Nunca revogaram a Lei Kandir

Nunca revogaram a Lei Kandir

Por que os governos federais nunca revogaram a Lei Kandir?

Por Paulo Lindesay

09/03/2025

 

A lei Kandir beneficia grandes exportadores de matéria-prima como soja, petróleo, carne bovina
e minérios, principalmente o minério de ferro – José Cruz/ Agência Brasil

 

Na década de 90, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a Lei Kandir era um dos principais instrumentos da política do seu governo. Consistia em aumentar as exportações dos produtos brasileiros, por meio de benefícios às grandes empresas exportadoras de produtos primários e semielaborados, com imunidade de ICMS. Entretanto, o ICMS é o principal tributo dos estados, não do governo federal. Criou-se então um artifício pelo qual os Estados deixavam de cobrar o tributo, mas com garantia dada pela União de transferir os recursos equivalentes. Mas essas transferências ao longo do tempo não foram suficientes para recuperar as perdas de receitas de ICMS.

Entre 1999 e 2018, as empresas exportadoras deixaram de pagar aos estados, a título de imunidade de ICMS, cerca de R$ 637 bilhões. No mesmo período, a União repassou aos estados, através das transferências obrigatórias consolidadas[1], pouco mais de R$ 45 bilhões ou cerca de 7% das receitas devidas, de acordo com dados oficiais do Tesouro Nacional. Se deflacionarmos (IPCA/IBGE)[2] os valores entre junho de 2018 e dezembro de 2024, chegaremos a mais de R$ 907,8 bilhões.

Em maio de 2020, o plenário do STF homologou o acordo de compensação das perdas de arrecadação decorrentes das isenções do ICMS segundo a Lei Kandir. A União, nos termos desse acordo, deverá repassar em parcelas anuais aos Estados e seus Municípios, pouco mais de R$ 65 bilhões em 17 anos (2020 a 2037) referentes a uma dívida (atualizada pelo IGP-DI, até junho de 2018), de R$ 637 bilhões. Isso é acordo ou um crime de lesa-pátria?

Em 2020, a pedido do desgoverno de Jair Bolsonaro, o Senado Federal aprovou o acordo infame, convertido na lei complementar n0 176/2020, que, além das transferências, prevê leilões dos Blocos de petróleo de Atapu e Sépia, com repasse de dois bilhões de reais. Com a revogação do Art. 91 do ADCT e sem a revogação da Lei Kandir, os Estados e Municípios continuarão a amargar prejuízos ainda maiores porque não haverá mais a compensação por parte da União das perdas de receitas de ICMS. Entretanto, a Lei Kandir continuará a dar imunidade de ICMS às empresas exportadoras de produtos primários e semielaborados. Um verdadeiro negócio da China para os grandes donos do agronegócio exportador.

Os grandes empresários do agronegócio, do setor da mineração e do setor energético são os grandes beneficiados da imunidade de ICMS. Exportam seus produtos primários ou semielaborados em dólar, euro ou outras moedas estrangeiras, sem pagamento do principal imposto estadual, o ICMS. Mas deixam poucas divisas no território brasileiro, pagam poucos impostos territoriais e, devido ao avanço tecnológico do setor, geram poucos empregos.

Em contrapartida, deixam um rastro de destruição no solo e no subsolo brasileiro, assim como nas florestas, devido a explorações predatórias realizadas sobretudo pelas grandes empresas transnacionais e nacionais.

Os lucros do setor da economia são fantásticos, contribuem para o crescimento do Produto Interno Bruto. Mas, o PIB não é o total da riqueza existente em um país. Mas um indicador de fluxo de novos bens e serviços finais produzidos durante um período.

Ao lado disso, sob o pretexto de flexibilizar a exigência de cobertura cambial nas exportações, o Conselho Monetário Nacional aprovou uma medida de simplificação na área de câmbio[3] anterior à entrada em vigor da Lei nº 14.286, de 2021, que autorizou o Banco Central, apoiando-se na Lei nº 11.371/2006[4]a ter competência junto ao Conselho Monetário Nacional para estabelecer o percentual dos recursos de exportação que pode ser mantido no exterior, fixou um limite de 30% para isso.  Em 2008, entretanto, esse limite foi elevado para 100%.   A justificativa para a eliminação do limite era que isso consistia em importante instrumento econômico e gerencial para as empresas exportadoras, contribuindo ao mesmo tempo para uma melhor inserção do País no mercado internacional.

