Notas sobre o Novo Ensino Médio

Notas sobre o Novo Ensino Médio

NOTAS SOBRE O “NOVO ENSINO MÉDIO”: os impactos da verticalidade gerencial e a ambiguidade no cotidiano das escolas

 Robert Segal [1]

Liberdade de escolhas educacionais dentro de uma moldura

 

Em setembro de 2016, o então presidente Michel Temer editou a Medida Provisória nº 746, cujo objeto era instituir a implementação de escolas em tempo integral e a reformulação na estrutura curricular do ensino médio no Brasil.

Entre suas justificativas, o ministro da Educação, José Mendonça Bezerra Filho, afirmava que a educação brasileira, tal como estaria o ensino médio, tinha defasagens, tendo em vista os resultados negativos obtidos pelos estudantes do referido segmento exames de avaliação de larga escala – segundo parâmetros do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e do índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) –; a pouca articulação entre o currículo escolar, de um lado, e os anseios dos estudantes e as necessidades do mercado de trabalho, de outro; e o elevado nível de evasão dos estudantes no ensino médio.

Mesmo sem considerar fatores externos sobre a educação – mas, que nela impactam direta ou indiretamente, tais como falta de apoio educacional especializado para alunos com deficiência ou especificidade, em todas as redes educacionais; carência na satisfação de necessidades materiais básicas que fazem com os alunos abandonem os estudos para trabalhar e sustentar a si mesmo e às suas famílias; contextos de violência urbana que deixam os alunos sob ameaça de continuar a frequentar a escola, em determinados espaços urbanos, entre outros fatores –, o citado ministro da educação ainda justificava os termos da Medida Provisória nº 746/2016 por estarem no diapasão das recomendações do Banco Mundial e do Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), além da busca do atendimento aos padrões de qualidade estabelecidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O resultado dessa mesma medida se deu com a sanção presidencial da Lei nº 13.415/2017, com diversas alterações na Lei nº 9.394/1996, que já havia estabelecido as diretrizes e bases da educação nacional.

Por ora, merece comentar uma alteração específica: a reestruturação do currículo do ensino médio em itinerários formativos, cujos impactos fáticos são analisados ao longo deste ensaio.

De acordo com as alterações no art. 36 da Lei nº 9.394/1996, o currículo do ensino médio passa a ser composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e pelos seguintes itinerários formativos:

I – Ciências da natureza e suas tecnologias;

II – Linguagens e suas tecnologias;

III – Ciências humanas e sociais aplicadas;

IV – Matemática e suas tecnologias; e

V – Formação técnica e profissional (arts. 35-A e 36 da Lei nº 9.394/1996).

Apesar dos eventuais avanços educacionais aos estudantes do ensino médio brasileiros, mormente mediante a articulação das disciplinas dispostas de maneira separada (mas, o que não significa de maneira isolada) no currículo escolar e da liberdade para os próprios estudantes escolherem qual caminho seguir – o que tem sido enaltecido pelo presidente Jair Bolsonaro e seus ministros da educação (dois consumados e dois tentados) –, diante da discricionaridade das próprias redes em comporem seus respectivos currículos, suas cargas horárias e itinerários formativos integrados (arts. 35-A e 36, da Lei nº 9.394/1996), existem limites ao otimismo governamental e recrudescimento de barreiras às oportunidades educacionais dos estudantes.

Pois, aos seus respectivos modos, as redes estaduais de educação já iniciaram a implementação do “Novo Ensino Médio” na passagem do ano de 2021 para 2022.

A partir da experiência do estado do Rio de Janeiro, pode-se, desde já, indagar os possíveis benefícios da mencionada reestruturação educacionais, tanto do ponto de vista da oferta educacional como do ponto de vista da demanda, por parte dos estudantes e de seus familiares.

Do ponto de vista da oferta educacional, cumpre discutir:

 1. Qual itinerário formativo oferecer nas escolas da rede?

Se os índices das avaliações em larga escala entre estudantes da educação básica, inclusive do ensino médio, estão aquém dos padrões esperados no Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (PISA), com inspiração na OCDE, em quais itinerários os gestores escolares poderiam concentrar seus esforços, haja vista que essas mesmas avaliações levam em consideração notas em matemática, língua nacional (no caso brasileiro, a língua portuguesa) e noções de ciências?

Em outras palavras, tendo em vista o foco das referidas avaliações nas competências de matemática, língua portuguesa e ciência, bem como considerando uma possível responsabilização (accountability) de gestores escolares e de professores (no primeiro caso, com eventuais remoções das unidades escolares; no segundo, com perda de possíveis bonificações financeiras), por que concentrar os esforços na manutenção ou na melhoria das condições de ensino-aprendizagem em Artes, Filosofia e Sociologia, por mais que, com base na norma educacional, essas três disciplinas sejam obrigatórias no currículo do ensino médio (art. 35-A, § 2º)?

Considerando a discricionariedade da lei em comento, existe uma real possibilidade das escolas se especializarem, com o aval das redes educacionais regionais e locais, seguindo itinerários formativos específicos, em detrimento de outros, inclusive com respaldo legal, a partir de contextos históricos, econômicos, sociais, ambientais e culturais (art. 35-A, § 1º, da Lei nº 9.394/1996).

