O fim do Império americano
"Trump simboliza o fim do Império americano", diz Marilena Chaui
Filósofa da USP reafirma marxismo, critica a classe média, condena o neoliberalismo e alerta sobre a fragmentação da esquerda

Em entrevista à Folha de S. Paulo, a filósofa e professora emérita da USP, Marilena Chaui, 84, fez uma análise contundente sobre o cenário político e social no Brasil e no mundo. Autora de obras clássicas como O que é Ideologia, recentemente relançado, ela volta ao debate público ao lançar Filosofia, um modo de vida (Planeta).
Conhecida por sua crítica severa à classe média, Chaui reafirma: “Eu odeio a classe média até o fim dos meus dias. A classe média funciona oprimindo os dominados e bajulando os dominantes. Por isso ela é odiosa”. A declaração retoma uma polêmica que marcou sua trajetória, mas que, segundo a filósofa, continua válida para compreender a função ideológica desse setor social.
Bolsonaro, autoritarismo e pessimismo sobre o Brasil
A filósofa considera que a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro abriu uma nova percepção sobre o país, mas insiste em um diagnóstico negativo sobre a sociedade brasileira.
“É a primeira vez na história do Brasil que um atentado contra a democracia é impedido e punido. Descobrimos que um dos pilares da democracia é a distinção entre interesse privado e direito público”, afirmou. Apesar disso, ela se declara “muito pessimista” e critica a contradição entre a autoimagem de um povo cordial e generoso e o cotidiano marcado pela violência de classe, de gênero e racial.
Donald Trump e o declínio americano
Para Chaui, a atuação do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, representa uma ruptura institucional que acelera o declínio do poder americano.
“A visão que eu tenho do Trump é de que ele está desinstitucionalizando os Estados Unidos. Ele faz intervenções pontuais em lugares de conflito: Gaza, Ucrânia, Venezuela... E a resposta que deu a perguntas do motivo disso foi: ‘Porque eu posso’. Então, a imagem que eu tenho é a do fim do império americano”, declarou.
A filósofa compara a situação atual dos EUA ao fim do Império Romano, quando figuras como Calígula e Caracala impuseram sua vontade pessoal sobre as instituições. “Nos EUA você tem Trump, ou seja, um desmando no nível da sua própria personalidade. Isso desinstitui um país e põe em risco todas as relações planetárias estabelecidas.”
Neoliberalismo e o avanço da extrema direita
Chaui também fez duras críticas ao neoliberalismo, que, em sua visão, enfraqueceu a esquerda e fortaleceu a direita.
“O mundo neoliberal é totalitário. A escola é uma empresa, o hospital é uma empresa, o indivíduo é uma empresa. Isso é totalitário”, afirmou. Segundo ela, essa transformação fragmenta a classe trabalhadora e abre espaço para a extrema direita, que se organiza em torno de símbolos nacionais e líderes religiosos como Silas Malafaia e Edir Macedo.
Recusa ao mundo digital e crítica ao cancelamento
A professora emérita se declara em antagonismo com a era digital, chegando a afirmar: “Nasci na primeira metade do século 20 e não vou entrar no século 21. Eu não quero, por favor, não quero. Estou fora.”
Ela define o cancelamento como “um assassinato socialmente aceito”, com consequências graves, sobretudo entre os mais jovens. Para Chaui, o celular representa a nova caverna de Platão, aprisionando indivíduos em um mundo ilusório de imagens.
Filosofia como forma de vida
No novo livro, Chaui sustenta que a filosofia não pode ser dissociada da existência cotidiana. “É uma relação ininterrupta com o mundo. Você não pode chegar em casa e dizer: ‘Cheguei em casa, e a filosofia acabou’. Ela está sempre com você, na maneira de ver, perguntar, responder e se relacionar com o outro.”
Uma pensadora de resistência
Considerada uma das principais intelectuais brasileiras, Marilena Chaui segue provocando intensos debates. Com um olhar marxista, alerta para os perigos da fragmentação da esquerda e denuncia o avanço autoritário impulsionado pelo neoliberalismo e pela extrema direita.
“Sou marxista pra valer. Tem que pensar a partir da economia, senão você pensa só a partir da ideologia”, resume.
FONTE: