O fracasso do PNE

O fracasso do PNE

A última década na educação brasileira e o fracasso do PNE

Novos dados mostram que as metas do Plano Nacional de Educação estão distantes de serem cumpridas, evidenciando uma década de estagnação marcada pela pandemia, pelo governo Bolsonaro e por investimento insuficiente

Em 2014, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela presidenta Dilma Rousseff a lei nº 13.005, que fez começar a valer o Plano Nacional de Educação (PNE). A lista de vinte metas e diretrizes para a educação brasileira deveria guiar as ações do governo federal e dos estados e municípios durante os dez anos seguintes. Entre as propostas do PNE estão erradicar o analfabetismo, oferecer o atendimento escolar universal a todos e diminuir a desigualdade educacional da população do Brasil. 

Porém, chegando aos últimos meses da vigência do plano, a educação brasileira não só se encontra aquém do ideal que o plano colocou para 2024 como retrocedeu em diversos aspectos. Em sua reta final, o PNE não mais representa o sonho realizável de um país rico em educação, mas sim um triste resumo dos fracassos da educação brasileira na última década. 

A universalização do acesso à educação a todas as crianças em idade escolar é uma das metas do Plano Nacional de Educação que melhor apresenta a estagnação do projeto. No caso das crianças de quatro a cinco anos, na pré-escola, a previsão era de ter oferta universal até 2016. Segundo um novo balanço do PNE publicado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a meta não só não foi cumprida no prazo como entrou em retrocesso desde 2019, antes do impacto da pandemia. 

Para as crianças de 6 a 14 anos, a situação foi ainda pior. O nível de crianças frequentando a escola foi menor em 2022 do que em 2014, o primeiro ano do PNE. Segundo o relatório da Campanha, esses números se dão, em grande parte, por causa da pandemia e da postura do governo Bolsonaro em relação a ela. Entretanto, nem tudo é retrocesso, é verdade: o percentual de pessoas concluindo o ensino fundamental na idade correta aumentou, chegando em 2022 ao maior número desde a aprovação do plano, 82,9%. Porém, mesmo quando avançamos, ainda ficamos longe das metas originais, que sonhavam com um objetivo de 95% para 2024.

Talvez uma das metas que mais representa o retrocesso da última década seja a que se refere à oferta de educação em tempo integral nas escolas públicas. Os números de instituições que estão preparadas para o período integral e de alunos matriculados nesse tipo de ensino diminuíram entre 2014 e 2021, perdendo cerca de 12 mil escolas que ofereciam a modalidade e mais de 1 milhão de matrículas. Segundo Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a situação da educação em tempo integral é especialmente agravada no Tocantins, que “teve retrocesso 17,5% desde 2014 na oferta de vagas em tempo integral”. Ela ainda afirmou que essa é uma das metas “mais importantes para a garantia do direito à educação plena, um direito à educação para o desenvolvimento, um direito à educação que garanta outros direitos”, mas que não vem sendo “adotada como política de Estado”.

 

Histórias por trás dos dados 

Hellen Lívio, professora e pedagoga de 29 anos, dá aula em uma escola em Petrolina, no estado de Pernambuco. Assim que se formou, ela escolheu trabalhar na rede pública e, um mês depois, a pandemia começou, afetando praticamente todas as metas do PNE. Ela dava aula de manhã, tarde e noite para conseguir que todas as crianças assistissem. 

Alfabetizar todas as crianças brasileiras até o 3º ano também era uma das metas do PNE que não foi cumprida. Hellen se dedica a ajudar crianças a aprenderem a ler em uma turma de 1º ano, quando começa a alfabetização. Ela também dá aula para uma turma de 4º ano, e diz que, mesmo que as crianças saibam decodificar letras e palavras, a alfabetização completa não é uma realidade, já que as crianças “leem e não interpretam”. 

Todos esses dados se mostram piores, segundo o relatório do Inep de 2022 sobre o PNE, nas regiões Norte e Nordeste. As consequências da pandemia na educação brasileira não foram uniformes, mas afetaram principalmente estudantes de zonas rurais e negros. Como afirmou Andressa Pellanda, essas estatísticas e porcentagens são, na verdade, “pessoas, vidas e estudantes por trás desses números”. A desigualdade educacional brasileira, que o PNE pretendia superar, continua presente, melhor manifesta na ausência de tantos alunos que não conseguiam assistir às aulas durante a pandemia. 

O legado que a pandemia deixa vai mais fundo do que as estatísticas conseguem capturar. Crianças desacostumadas com o ambiente escolar estão muito mais “ansiosas e agitadas”, de acordo com Hellen. 

 

Sala de escola pública (Foto: Caco Argemi/CPERS - Sindicato)
Foto: Caco Argemi/CPERS – Sindicato

 

 Questões orçamentárias 

No ensino superior, a situação do PNE é tão decepcionante quanto no básico. Durante o governo Bolsonaro, as universidades sofreram com falta de verbas e políticas impróprias. De acordo com relatório da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, as matrículas em universidades advindas de escolas públicas deveriam subir 40% entre 2014 e 2024, período de vigência do PNE. Até 2021, o crescimento foi de 9,3%, ainda longe da meta. 

No episódio 199 do podcast Guilhotina, o professor Fernando Cássio afirmou que os ministros da Educação de Jair Bolsonaro sequer estavam interessados em operar em uma lógica de políticas públicas. “Eles tinham um projeto, tanto que levaram esse projeto a cabo. Um projeto de asfixia da escola pública, obras paralisadas no país inteiro, de creches a universidades […] era um projeto destrutivo, que não estava preocupado com educação ou indicadores”. 

