem competiria tal função. Ainda, a participação não é um mero formalismo; é um princípio constitucional (Art. 206, VI, CF) que garante a legitimidade, a relevância e a continuidade das políticas educacionais. Sem a obrigatoriedade da participação, o plano de educação pode se tornar um documento técnico elaborado por burocratas em gabinetes, ou por outrem, dado que sequer indica qual seria o ente responsável, descolado das reais necessidades das escolas, dos professores, dos estudantes e das famílias. Isso abre espaço para que planos sejam criados ou alterados por decisão unilateral, sujeitos a interesses políticos de curto prazo. A participação social é o principal mecanismo de controle sobre as ações do poder público. Ao retirar essa previsão, o substitutivo enfraquece a capacidade da comunidade de cobrar a implementação do plano, pois foi excluída do processo de sua construção. Um plano construído sem participação é um plano pelo qual ninguém se sente responsável para cobrar.

Por que deve ser reintegrado: A reintegração é fundamental para que o plano municipal seja um verdadeiro pacto social pela educação no território sob liderança do ente municipal. Quando a comunidade participa de sua elaboração, ela se apropria das metas e assume a co-responsabilidade por cobrar sua execução, tornando o plano uma política de Estado, e não de governo. Professores, diretores, pais e estudantes são os que vivem o dia a dia da escola. Sua contribuição é insubstituível para diagnosticar problemas reais e apontar soluções viáveis. Um plano construído com participação é, inevitavelmente, um plano mais factível e de maior qualidade.

6. Da Cite e da Cibes

Cite - A exclusão, no substitutivo, da obrigatoriedade de que as decisões da Comissão Intergestores Tripartite da Educação (CITE) devam estar em consonância com as metas e estratégias do Plano Nacional de Educação (PNE) vigente constitui um grave equívoco que ameaça a coerência e a eficácia do próprio Sistema Nacional de Educação. A CITE é o fórum central do regime de colaboração, e desvinculá-la do principal instrumento de planejamento educacional do país, que é o PNE, significa esvaziar sua função estratégica. Sem essa previsão legal, as deliberações da comissão correm o sério risco de se tornarem meramente casuísticas, orientadas por conveniências políticas de curto prazo ou por pressões conjunturais, em detrimento do cumprimento das metas de longo prazo estabelecidas por lei. Essa desconexão criaria uma perigosa dissociação entre o planejamento decenal, aprovado democraticamente pelo Congresso Nacional, e as ações pactuadas entre os entes federativos, fragilizando a implementação do PNE e transformando a CITE em um potencial obstáculo, e não em um motor, para a concretização das políticas educacionais nacionais. A reintegração desse dispositivo é, portanto, imperativa para garantir que a CITE atue como uma instância de governança coordenada e alinhada ao projeto nacional de educação, assegurando que o regime de colaboração sirva efetivamente para realizar as metas pactuadas coletivamente para a próxima década.

A inclusão, no substitutivo, da competência da Comissão Intergestores Tripartite da Educação (CITE) para coordenar as ações dos entes federados visando tanto a participação na formulação da política educacional nacional quanto a implementação das estratégias e o alcance das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) é, sem dúvida, um aspecto positivo que merece reconhecimento. Esta atribuição explicita o papel central da CITE como instância máxima de pactuação do regime de colaboração, posicionando-a como o fórum natural para articular os esforços da União, dos Estados e dos Municípios em torno de um projeto comum. No entanto, essa importante definição de competência não é suficiente para suprir a gravidade da exclusão da obrigatoriedade de que as próprias decisões tomadas no âmbito da CITE devam estar em estrita consonância com as metas e estratégias do PNE vigente. Sem o vínculo legal explícito, a CITE pode, paradoxalmente, coordenar a implementação de um plano com uma mão enquanto, com a outra, toma decisões que o sabotam, seja por pressões políticas, interesses setoriais ou conjunturas passageiras. Portanto, a mera atribuição da função coordenativa é insuficiente e pode se tornar uma ironia se não for acompanhada do compromisso obrigatório de alinhamento total com a bússola que é o PNE. A reintegração desse dispositivo é imperativa para garantir coerência e evitar que a principal instância de colaboração se torne, ela própria, um fator de descumprimento da lei do Plano Nacional de Educação.