Tal como nos ensina a Antropologia, a palavra “cultura” é polissêmica, podendo ser interpretada de diversas maneiras e, em se tratando do campo político, explorado das mais variadas formas, haja vista a discricionariedade do uso de todos os seus conceitos.

2. Qual é a formação exigível ou esperada de cada professor, dentro da perspectiva dos itinerários formativos e, mais ainda, de novas disciplinas, a exemplo de Projeto de Vida, Educação Financeira, Direitos Humanos e Cidadania etc.?

Numa breve participação nas reuniões com docentes em algumas escolas da rede estadual do Rio de Janeiro (e talvez isso se repita em outros estados), no início do ano de 2022, já se pode vislumbrar problemas envolvendo a formação de professores, adequação deles ao currículo escolar modificado e oferta de disciplinas.

Em primeiro lugar, tomando-se como exemplo Projeto de Vida, cabe perguntar em o que efetivamente essa disciplina consiste. Uma possível resposta se daria com uma consulta ao livro didático adotado pela rede educacional, o que traz à tona, aliás, o problema de um suposto ensino “apostilado” com definições, conteúdos e métodos pré-estabelecidos, dando pouca ou nenhuma margem para o docente trabalhar com a disciplina em tela, a não ser, desde já, conhecer as três questões básicas do Projeto de Vida: “quem sou eu, onde estou e onde quero ou posso chegar?”

Em segundo lugar, cabe também perguntar qual professor teria habilitação para lecionar Projeto de Vida no ensino médio. Até o momento, pelo que se sabe, por decisão da secretaria estadual de educação, qualquer professor teria habilitação para trabalhar com a citada disciplina.

Com drástica redução de tempos de aulas de Filosofia e Sociologia, por exemplo, professores dessas duas disciplinas logo se vêm obrigados a complementar suas respectivas cargas horárias com outras disciplinas que lhes sejam franqueadas, quiçá, em outras escolas, além daquelas onde estão lotados. Algumas escolas podem até estar próximas ao local de lotação, mas, outras podem estar bem longe, haja vista a geografia de cidades com o Rio de Janeiro e região metropolitana, onde alguns bairros não possuem tantas escolas próximas umas das outras.

Eis um cenário de possível peregrinação de professores, atrás de escolas, considerando que o poder público não deseja ter professores “ociosos”, nem com extensão da carga horária, o que ensejaria o pagamento/recebimento de eventuais gratificações, como ocorre com a Gratificação por Lotação Prioritária (GLP), e tendo em vista uma possível disputa entre professores por lotação prioritária.

Com isso, a possibilidade de tensões intraclasse se torna factível nesse mesmo cenário.

Em linhas gerais, há uma insegurança entre os professores de como realmente trabalhar em sala de aula à luz da BNCC e como articular conteúdos, entre os quais muitos vão além de suas respetivas áreas de formação, bem como possibilidade de tensões profissionais por disputas de postos de trabalho no interior da própria rede educacional.

Enquanto isso, do ponto de vista da oferta, cabe indagar se, efetivamente, o “Novo Ensino Médio” concede mais liberdade de escolhas aos jovens em idade escolar.

Isso porque, no caso de especialização entre escolas – seja devido à sua autogestão, seja em consequência de eventuais decisões governamentais –, considerando os possíveis benefícios, numa via, e o risco de responsabilização por insucessos em avaliações em larga escala, noutra via, os alunos se veriam obrigados a percorrer grandes distâncias até encontrar uma escola que oferecesse um itinerário formativo de seu gosto.

Quem trabalha em escolas públicas, possui filhos nessas escolas ou já teve oportunidade de realizar pesquisas científicas nesses espaços, sabe que o principal critério familiar de matrícula é a proximidade com o lar. Além disso, existe uma série de inconvenientes, a começar pela carência de transportes públicos em determinadas regiões.

Isso sem se esquecer que, em determinadas áreas, em algumas cidades como o Rio de Janeiro, há “fronteiras invisíveis” impostas por grupos de narcotraficantes e “milicianos”, o que limita o acesso de pessoas, incluindo jovens estudantes, a determinados espaços, tais como as escolas.

A falta de vagas em uma turma, em que se promova o itinerário formativo escolhido por um aluno (por lotação de sala), pode compeli-lo a aceitar percorrer outro itinerário (em que há disponibilidade de assento na mesma escola), ou a deixar a escola, a fim de buscar vaga no itinerário de opção original em outra escola, o que, pelos motivos até aqui expostos, acaba por restringir sua liberdade de escolha de qual caminho seguir.

Todas essas são variáveis que parecem dar aos alunos, na verdade, uma “liberdade” com escolhas restritas. Os alunos ficam livres para escolher qual itinerário seguir apenas dentro de uma moldura, fabricada pelo próprio sistema educacional.

Ao que parece, as incertezas do “Novo Ensino Médio”, tanto entre professores como entre alunos, tal como posto pelo poder público, nos dias atuais, nos oferece mais tensões que liberdades de escolhas e atuação.

4 fev. 2022


[1] Doutor em Educação pela UFRJ, mestre em Educação pela UNIRIO, mestrando em Sociologia e Direito pela UFF, licenciado em Filosofia pela UNIRIO e bacharel em Direito pela UCAM. Professor no ensino superior e na educação básica. Colaborador do Projeto de Extensão Filosofia na Sala de Aula. E-mail: robertsegal70@gmail.com

 

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