Novo normal na Europa

Novo normal na Europa

Orwell e novo normal na Europa

Autor: Jan Zielonka [1] – 07/01/2024 – Social Europe

 

 

 

 

O partido de extrema-direita de Marine Le Pen venceu o primeiro turno eleitoral na França. Bem-vindo a uma Europa que Orwell teria reconhecidoEis que  agora prevalece uma ‘novilíngua’ que está sendo falada no ministério da verdade dos novos governantes, tal como  em 1984 de Orwell

Uma imagem de George Orwell está circulando nas redes sociais. Ele está lendo um livro, intitulado 2024, e parece chocado, se não apavorado. A situação é realmente tão ruim? O escrito 1984 de Orwell, publicados pela primeira vez em 1949, podem ser um guia para os dias de hoje?

Pode-se farejar que a integração europeia não morreu desde o “Brexit” e a ascensão ao poder de políticos soberanistas como Giorgia Meloni, Viktor Orbán e Robert Fico, na Itália, Hungria e Eslováquia, respectivamente. Poder-se-ia acrescentar que as recentes eleições para o Parlamento Europeu deram, mais uma vez, uma clara maioria aos partidos de centro-esquerda e centro-direita. Alguns podem até argumentar que os políticos populistas canalizam as esperanças e os medos das “pessoas comuns” melhor do que os liberais.

Não se pode, no entanto, negar – e é aqui que Orwell se aproxima – que a narrativa e a prática da política mudaram drasticamente em toda a Europa, independentemente de quem esteja no poder nas várias capitais. As normas e comportamentos liberais estão em declínio e as alternativas iliberais e nativistas estão se impondo.

Ontem e hoje

Após a queda do muro de Berlim, os partidos que venceram as eleições na Europa valorizaram os valores liberais: liberdade, tolerância, justiça, inclusão, contenção e autocrítica. Não só a democracia, mas também o Estado de direito e os direitos humanos foram acarinhados. Fronteiras abertas para capitais, bens, serviços e pessoas eram consideradas uma oportunidade e não uma ameaça.

Fatos históricos e científicos não foram amplamente contestados e a grande mídia se recusou a exibir opiniões ultrajantes, mesmo às custas de lucro e entretenimento. A tolerância cultural e a neutralidade religiosa foram tomadas como afirmadas. As organizações não-governamentais que lutam por causas sociais, humanitárias ou ecológicas eram percebidas como aliadas na sustentação da ordem liberal. O multilateralismo, baseado na igualdade, inclusão, confiança e cooperação, foi considerado um meio de garantir a paz e a prosperidade.

A integração europeia era a joia do projeto liberal. A União Europeia, personificação da integração, foi considerada um instrumento eficaz para lidar com a globalização, uma experiência corajosa de democracia transnacional, uma forma inteligente de estabilizar os vizinhos e um veículo para reforçar a posição global da Europa.

Talvez nunca tenhamos experimentado o “fim da história”, que foi proclamado por Francis Fukuyama pouco antes da queda do muro, mas o consenso liberal uniu os partidos de centro-esquerda e centro-direita no poder em toda a Europa. Hoje, os valores liberais são contestados ou mesmo abandonados – não apenas pelos partidos marginais, mas também por aqueles no mainstream e seus eleitorados.

Nova narrativa

A nova narrativa é principalmente sobre o “interesse nacional”, fronteiras seguras, proteção dos “nossos” produtores e raízes religiosas. A globalização, o multiculturalismo, o multilateralismo e a integração europeia estão debaixo de fogo. Fora de moda estão os direitos humanos e os direitos dos membros de comunidades minoritárias. O ecologismo, o sindicalismo e até o feminismo são hoje vistos como movimentos radicais, senão militantes, que deveriam ser ignorados, se não domados pelo mainstream.

“Lei e ordem” é agora a prioridade – não o Estado de Direito. As discussões estão focadas em como se preparar para a guerra e não para a paz. Os políticos competem pelo prêmio de melhor trompetista em vez de melhor negociador. Entre os inimigos do Estado estão juízes e ativistas da sociedade civil, outrora liderados por liberais. Homens fardados, e às vezes de batina, estão recuperando importância.

A nova narrativa é seguida de ação. O punho de ferro do Estado é cada vez mais aplicado – não apenas contra pessoas em movimento, mas contra ONGs que tentam ajudá-las. Comunidades LGBT+ e ambientalistas são monitorados por órgãos de segurança e assediados de diversas formas. As emissoras públicas que tentam manter a independência estão sendo demitidas ou marginalizadas.

Não estou a falar aqui da China ou da Rússia, mas de Estados-membros da União Europeia (EU) – alguns governados por partidos liberais. Na Polónia, sob um governo liderado pelo antigo presidente do Conselho Europeu, o autoproclamado liberal Donald Tusk, está em debate uma nova lei que pode dar aos soldados “uma licença para matar” indivíduos que tentem atravessar a fronteira a partir da Bielorrússia. O fato de o anterior Governo polaco ter sido ainda pior oferece pouco consolo.

Argumentos e explicações

Essa imagem é muito gritante, está pintada em preto e branco? Afinal, liberais dos partidos de centro-esquerda e centro-direita que comandam a Europa pós-1989 pregavam uma coisa e faziam outra. O Iraque foi invadido em nome da “liberdade” e a busca zelosa de sua suposta variante econômica (especialmente na Europa Central e Oriental) retirou o poder de muitos trabalhadores comuns.

Hoje, além disso, nem todos os políticos iliberais estão dispostos a atirar em potenciais requerentes de asilo — Meloni é um bom exemplo, apesar das raízes neofascistas do seu partido. Poder-se-ia também argumentar que sempre houve algum racismo oculto no eleitorado europeu, e a principal diferença é que hoje os xenófobos encontram a sua voz através das “redes sociais” criadas pela Internet. Alguns podem até atribuir o nacionalismo renascente e a intolerância religiosa à amnésia cultural dos liberais.

Além disso, não podemos ignorar o ressurgimento da Rússia imperialista, porque o medo da guerra faz com que as pessoas cerrem fileiras e valorizem a segurança mais do que qualquer outra coisa. A guerra híbrida que está travando provavelmente explica por que 67% dos poloneses agora apoiam as ofensivas ilegais na fronteira. As “fronteiras abertas” não são gratuitas: as importações dos Estados que desrespeitam as normas laborais e de segurança não estão a “matar” os nossos próprios produtores? A mão-de-obra migrante barata não corrói os direitos dos trabalhadores domésticos?

Todos esses são argumentos e explicações legítimas para a nova retórica e política. A transformação em si não pode, no entanto, ser aproveitada. As percepções do que é bom e ruim, verdadeiro ou falso, normal e anormal mudaram. O que era ultrajante e inaceitável há alguns anos é agora um novo “normal”. O que nos traz de volta a Orwell e seus demônios.

Os demônios de Orwell

A distopia futura de Orwell não se resume ao mau uso do poder e aos efeitos da tortura. Trata-se também, se não principalmente, de uma viagem mental de um sistema coerente de valores para outro conjunto inteiro. A autoridade repressiva anônima, cunhada como “Big Brother” em1984, não quer apenas que as pessoas se comportem como lhes dizem, quer que pensem que a guerra é paz, a liberdade é escravatura e a ignorância força.

Antigamente acreditávamos que todos os seres humanos deveriam gozar de um catálogo de direitos humanos básicos. Hoje, sugere-se que dar esses direitos aos “migrantes” põe em risco o bem-estar, a segurança e a cultura. Antigamente acreditávamos que as pessoas deveriam ser livres para praticar suas tradições e hábitos étnicos, sexuais ou religiosos. Hoje se prescreve um modelo de família, o multiculturalismo é declarado morto e o Islão é visto como uma ameaça. Antigamente acreditávamos que os direitos dos trabalhadores, a transição verde e o desenvolvimento sustentável eram sinais de sabedoria e modernidade. Hoje são pintados como slogans ideológicos que beiram a loucura.

Antigamente acreditávamos que, para alcançar qualquer coisa em um mundo interdependente, precisávamos cooperar, se não integrar. Hoje, as Nações Unidas são ignoradas e os Estados-membros da UE querem retomar o poder de “Bruxelas”. Antigamente acreditávamos que o desarmamento, a diplomacia e o comércio poderiam garantir a paz. Hoje, uma nova corrida armamentista, sanções econômicas e ameaças políticas estão na ordem do dia – tudo em nome da mesma “paz”.

‘Pensamento duplo’

É claro que os indivíduos não necessariamente se apegam exclusivamente a um ou outro desses opostos polares. No entanto, Orwell também encontrou uma palavra para descrever isso: “pensamento duplo” era o poder de reter simultaneamente duas crenças contraditórias na mente e aceitar ambas. O pensamento duplo caracteriza frequentemente os liberais que cedem à tentação iliberal, sob a pressão dos acontecimentos ou das exigências do poder.

Pode-se afirmar que um político liberal inconsequente ainda era melhor do que uma figura iliberal convicta. Receio, no entanto, que, para os iliberais, a estratégia seja, como disse Orwell, a de “despedaçar as mentes humanas e juntá-las novamente em novas formas à sua escolha”.

É isso o que significa o novo normal em vigor na política europeia, mas não só… é o que vem após o neoliberalismo


[1] Professor de política e relações internacionais na Universidade de Veneza, Cá Foscari, e na Universidade de Oxford. O seu último livro é The Lost Future and How to Reclaim It (Yale University Press, 2023).

 

FONTE:

https://eleuterioprado.blog/2024/07/18/orwell-e-novo-nomal-na-europa/ 




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