Por outro lado, é um acerto considerável do substitutivo a inclusão expressa da CAPES entre as entidades que subsidiarão tecnicamente a tomada de decisão no âmbito da CITE. A CAPES traz para a mesa de discussões uma expertise ímpar e absolutamente vital sobre a formação de professores e profissionais da educação, um eixo crítico para qualquer avanço qualitativo no ensino. Sua presença garantida fortalece o caráter técnico das deliberações, articulando de forma mais orgânica as políticas da educação superior, sob sua responsabilidade, com as necessidades prementes da educação básica, que são o foco da pactuação na tripartite. A cláusula que prevê o apoio técnico sem prejuízo de consulta a outras instituições complementa bem o dispositivo, assegurando a necessária flexibilidade para que a comissão possa ouvir especialistas diversos, conforme a agenda em discussão. Esta é uma inovação que deve ser celebrada, pois eleva o nível das discussões e conecta a pactuação federativa à produção de conhecimento e à formação de qualidade, pilares essenciais para um sistema educacional robusto e eficaz.

Acerca das competências da Cite:

1. O substitutivo avança ao incluir explicitamente competências estratégicas para a CITE, destacando-se:

  • Coordenação da formulação e implementação das políticas educacionais (Inciso I)

  • Articulação entre educação básica e superior (Inciso III)

  • Competência para renovar a metodologia do Custo Aluno Qualidade (CAQ) (Inciso XI) 

     

2. No entanto, as exclusões e modificações negativas abaixo são alarmantes e precisam ser urgentemente revertidas:

Exclusão do referencial do CAQ e do padrão mínimo de qualidade (Incisos X e XI): O texto original previa que a CITE pactuaria o padrão mínimo de qualidade na educação básica com base no CAQ, considerando condições adequadas de oferta e diversidade regional. A exclusão disso esvazia o conceito de qualidade e remove a ferramenta concreta (o CAQ) para operacionalizá-lo. Sem o CAQ como referência obrigatória, as discussões sobre financiamento e qualidade perdem objetividade e podem priorizar interesses políticos em detrimento de necessidades educacionais reais.

→ Deve ser reincorporado: A CITE deve ter a competência explícita de definir o padrão mínimo de qualidade com base no CAQ, garantindo que ele seja o parâmetro para todo o sistema.

Exclusão da suplementação financeira da União com base em critérios redistributivos (Inciso VII e §5º): O texto original estabelecia que a distribuição de recursos da União deveria privilegiar entes com piores condições fiscais ou socioeconômicas, cumprindo a função redistributiva. A exclusão desse dispositivo abandona o princípio da equidade e pode perpetuar desigualdades, pois permite que recursos sejam distribuídos sem priorizar os mais vulneráveis.

→ Deve ser reincorporado: É essencial reafirmar que a assistência financeira da União deve ser orientada por critérios técnicos e redistributivos, priorizando entes com maior carência de recursos.

Exclusão de contrapartidas obrigatórias dos entes (Inciso V): A remoção da exigência de contrapartidas dos Estados e Municípios para receber assistência técnica e financeira da União enfraquece a corresponsabilização e pode levar ao uso ineficiente de recursos públicos.

→ Deve ser reincorporado: As contrapartidas devem ser pactuadas na CITE para garantir compromisso mútuo e aplicação adequada dos recursos.

 

Cibes - A análise das modificações propostas para as competências das Comissões Intergestores Bipartites da Educação (CIBEs) revela uma tentativa de organizar o regime de colaboração em nível estadual, mas com exclusões graves que podem enfraquecer seu papel e aprofundar desigualdades regionais. 

1. Aspectos Positivos e Avanços (Sublinhados em Verde)

O substitutivo avança ao definir competências claras para a CIBE, alinhando-as com a lógica do regime de colaboração:

  • Coordenação para implementação, monitoramento e avaliação dos Planos de Educação (Incisos I e VII)

  • Articulação de políticas da educação básica (Incisos II e III) 

2. Retrocessos e exclusões preocupantes

As exclusões, no entanto, são predominantes e estratégicas, representando um esvaziamento da capacidade da CIBE de promover equidade:

Exclusão do fortalecimento da capacidade institucional dos Municípios (Incisos II e III original) via assistência técnica e financeira: A retirada desta competência é um dos maiores retrocessos. Muitos municípios, especialmente os pequenos e pobres, não possuem estrutura técnica, administrativa ou financeira para gerir sua rede de ensino com qualidade. Cabe ao Estado, por meio da CIBE, construir com os Municípios estratégias para fortalecê-los. Sem essa previsão legal, a CIBE perde seu caráter de apoio e correção de desigualdades intramunicipais.

Exclusão do Inciso XII: "os procedimentos para cessão, doação e permuta de infraestrutura escolar, móveis e servidores públicos...": Perde-se a competência de estabelecer regras claras para a transferência de bens (prédios, móveis) e até a cessão de servidores entre Estado e Municípios. Esta exclusão impede a otimização de um patrimônio público que é de toda a sociedade. É comum existirem escolas estaduais ociosas em um município enquanto a rede municipal precisa de espaço, ou vice-versa. Sem uma diretriz clara pactuada na CIBE, a cessão ou doação desses imóveis torna-se uma negociação política caso por caso, morosa e sujeita a interesses, deixando prédios fechados e recursos subutilizados enquanto alunos estudam em condições precárias. O mesmo vale para móveis e equipamentos. A possibilidade de cessão de servidores, mediante acordo, é vital para otimizar o quadro de pessoal e permitir que profissionais experientes da rede estadual possam, por exemplo, atuar em capacitações ou em funções estratégicas na rede municipal, e vice-versa. A exclusão deste dispositivo mantém as redes como ilhas estanques, impedindo uma visão sistêmica do território.
 

7. Das Instâncias Normativas no Sistema Nacional de Educação 

A decisão de excluir a criação da Câmara de Apoio Normativo (CAN) e, em seu lugar, manter e reconhecer as instâncias normativas tradicionais e consolidadas do Sistema Nacional de Educação (SNE) — Ministério da Educação (MEC), Conselho Nacional de Educação (CNE), Conselhos Estaduais e Municipais de Educação , etc — foi um acerto estruturante e deve ser vista como um avanço para a governança educacional brasileira. A exclusão da CAN evitou um grave erro de concepção do sistema, que teria introduzido sobreposição, conflito de atribuições e centralização, em detrimento do regime de colaboração (federativa previsto na Constituição) que se pretende fortalecer. 

A CAN, como proposta, criaria uma quinta instância normativa superposta às quatro esferas já existentes e funcionais (União, Estados, DF e Municípios). Sua função de "apoiar" a normatização inevitavelmente entraria em conflito com as competências constitucionais e legais já estabelecidas para o CNE e para os conselhos estaduais e municipais. Ainda a CAN corria o risco de se transformar em uma “supercomissão” com poderes não claramente delimitados, centralizando em um único colegiado debates que devem ocorrer de forma distribuída e federativa.

Ao manter a estrutura normativa atual, o substitutivo respeita a autonomia dos estados e municípios, que são os gestores diretos da educação básica, e valoriza os conselhos estaduais e municipais de educação. Os conselhos estaduais e municipais de educação são instâncias que conhecem a realidade local e são mais capazes de emitir normas adequadas às especificidades de suas redes.

