O conforto do pedestal
O conforto do pedestal (coluna da Appoa)

Priscilla Machado de Souza (*)
Hoje ninguém vai me ferir.
Hoje ninguém vai me ferir.
Hoje ninguém vai me ferir.
Assim renovo a decisão de levantar da cama,
da mesa, de qualquer lugar.
Todo dia é tempo de defender meu corpo.
Tônio Caetano
A favela não venceu, não. Sinto muito por dizê-lo, contrariando um certo essencialismo que admite a ascensão social de poucos negros como a vitória de muitos. Essa ideia é apenas o discurso da meritocracia em ação, fazendo crer que o exemplo único garante a possibilidade de todos; tratando exceção como regra.
Enquanto isso, o campo progressista escoa ignorância sistêmica e sintomática na insistência de ler e regurgitar apenas – não que seja pouco, mas longe de ser suficiente – os cânones de sempre, talhados de branquitude e de eurocentrismo. É parte de uma valorização deficitária de nossa cultura brasileira e latino-americana – latinoamefricana! (1) –, colonizada para se assumir como produto exportação: carnaval e futebol.
Desde este lugar, é um passo e tanto descer do pedestal intelectual da branquitude. Diferente do que pensaram num certo maio francês de 1968, as estruturas foram, ainda que tímidas, às ruas, mas também aos assentamentos e às comunidades indígenas dos nossos pagos brasilis, por exemplo. Aqui estiveram sempre e quando puderam replicar um pouco mais disso mesmo: as estruturas.
Se tornar-se negro (2) é um passo necessário para uma pessoa negra em ascensão – quer dizer, abrir mão da máscara branca (3) usada para galgar alguns pequenos e inseguros degraus –, descer do suposto e fantasioso pedestal intelectual é tarefa urgente para a branquitude. Acontece que esse é um limite narcísico muito duro, no qual a força de um pacto (4) faz com que a opção ainda seja estudar os negros, em vez de estudar com os negros.
Estamos falando de epistemicídio, mas não só, já que a obstinação a se ver como benfeitor e salvador faz de tantas pessoas brancas os senhores e as sinhás intelectuais que, condescendentemente, esperam a subserviência intelectual dos negros nas universidades, nas artes, na área médica, na área social, na área psi etc. Degraus se sobem e se descem, já os pedestais performam a segurança inercial, a vontade política de manter tudo nos exatos mesmos lugares. É dessa forma que assisto, não sem tristeza e revolta, a colegas brancos obstinados pelas mesmas ferramentas que nunca ajudaram a ver, ler e menos que menos derrubar a casa-grande.
É assim que a ascensão social pode significar algo fundamental para o ex-morador da favela, mas não muito para a coletividade negra. Além disso, essa discutível vitória traz uma enorme cota de solidão para a pessoa negra que ascende. No dizer, ainda atual, de Neusa Santos Souza, lemos uma análise sobre este tema:
O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre mais ou menos dramático de sua identidade. Afastado de seus valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de ‘tornar-se gente’. (…) Nas sociedades de classes multirraciais e racistas como o Brasil, a raça exerce funções simbólicas (valorativas e estratificadoras). A categoria racial possibilita a distribuição dos indivíduos em diferentes posições nas estruturas de classe, conforme pertençam ou estejam mais próximos dos padrões raciais da classe/raça dominante. (5)
Vejo como muito difícil para a esquerda frear retrocessos incessantes de uma extrema-direita que já esteve no poder, sem uma grande reforma no campo da intelectualidade brasileira. Uma reforma que permita a essa intelectualidade se racializar, assumindo-se branca e deixando de lado o lugar de sujeito universal. Isto significa, sobretudo, sair da posição que objetualiza aos demais – a postura do estudar “os” e “as” – para um verdadeiro fazer comum – o estudar com. Calçar essas benditas sandálias da humildade passa por assumir que a própria trajetória entra em questão. Exercício necessário e urgente.
1 Conforme proposta da filósofa e antropóloga brasileira Lélia Gonzalez.
2 Título do incontornável livro da psicanalista brasileira Neusa Santos Souza, de 1983.
3 Alusão à expressão utilizada pelo psiquiatra martinicano Frantz Fanon em seu clássico Pele negra, máscaras brancas reeditado pela Ubu em 2020.
4 Referência ao pacto narcísico da branquitude, conforme a psicóloga brasileira Cida Bento (2022).
5 Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021, p. 46-49.
(*) Psicanalista e membro da APPOA; idealizadora da Com Verso: Psicanálise e Poesia
FONTE:
https://sul21.com.br/opiniao/2025/03/o-conforto-do-pedestal-coluna-da-appoa/