Revogar imediatamente a Lei Kandir é um imperativo em favor da sociedade brasileira, diante dos prejuízos que trará às receitas tributárias estaduais, pela continuidade de imunização do ICMS. De fato, entre 1999 e junho de 2018, a União deixou de repassar aos Estados, pelas transferências obrigatórias, a título de imunidade de ICMS às empresas exportadoras de produtos primários e semielaborados, cerca de R$ 637 bilhões. Nesse período, a União repassou aos Estados, através das transferências obrigatórias consolidadas, pouco mais de R$ 45 bilhões, o equivalente a pouco mais de 7% do total de receitas não pagas de ICMS, de acordo com dados oficiais do Tesouro Nacional.

No caso do Estado do Rio de Janeiro, em 2017, o repasse foi de pouco mais de R$ 1,8 bilhão, com uma perda de receita de ICMS acumulada entre 1999 e junho de 2018 no montante de cerca de R$ 34 bilhões. Se deflacionarmos os valores entre junho de 2018 e dezembro de 2024, essa perda alcançará a cifra de aproximadamente R$ 50 bilhões.

Em 2022, o governo Bolsonaro piorou ainda mais a situação financeira dos Estados ao aprovar a Lei Complementar 192/22[5], que isentou do pagamento de ICMS combustíveis e outros produtos. Jogando essa conta no colo dos governadores. No caso do Rio de Janeiro, a perda de receita de ICMS apontada no projeto de lei orçamentária de 2023 ficou entre R$ 5 bilhões e R$ 10 bilhões. Essa conta será paga pela população fluminense.

A arrecadação dos estados em ICMS caiu 109 bilhões de reais em relação à sua base tributável nos 12 meses que se seguiram à edição da Lei Complementar 194/2022. É o que apresenta a Nota Técnica do Comsefaz[6] “Impactos das LC 192/22 e 194/22 sobre arrecadação de ICMS dos Estados”. A base tributável é o segmento do montante do Produto Interno Bruto que serve às bases de cálculo do imposto.

O que é uma análise contrafactual?

Análises contrafactuais permitem ao avaliador atribuir relações de causa efeito entre intervenção, outputs, outcome e impactos. Inúmeros métodos devem ser usados em conjunto para constituir, com base em evidencias, uma instância contrafactual plausível e verossímil.

Foi nesse contexto que o ex-presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, submeteu e aprovou junto ao Congresso Nacional o projeto de Lei Complementar nº 212/2024[7] – O Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag.). Segue como solução aos estados para suas dívidas junto à União. Será verdade? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, em partes, mas vetou alguns artigos. Inclusive a obrigação da União em assumir dívidas dos estados com bancos privados.

Por que em vez do PROPAG, os governadores não propõem a compensação das dívidas históricas da União para com os Estados? A maioria dos estados não possuem recursos suficientes para cumprir as mínimas funções constitucionais. Não seria o caso, também, dos governadores assumirem uma posição menos submissa ao governo federal, não abrindo mão desses créditos legítimos?

No caso do Estado de Minas Gerais, o governador Zema renunciou a uma receita de mais de R$ 135 bilhões de receitas de ICMS, da Lei Kandir, que poderiam ser trocadas pela dívida do estado de Minas Gerais. Hoje, uma dívida pública, devida à União, equivalente a mais de R$ 160 bilhões.

Os governadores não deveriam questionar essas dívidas públicas estaduais ilegais, ilegítimas e odiosas? Dívidas gestadas por elas mesmas, com Ilegalidades jurídicas, apontadas pela sumula 121 do STF[8].  O chamado anatocismo, juros sobre juros.

O repasse referente à Lei Kandir ao Estado do Rio de Janeiro, em 2017, foi de pouco mais de R$ 1,8 bilhão, com uma perda de receita de ICMS acumulada entre 1999 e junho de 2018 no montante de cerca de R$ 34 bilhões. Se deflacionarmos os valores entre junho de 2018 e dezembro de 2024, essa perda alcançará a cifra de aproximadamente R$ 50 bilhões.

Embora a queda de ICMS entre 2022 e 2023, no primeiro semestre deste ano, seja de 6% em termos nominais, o que representa cerca de R$ 40 bilhões, a queda efetiva medida a partir do exercício anual contrafactual da base tributável foi de R$ 109 bilhões. Foi nesse contexto que o ex-presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, submeteu e aprovou no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar nº 212/2024.

O Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag.) segue como solução aos estados para o pagamento das dívidas junto à União. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, em partes, com alguns vetos. Não seria o caso de fazer uma compensação com o estoque histórico de dívidas da União para com os estados, mesmo por que a maioria deles não tem recursos sequer para cumprir suas mínimas funções constitucionais? E não seria o caso, também, de os governadores assumirem uma posição menos submissa ao governo federal, não fazendo descaso desses direitos?

No caso do Estado do Rio de Janeiro, precisamos exercer o direito constitucional estadual, no cumprimento ao Art. 36 dos Atos Diretos Constitucionais Transitórias. Auditoria com participação cidadã da dívida pública do Estado do Rio de Janeiro.

O projeto de lei complementar do Pacheco, o PROPAG, tem como pilar central a consolidação das dívidas estaduais indicadas no projeto de lei. Mas, consolidar no jargão econômico, significa perpetuar uma dívida para futuras gerações. Essa consolidação representa juntar todas as ilegalidades, ilegitimidades e transformar em legal.

No caso do Rio de Janeiro, em 1999, a dívida refinanciada pela lei n0 9496/1997 foi cerca de R$ 15,6 bilhões, com um pagamento à vista de R$ 2,1 bilhões, restando um saldo a refinanciar de cerca de R$ 13,5 bilhões. Até 2023, os pagamentos realizados totalizaram mais de R$ 30 bilhões. Consultado o site de transparência RJ[9], o saldo a pagar em janeiro de 2025 é cerca de R$ 95 bilhões. Considerando o saldo do Regime de Recuperação Fiscal, no mesmo período, cerca de R$ 79,9 bilhões. Lembram que o PROPAG considera as dívidas consolidadas? Considerando os saldos da lei n0 9496/1997 (R$ 95 bilhões) mais o saldo RRF (R$ 79,9 bilhões). O saldo consolidado das duas dívidas será de cerca de R$ 174,9 bilhões ou 80,22% da dívida financeira do Estado do Rio de Janeiro, que gira em torno de R$ 218 bilhões, com trajetória de crescimento.

Além do saldo consolidado das dívidas, em janeiro de 2025, cerca de R$ 174,9 bilhões, mais de 12 vezes o refinanciamento inicial, cera de R$ 13,5 bilhões, em 1999. Sem considerar os pagamentos realizados de mais de R$ 30 bilhões ou mais que o dobro do valor inicial. A lei complementar n0 212/2024 coloca várias condicionantes. Inclusive entregas de receitas estaduais, patrimônios públicos e controle acionário de empresas estatais e economia mista etc. Como podemos perceber, não parece uma solução definitiva para as dívidas estaduais, ou é mais um paliativo para os estados endividados.

Podemos tomar o caso do Estado do Rio de Janeiro como exemplo. Primeiro estado a aderir ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF). O ex-governador Pezão aderiu ao RRF em setembro de 2017, com valor inicial de R$ 9,4 bilhões. Três anos depois, em agosto de 2020, o saldo de R$ 65 bilhões do RRF foi incorporado à dívida financeira do ERJ. Não parou aí, o governador Cláudio Castro aderiu ao novo Regime de Recuperação Fiscal, com aprovação da lei complementar 178/2021.

Em agosto de 2025, o saldo do RRJ totaliza cerca de R$ 79,9 bilhões. Uma dívida gerada por ela mesma que cresceu mais de 8,5 vezes o valor inicial do Regime de Recuperação Fiscal. Alguém em sã consciência pode afirmar que o tal RRF foi uma grande solução para o Estado do Rio de Janeiro? Agora vem o PROPAG, somente o futuro poderá responder, mas na minha opinião, é mais uma grande armadilha. Quem viver verá!!!

*Diretor da ASSIBGE-SN/Coordenador do Núcleo Sindical Canabarro/Coordenador do Núcleo da Auditoria Cidadã RJ.

[1] https://www.tesourotransparente.gov.br/consultas/transferencias-constitucionais-realizadas

[2] https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao.php.

[3]https://www.bcb.gov.br/content/estabilidadefinanceira/politica_cambial/texto_tecnico/Medidas_Simplificacao_Area_de_Cambio.pdf

[4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11371.htm

[5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp192.htm

[6] https://comsefaz.org.br/novo/estados-perdem-r-109-bilhoes-de-icms/

[7] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-complementar-n-212-de-13-de-janeiro-de-2025-606770578

[8] https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=2000

[9] https://portal.fazenda.rj.gov.br/tesouro/relatorios/divida-publica/

 

FONTE:

https://desacato.info/por-que-os-governos-federais-nunca-revogaram-a-lei-kandir-por-paulo-lindesay/?fbclid=IwY2xjawI-9FRleHRuA2FlbQIxMAABHRhNGbUfMXI1uSBUT7xVrMIGB-jC_UvxsauHAtiji0z5Jm9p7A-6G8UsyQ_aem_vYbCgg1GUSZibWNViPNM9g 




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