O dispositivo que prevê a possibilidade de os conselhos de acompanhamento e controle social (como os do FUNDEB e da Alimentação Escolar) serem instituídos como câmaras específicas dos Conselhos Municipais de Educação (§ 4º do Art. 14) não é um consenso e carece de debate, pois há argumentos que atestam que tal possibilidade desconsideraria a natureza, a função e a autonomia desses conselhos. Essa proposta, ainda que aparentemente bem-intencionada para simplificar a estrutura, potencializaria - se não bem regulada - riscos de enfraquecer o controle social, ferir a legislação federal e criar um conflito de atribuições. 

Os conselhos de acompanhamento e controle social (ex: Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB - CACS/FUNDEB e Conselho de Alimentação Escolar - CAE) são instâncias independentes e autônomas, criadas por legislação federal específica (Lei nº 14.113/2020, no caso do FUNDEB, e Lei nº 11.947/2009, no caso da Alimentação Escolar). Eles possuem composição, competências e regras de funcionamento próprias, definidas em lei, e não estão hierarquicamente subordinados a nenhum outro conselho, incluindo os Conselhos Municipais de Educação (CME). O Conselho Municipal de Educação tem suas atribuições próprias e essenciais: normatizar, orientar, supervisionar e deliberar sobre questões pedagógicas e estruturais da rede municipal. 

A intenção de criar sinergia entre as instâncias é válida, mas o caminho da subordinação ainda não encontra consenso. A solução imediata seria prever a obrigatoriedade de articulação e colaboração entre o CME e os conselhos de acompanhamento (CACS, CAE), mantendo-os como instâncias independentes, porém com canais de comunicação formais e reuniões conjuntas periódicas para troca de informações e alinhamento de ações, deixando a possibilidade de de integração como câmaras específicas para debates e regulamentações posteriores.

8. Das Instâncias de Participação e Acompanhamento e Controle Social 

A comparação entre o texto vindo do Senado e o texto do substitutivo revela um drástico e preocupante esvaziamento do papel dos Fóruns e Conferências de Educação no Sistema Nacional de Educação (SNE). O substitutivo substitui um desenho institucional robusto, participativo e detalhado por uma estrutura vaga, genérica e desprovida dos mecanismos necessários para garantir uma participação social efetiva. As pioras são múltiplas e graves:

1. Redução drástica da composição e representatividade (Art. 26 e 27 do Senado vs. Art. 18 do Substitutivo)

O texto do Senado estabelecia uma composição amplamente representativa do Fórum Nacional de Educação (FNE), listando 12 categorias específicas de representantes (órgãos governamentais, conselhos, entidades de ensino, trabalhadores, estudantes, pais, sociedade científica, movimentos sociais, setor produtivo). Além disso, estabelecia critérios claros para a escolha dessas entidades (reconhecimento público, abrangência nacional, tempo de atuação, representatividade comprovada).

Já o substitutivo reduz a composição a uma única linha genérica: "compostos de forma a assegurar participação do poder público e da sociedade civil". Isso é extremamente vago e abre espaço para manipulação. Um ministro, prefeito ou governador pode, por ato próprio, criar um fórum com composição restrita, excluindo vozes críticas ou representativas que sejam inconvenientes ao governo. A riqueza da representação plural da sociedade civil, cuidadosamente detalhada no texto do Senado, foi completamente suprimida.

2. Esvaziamento das atribuições e funções (Art. 27 do Senado vs. Art. 19 do Substitutivo)

O texto do Senado atribuía ao FNE funções claras e substantivas: articular e coordenar as conferências; monitorar e avaliar a execução do PNE. O monitoramento do PNE era uma função central.

O substitutivo define funções genéricas e enfraquecidas: "coordenar conferências", "acompanhar a implementação dos planos" e "debater temas". A mudança de "monitorar e avaliar" para "acompanhar" é profundamente significativa. "Acompanhar" é passivo, enquanto "monitorar e avaliar" implica em ação sistemática, produção de dados, emissão de pareces e cobrança efetiva. O substitutivo transforma o fórum de um organismo de controle em um mero espaço de conversa.