Para que todas as diretrizes do PNE se concretizassem, uma era essencial: a Meta 20, que diz respeito à porcentagem do PIB que deveria ser direcionada como investimento público para a educação por todos os entes federativos. O plano estipula que, para o quinto ano de vigência da lei, o patamar deveria ser de 7%. Para 2024, o mínimo exigido era de 10%. Atualmente, os investimentos públicos em educação chegam a metade disso, no máximo. 

Tanto em 2015 quanto em 2020, segundo dados da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cerca de 5% do PIB era direcionado como investimento público para educação. E, por mais que a porcentagem do PIB tenha permanecido praticamente a mesma, o valor bruto dos gastos com educação não estagnou, mas diminuiu entre 2015 e 2020. Enquanto a União gastou R$ 409,1 bilhões em 2015 com educação, o valor de investimento em 2020 foi de R$ 404,1 bilhões, R$ 5 bilhões a menos.  

Os gastos estagnados podem ser explicados, em parte, pela austeridade fiscal dos últimos governos federais, especialmente após a aprovação do teto de gastos, no fim de 2016, durante o mandato de Michel Temer. O novo arcabouço fiscal, que vem para substituir o regime de despesas instaurado pela Fazenda de Henrique Meirelles, também traz seus riscos para o orçamento da educação. A inclusão do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) no esquema fiscal, adicionada ao texto da proposta pelo deputado Cláudio Cajado (PP-AL), pode afetar desde programas de merenda escolar até questões de infraestrutura, visto que o fundo é o principal mecanismo para financiar a educação básica brasileira. 

A adição do Fundeb ao arcabouço fiscal é algo que não acontecia nem no teto de gastos, que continuou inalterado nesse aspecto durante o governo Bolsonaro. Segundo o balanço do PNE da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a aprovação e aplicação da nova regra fiscal como está hoje inviabiliza a garantia de direitos básicos, consagrados na Constituição. 

Além dos problemas fiscais, a desigualdade do aporte também é um problema importante, impedindo a concretização da meta. Quem mais contribui com essa cifra de 5,1% do PIB não é o Ministério da Educação, mas sim os municípios, que arrecadam muito menos que os governos estaduais e federais, mas atualmente contribuem com as maiores quantias para a educação. 

A importância dos recursos é reforçada por Hellen, que fala que, quando alguma meta não é cumprida por falta de dinheiro, “a corda sempre quebra para o nosso lado [dos professores]”, que sofrem com salários baixos e trabalham cargas horárias excessivas para compensar financeiramente. 

Os educadores muitas vezes precisam usar dinheiro do próprio bolso para algumas atividades, mas isso não é suficiente e nem adequado. Café da manhã só está incluso na merenda de escolas integrais, mas a fome continua presente. Segundo Hellen, as crianças vão para a escola de estômago vazio, sem condições de prestar atenção na aula. E, mesmo que ela queira, não dá para nenhuma professora pagar três refeições para todas as crianças de uma sala. 

 

O que fazer hoje e no próximo PNE? 

Tentando corrigir alguns dos retrocessos encampados pela política educacional de Bolsonaro, o novo governo Lula, por meio da PEC da Transição, liberou um aporte de R$ 12 bilhões para a educação, garantindo recursos para as áreas mais necessitadas, como o desidratado ensino superior, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que voltou a ser incentivado a comprar de agricultores familiares e foi reajustado após seis anos, e o CNPq e a CAPES, que não viam um reajuste nas bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado desde 2013, uma década atrás, quando o Brasil estava sob outro PNE. 

O governo federal também retomou o Fórum Nacional de Educação (FNE), que possibilita o debate entre a sociedade civil organizada, desde movimentos sociais a organizações não governamentais que lidam com educação, e o Estado. O FNE havia tido suas atividades suspensas durante o governo Bolsonaro. 

Mesmo que alguns passos tenham sido dados na direção da concretização do PNE, a verdade é que o Brasil chegará em 2024 muito distante daquilo que imaginou para si em 2014. Segundo o balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cerca de 90% das metas do PNE não devem ser cumpridas no prazo, e o relatório do Inep que avaliou o plano em 2022 afirmou que o nível de execução médio das metas está em 45,1%, nem na metade do caminho imaginado. “Assim, é forçoso reconhecer que a execução do atual PNE é insuficiente para o alcance das metas até o ano de 2024”, afirma o documento do Inep. Não dá para virar um 7×1 aos 45 do segundo tempo. 

Será que existe algo que possa ser feito para o próximo PNE ser levado mais a sério? O senador Flávio Arns (PSB-PR), que foi o presidente da Subcomissão Temporária para Acompanhamento da Educação na Pandemia, defende a criação de mecanismos de coercibilidade para as metas do Plano Nacional de Educação. Arns afirmou, em entrevista à Agência Senado, que acredita que isso seja necessário para que “as pessoas deixem de olhar o plano como uma simples carta programática ou um plano de intenções, e o vejam como uma lei com metas impositivas a todos, sob pena de consequências jurídicas aos responsáveis pela sua execução”. Para isso, ele criou o PL 88/2023, que aguarda audiência pública. 

Pensando num próximo PNE, a professora Hellen fala sobre criar políticas públicas em diálogo com a força de trabalho da educação, os professores. Os problemas e as demandas são diferentes conforme as regiões, então o diálogo com quem está no dia a dia das escolas é essencial. “[É preciso] construir o PNE a partir de cada lugar, cada chão”, completa Hellen. Ela também sugere uma nova meta: implementar seriamente a educação em Direitos Humanos. “Os últimos anos provaram que custa caro não educar para a cultura de paz, respeito e democracia”, e quem pagou mais caro foi a educação. 

 

Eduardo Lima faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil. 

 

FONTE:
https://diplomatique.org.br/a-ultima-decada-na-educacao-brasileira-e-o-fracasso-do-pne/ 




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