O caos como método
O caos como método: a ação policial no Rio, a desordem informacional e a guerra de narrativas rumo a 2026
Como a extrema-direita aprendeu a produzir realidade nas redes e por que a esquerda ainda não tem uma estratégia para disputar o imaginário digital
por Márcio Cabral *
SUL 21 4 de novembro de 2025

da Operação Contenção. Foto: Eusébio Gomes/TV Brasil
O Brasil vive há anos em um ambiente que simula excesso de informação, mas produz o contrário: confusão, cansaço e adesão automática. Chamamos isso de desordem informacional. Não é apenas fake news ou boato: trata-se de um sistema em que verdade, mentira, opinião, montagem de IA e emoção aparecem no mesmo plano, sem hierarquia ou tempo para verificação. A cada evento — operação policial, enchente, eleição —, surgem múltiplas versões simultâneas, todas com urgência. Quando tudo parece possível, nada é confiável. É nesse vazio que a política opera.
O massacre no Rio, com mais de cem mortos, evidenciou esse mecanismo. Vídeos de helicópteros atirando circularam com legendas contraditórias: “vitória da polícia”, “massacre do Estado”. Logo surgiram imagens de Gaza, usadas como se fossem do Rio. Não foi engano: foi estratégia. O critério deixou de ser “é verdade?” e passou a ser “mobiliza meu público?”. As imagens falsas, mais emocionais que as reais, tornaram-se mais persuasivas. No regime da desordem, a mentira é ferramenta, não falha.
Quanto mais versões circulam, mais difícil definir o fato e mais poder tem quem oferece uma narrativa pronta. O objetivo não é impor uma versão única, mas tantas que a ideia de verdade comum se dissolva. A extrema-direita domina esse ambiente. Produz conteúdos falsos, recortes manipulados, vozes sintéticas, perfis falsos, tudo para gerar reação (medo, indignação, sensação de ameaça) e substituir o fato por um enredo emocional. O algoritmo premia engajamento, não precisão.
A esquerda, ao contrário, ainda comunica como se o ambiente fosse ordenado. Diante da mentira, responde com dados; diante da manipulação, com nota; diante da distorção, com “esclarecimento em sete pontos”. Só que, na lógica digital, quem explica já chegou tarde. A disputa não é apenas de conteúdo, mas de tempo e afeto. A extrema-direita chega com narrativa simples; a esquerda chega com análise complexa. Uma cria pertencimento; a outra pede paciência. Em 2025, isso significa perder.
Esse fenômeno é global. As eleições norte-americanas revelaram a entrada definitiva da IA na política. Não é correto afirmar que a campanha de Trump oficializou o método, mas grupos de apoio e setores da extrema-direita passaram a usar IA para gerar vídeos, áudios e imagens hiper-realistas com impacto emocional imediato. Já existem deepfakes, simulações de eventos, discursos forjados. Não servem para enganar especialistas, mas para inflamar públicos. E as plataformas permitem, porque lucram com o caos: a desordem informacional é também modelo de negócio.
Nesse contexto, Mountainhead, de Jesse Armstrong, é uma metáfora precisa. No filme, um golpe de Estado inexistente ganha forma por meio de imagens geradas por IA realistas o suficiente para levar um país ao colapso. Não é o fato que decide, mas a aparência do fato. O “eu vi o vídeo” torna-se critério de realidade. Essa é a forma madura da desordem: o real é substituído pelo que circula.
2026 será provavelmente a primeira eleição brasileira sob influência direta de IA e desordem informacional massiva. Não falamos apenas de mentiras sobre candidatos, mas de eventos falsos, declarações fabricadas, áudios atribuídos a lideranças, simulações de violência, tudo disseminado em grupos segmentados, com velocidade superior à capacidade de checagem. E mais: poderão surgir lideranças fabricadas digitalmente, sem trajetória, mas com narrativa emocional poderosa. A desordem informacional cria personagens políticos.
O risco é evidente: a esquerda está despreparada. Não por falta de conteúdo, mas porque ainda pensa comunicação como transmissão de informação, não como disputa de desejo. Acha que a tarefa é corrigir críticas, quando é produzir sentido antes que o outro ocupe o espaço. Supõe que o eleitor decide racionalmente, quando ele reage a estímulos emocionais contínuos. Trata redes como divulgação, quando são o próprio território político, onde se forma opinião sobre segurança, economia, clima, racismo, feminismo e sobre quem merece governar.
Se a esquerda entrar em 2026 reativa, acreditando que basta “desmentir fake news”, o resultado pode ser desastroso para a eleição da presidência, como para o Congresso. A desordem informacional pulveriza o voto, cria candidaturas instantâneas que surfam o ódio do dia e elegem figuras “antissistema”, “antibandidos”, “salvadores”, produzidos por vídeos virais, não por projetos de país. Isso pode gerar um Congresso mais radicalizado e alinhado ao caos, justamente quando o país precisaria de estabilidade para enfrentar crise climática, desigualdade e reconstrução institucional.
O que fazer? Primeiro, nomear o problema: não é “fake news”, é uma estratégia para dissolver a noção de realidade compartilhada. Segundo, chegar antes: produzir linguagem própria, conteúdo rápido, visual, afetivo, irônico, vivo. Terceiro, criar rede, não canal: comunicação distribuída, com muitas vozes e sotaques, articuladas em torno de sentido comum. Por fim, entender que 2026 será disputa simbólica: quem ocupa o imaginário, vence; quem explica demais, perde.
A verdade ainda existe, mas vem perdendo lugar político. A desordem informacional tornou fatos irrelevantes para uma parcela da sociedade. A extrema direita compreendeu isso e transformou o caos em método. Se quiser continuar governando, a esquerda precisa transformar lucidez em estratégia, não para se elogiar, mas para devolver à política o que o caos tenta arrancar: sentido, vínculo e futuro.
(*) Psicanalista, mestre pela UFRGS e diretor do Instituto SIG – Psicanálise & Política e do Instituto E Se Fosse Você?
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