3. Eliminação de garantias orçamentárias e de funcionamento (§5º e §6º do Art. 27 do Senado)

O texto vindo do Senado determinava de forma obrigatória que as despesas dos fóruns deveriam ser previstas nos orçamentos dos entes, para garantir "adequadas condições de funcionamento". Também garantia o direito a transporte e diárias para os membros da sociedade civil, reconhecendo o caráter de relevância pública da função.

Já o substitutivo suprime completamente essas garantias. Sem previsão orçamentária obrigatória, os fóruns ficam à mercê da boa vontade do governante de plantão, podendo se tornar instâncias fantasma, sem recursos para se reunir, produzir documentos ou realizar suas atividades. A não garantia de diárias e transporte inviabiliza a participação qualificada de representantes da sociedade civil que não podem arcar com esses custos.

4. Eliminação do Fórum de Valorização dos Profissionais da Educação (Art. 28 do Senado)

O texto do Senado criava um fórum específico e permanente para tratar desse tema crucial, com composição paritária e detalhada das entidades representativas dos trabalhadores e empregadores, com objetivos claros como acompanhar a atualização do piso salarial e propor estratégias para seu cumprimento.

O substitutivo exclui totalmente este fórum especializado. O tema da valorização profissional, central para a qualidade da educação, fica diluído. Isso representa um enorme retrocesso no diálogo social sobre carreira, salários e condições de trabalho.

5. Fragilização das conferências (Art. 21 do Substitutivo)

Embora o substitutivo mantenha a periodicidade quadrienal, ele elimina a obrigatoriedade da realização das conferências municipais e estaduais como etapas preparatórias e obrigatórias para a nacional. A redação do § 1º ("Serão realizadas... no período de vigência do PNE") é mais frouxa que a do texto original ("precedida de conferências municipais, distrital e estaduais"). Além disso, o substitutivo não traz nenhum detalhamento sobre a organização e representatividade das conferências, deixando tudo à discricionariedade dos entes.

9. Dos instrumentos ou funções integradoras do SNE

O substitutivo avança ao organizar o SNE em torno de cinco funções integradoras (Governança, Planejamento, Padrões de Qualidade, Financiamento e Avaliação). Essa estrutura conceitual é mais clara, moderna e organizada do que a simples lista de "instrumentos" do texto do Senado. Ela fornece uma visão mais coerente de como o sistema deve funcionar.

A instituição da INDE (Arts. 23 a 25) é uma contribuição potenciamente positiva do substitutivo. Ela introduz mecanismos atualizados e essenciais para a governança, a gestão, o monitoramento e a avaliação da educação. A despeito de necessitar de maiores debates sobre os instrumentos criados na propositura, como o Identificador Nacional Único do Estudante (INUE), é essencial a redação sobre a interoperabilidade e o compartilhamento de dados. É preciso reforçar a transparência, no entanto.

Nesse item, há, contudo, retrocessos graves ao excluir o “planejamento e a avaliação periódicos e participativos da educação” e “os mecanismos automáticos de redistribuição de recursos, tais como as transferências financeiras legais e constitucionais”. Assim, o debate sobre esse tema não foi em nada colocado ao longo da tramitação - só tendo aparecido agora no parecer - e precisa de aprofundamentos.

10. Do Planejamento da Educação Nacional

O substitutivo avança ao integrar explicitamente os planos decenais à estrutura do SNE, posicionando-os como peça central da função de planejamento, o que confere maior coerência sistêmica ao disposto legal. Outro aspecto positivo é a ênfase na articulação federativa, com a determinação de que o processo de elaboração dos planos deve ser realizado de forma articulada entre os três níveis da Federação, buscando compatibilizar diretrizes, metas e prazos desde o início, o que é fundamental para o regime de colaboração.

