O equívoco escolar
O equívoco escolar e sua difícil realidade: o inimigo tem muitas faces
O atual quadro sangrento que estamos atravessando, com a maior recorrência dos ataques nas escolas, são um fenômeno complexo e multifatorial
14/4/2023
Foto: Ilustrativa/Pexels
VITÓRIA BARRETO
Escola deve ser um lugar de encontros, convívios, partilhas, afeto e aprendizagem. Escola não deve ser esse lugar confortável para o medo habitar, para o ódio fazer casa e para a violência se instaurar. Escola é lugar de criança e adolescente e, para isso, nós temos um estatuto – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é a Lei nº 8.069, criada em 13 de julho de 1990.
O ECA é a nossa bússola e nosso lastro, para garantirmos os direitos de vida desses seres humanos que estão chegando agora no Planeta, sendo crianças ou habitando esses solos terráqueos há pouco tempo, os adolescentes. A escola é uma instituição organizada com fins de compartilhamento dos saberes acumulados pela humanidade e foi historicamente se configurando e instalando até chegar mais próximo do que conhecemos hoje. Ela surgiu com o movimento do Iluminismo, na Europa, no final do século XVIII e no decorrer do século XIX. Já no século XX a escolarização (os estudos obrigatórios) já era instituída em muitos países ao redor do mundo. Pois foi aí, na sua origem europeia, que o equívoco escolar começa. A escola é uma instituição equivocada desde a sua raiz porque foi no início da sua formação e organização que as práticas de exclusão, segregação, silenciamento e violências começaram.
Tantos anos se passaram, estamos aqui em 2023 e a escola continua sendo, sob várias óticas, aquela que sempre foi: um lugar de depositação de conteúdos e de adestramento dos corpos e das subjetividades. A escola tradicional é um braço muito importante para a manutenção do medo como mecanismo de domínio dos corpos, do autoritarismo como ferramenta para o silenciamento e a disciplina alienada como estratégia de manutenção da docilização das rebeldias necessárias.
São assustadoras as estatísticas de evasão escolar, bullying e outras formas de violência escolar vividas e registradas há décadas. O atual quadro sangrento que estamos atravessando, com a maior recorrência dos ataques nas escolas, são um fenômeno complexo e multifatorial. Existem atravessamentos do racismo estrutural, juntamente com as políticas de incentivo ao armamento da população civil, somado à espetacularização feita por parte da mídia e com o discurso de ódio, preconceito e violência promovido por políticos de grande expressão pública.
Existe também o fator de que a adolescência é um momento delicado, que nos exige muita atenção e cuidado, e alguns jovens se tornam (por uma junção de fatores) mais vulneráveis às ideologias que são pautadas pelos mecanismos da violência.
Mas quero trazer aqui a perspectiva de que não é à toa que esses ataques estão ocorrendo justamente nos solos das escolas. Esse que é o ponto. Concordo e defendo radicalmente que o fenômeno dos ataques nas escolas é de causa multifatorial, mas defendo também que esse é um problema escolar. Essa é uma questão oriunda do que eu costumo dizer: o equívoco da escola. Se partimos da leitura de que a essa instituição é majoritariamente um lugar de não felicidade, de pouco afeto entre os atores escolares, de perpetuação de práticas institucionais e pedagógicas que não legitimam o real encontro entre as pessoas e suas histórias de vida, se temos índices assustadores que revelam a falência dessa instituição, é de “se esperar” que essa bomba iria explodir, como já explodiu tantas vezes e vai continua explodindo.
Quero afirmar aqui, enquanto psicóloga escolar e pesquisadora do fenômeno da escolarização que, se a gente não se organizar enquanto sociedade civil, juntamente com o Estado, para discutirmos de forma séria e urgente o fenômeno da escolarização em seus equívocos, nós vamos continuar sendo testemunhas, vitimas e algozes de cada gota de sangue derramado nesses solos. Não há um só culpado nessa história. Essa realidade é complexa e multifatorial, por isso, precisamos olhar e lidar com lentes que incluem a complexidade. O buraco é muito mais embaixo.
Trago aqui um exemplo super simples do cotiando escolar. A imensa maioria das crianças e adolescentes, quando perguntados sobre o que mais gostam na escola, eles respondem: as amizades, hora do recreio e o lanche. Considero que essas respostas, tão recorrentes, simples e explícitas, nos mostram o que há de errado. A relação com o conhecimento e o aprendizado não é, definitivamente, o que captura esses jovens. Mas nós sabemos também que toda criança é naturalmente pesquisadora. O espírito da curiosidade, da pesquisa e do desejo de aprender, é humano! O que nos distancia dessa força criativa e investigativa, é justamente a escola, por mais paradoxal que isso seja.
Portanto, o equívoco da escola está em sua raiz, e por isso precisamos refundá-la, urgentemente. E nós só podemos fazer isso estando lá dentro, pisando nesses solos e compondo o que chamamos de comunidade escolar. Nós só podemos fazer isso vivendo o cotidiano escolar, olhando de perto, escutando de perto e sentido de perto essas crianças e adolescentes que são obrigados a irem pra esse lugar cinco vezes na semana, tendo que experienciar a vida, na maior parte do seu tempo, lá dentro desses muros. Nós não podemos falar de fora. Nós precisamos falar de dentro.
E por mais que a gente queira, frente à dolorosa e assustadora realidade dos ataques nas escolas, nós não vamos encontrar um só inimigo. São muitos que atuam direta ou indiretamente para a perpetuação da escola como um lugar de alienação e manutenção dos mecanismos de violência. A escola continua sendo um lugar de silenciamento das rebeldias necessárias.
Pra finalizar essas palavras iniciais e modestas sobre esse tema tão profundo, complexo e urgente, trago aqui um olhar semântico. A palavra escola vem do grego, scholé, que significa ao mesmo tempo discussão, conferência e também lugar de ócio. Na sua origem europeia no século XVIII, a escola era ocupada e frequentada por pessoas que estavam em seu tempo livre, que queriam ler e conversar sobre o que estavam aprendendo. Um dos maiores equívocos da escola foi ter se tornado um lugar que traz a sensação da obrigatoriedade do aprendizado, silenciando justamente quem quer (ou queria) aprender.
O buraco é muito mais embaixo.