O eco de Nuremberg

O eco de Nuremberg

O eco de Nuremberg no Brasil de 2025

 

 

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Por ALEXANDRE CRUZ*


Em 1961, Julgamento em Nuremberg, de Stanley Kramer, projetou no cinema uma questão que a humanidade ainda reluta em enfrentar: até que ponto a obediência às ordens pode absolver um homem? No tribunal, os juízes nazistas alegavam apenas ter cumprido a lei vigente, sob um regime que exigia juramento de fidelidade pessoal a Hitler. A defesa sustentava que negar-se seria perder o cargo, a liberdade ou a vida. Mas a acusação lembrou o óbvio: cada sentença proferida, cada assinatura num decreto de esterilização compulsória ou condenação sumária, não era um ato burocrático neutro. Era cumplicidade com o horror.

O Brasil já havia sentido o cheiro de Nuremberg antes mesmo da abertura do processo no Supremo. Em 8 de janeiro de 2023, o país assistiu atônito à invasão e depredação do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Não era um ato isolado de fúria popular, mas a materialização de um golpe continuado, alimentado por anos de discurso incendiário. Jair Bolsonaro insultava ministros como Alexandre de Moraes com palavras de baixo calão, deslegitimava a Justiça Eleitoral e semeava desconfiança nas urnas eletrônicas, um veneno diário que preparou o terreno para que seus seguidores acreditassem que destruir símbolos da República era um gesto de “patriotismo”.

Hoje, o Brasil revive um dilema análogo, em outro tempo e cenário. O Supremo Tribunal Federal julga oito figuras centrais da tentativa de golpe de Estado que marcou o ocaso do governo Bolsonaro. Estão no banco dos réus o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro, generais como Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio, o almirante Almir Garnier, além de civis que orbitavam no coração do poder, como Anderson Torres, Alexandre Ramagem e o ajudante de ordens Mauro Cid. O fio que os une é a participação, direta ou indireta, em um plano para subverter a Constituição e sequestrar a soberania popular.

O paralelo com Nuremberg não é apenas simbólico. Ele é estrutural. Em 1945, pela primeira vez o mundo afirmou que obedecer não é desculpa. O princípio firmado foi cristalino: “cumprir ordens superiores” não exonera a responsabilidade individual por crimes contra a humanidade. O soldado que dispara em inocentes, o juiz que chancela sentenças monstruosas, o general que legitima a tirania, todos compartilham a culpa. Da mesma forma, no Brasil de 2025, o argumento da disciplina militar ou da fidelidade a um “chefe supremo” não pode servir de escudo. Tentar destruir a democracia é, por definição, um crime contra o povo e contra a ordem constitucional.

A jurisprudência internacional oferece lições preciosas. No Tribunal de Tóquio, após a Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se o princípio de que ordens superiores não justificam crimes contra a humanidade. Esse mesmo princípio foi reafirmado décadas depois pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda, com sede em Arusha e instância de apelação em Haia: sempre que a alegação de obediência cega foi invocada, a resposta dos juízes foi a mesma, há um núcleo irredutível de responsabilidade que nenhuma hierarquia apaga. Quem escolhe colaborar com a destruição das instituições não é uma peça neutra de engrenagem: é um agente moral

No Brasil, esse julgamento tem dimensão dupla. No plano jurídico, trata-se de consolidar o entendimento de que nenhum cargo militar ou civil autoriza a conspiração contra o regime democrático. No plano histórico, é a chance de dizer, diante da memória de 1964, que não toleraremos reincidências. Um país que se omite diante de golpes anunciados naturaliza a exceção e alimenta o ciclo da violência política.

Vale lembrar a fala do juiz Dan Haywood, interpretado por Spencer Tracy no filme de Kramer: “Um país não cai no abismo de uma hora para outra. São pequenas concessões, pequenas capitulações, pequenos silêncios que o levam até lá.”  O Brasil conhece essa descida. Foi pelo silêncio dos tribunais, pela cumplicidade de generais e pela apatia de elites que a ditadura de 1964 se instalou e se prolongou por duas décadas. O preço da omissão foi pago com censura, tortura e sangue.

Por isso, este julgamento não é sobre oito homens apenas. É sobre a solidez da Constituição de 1988 e a promessa de um “nunca mais” que só se cumpre se for escrito em sentenças, não em discursos. Julgar Bolsonaro e seus aliados é, em última instância, julgar se a democracia brasileira é uma cláusula pétrea ou uma concessão precária.

Nuremberg ensinou que a responsabilidade individual é inescapável. O Brasil, em 2025, tem a chance de demonstrar ao mundo que também aprendeu. E que desta vez, diante da ameaça autoritária, não haverá silêncio cúmplice nem capitulação. O Supremo não julga apenas réus: julga a própria fidelidade do país ao Estado de Direito.


*Alexandre Cruz é jornalista político.

lustração de capa: IA

 

FONTE:

https://red.org.br/noticias/o-eco-de-nuremberg-no-brasil-de-2025/?fbclid=IwY2xjawMyrG9leHRuA2FlbQIxMQABHnBiG3ebcezLp8iUkfsh7bZJyx0i9sj2vE6tvVjc_ScWmkkLoAyqr4k9-cxI_aem_SMPVW6zpAOrJsVTaWLgWZw




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