No entanto, o substitutivo apresenta retrocessos significativos que precisam ser corrigidos. A eliminação do calendário articulado para a discussão e publicação dos planos estaduais e municipais, que constava no texto original, representa uma perda grave, pois remove o mecanismo que garantia a sincronia temporal entre os diferentes níveis de planejamento. Sem essa previsão, abre-se espaço para descoordenação, com entes federativos definindo prazos aleatórios, o que inviabiliza a verdadeira articulação do sistema. Outro retrocesso crítico é o esvaziamento do processo de monitoramento e avaliação. O texto original estabelecia um prazo claro para o envio do novo PNE ao Congresso, exigindo uma avaliação global conduzida pelo MEC e Inep com componentes mínimos obrigatórios. O substitutivo, porém, transfere para as próprias leis dos planos a tarefa de definir mecanismos de avaliação, o que pode resultar na falta de instrumentos robustos de prestação de contas nos níveis subnacionais.

Além disso, há uma diluição da participação social, com o substitutivo restringindo a participação às Conferências de Educação, enquanto o texto do Senado falava em "ampla participação" por diversos canaisPerde-se também o vínculo explícito com a assistência técnica e financeira, já que o texto do Senado vinculava a elaboração do novo PNE a diagnósticos robustos do Inep e FNDE, enquanto o substitutivo apresenta uma menção genérica. Para ser eficaz, o texto precisa reintegrar o calendário articulado, restabelecer prazos e componentes avaliativos obrigatórios, reforçar mecanismos de monitoramento em todos os níveis, restaurar a amplitude da participação social e vincular explicitamente os recursos ao cumprimento das metas dos planos. Sem essas correções, os planos decenais permanecerão como documentos de intenção sem efetividade prática.

11. Dos Territórios Etnoeducacionais Indígenas e Quilombolas

O substitutivo avança ao incluir explicitamente a educação quilombola, reconhecendo-a como responsabilidade compartilhada dos entes federativos e incorporando princípios importantes como a valorização dos saberes comunitários e a oferta educacional vinculada aos territórios. Essa ampliação do escopo é um passo relevante para a efetivação de políticas educacionais que contemplem a diversidade cultural brasileira.

No entanto, o texto substitutivo apresenta retrocessos graves em relação às garantias específicas para os povos indígenasO texto do Senado era detalhado e preciso inicialmente ao tratar, corretamente, de Territórios EtnoeducacionaisAinda, acertava ao estabelecer mecanismos concretos de participação e controle social, como os fóruns permanentes de negociação com representantes dos gestores e das comunidades indígenas em cada sistema de ensino, e a exigência de anuência subscrita por caciques e lideranças para decisões sobre gestão em escolas instaladas em terras indígenas. Esses dispositivos foram suprimidos no substitutivo, que opta por menções genéricas à participação sem especificar os mecanismos institucionais que a assegurariam.

Além disso, o substitutivo omite completamente a previsão de processo específico de avaliação para a educação indígena, que constava no texto do Senado como garantia de que os mecanismos avaliativos respeitariam as particularidades dessas educações. 

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação continuará contribuindo para o melhor texto legislativo, para garantir os avanços necessários para uma fiel e robusta implementação do Sistema Nacional de Educação. O projeto de educação pública urge ser fortalecido pois é o sustentáculo de uma sociedade democrática e promotora de justiça social. 

[1] Elaborado por Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com base na nota técnica de Junho de 2025, construída e pactuada pelo Comitê Diretivo da entidade.

Subscreve e apoia

Fórum Nacional de Educação do Campo - Fonec

(Foto: Marcos Pastich/Prefeitura do Recife)

FONTE:

https://campanha.org.br/noticias/2025/09/01/nota-tecnica-sobre-o-sistema-nacional-de-educacao-analise-do-parecer-da-camara-dos-deputados-ao-pl-2352019/

 

 

 




ONLINE
97