O jornalismo virou refém

O jornalismo virou refém

O jornalismo virou refém

Com lei ou sem lei, depender de big techs já é um desastre.

 26/08/2023

 

Começou! Desde o início de agosto, os canadenses estão impedidos de lerem notícias nos serviços da Meta – Facebook e Instagram. Quem tenta acessar publicações de veículos jornalísticos por lá recebe uma mensagem: "as pessoas no Canadá não podem ver esse conteúdo", completado com "conforme a legislação do governo canadense". 

O malabarismo argumentativo leva a crer que se trata de uma censura governamental, uma grita recorrente quando se fala em qualquer tipo de regulação de redes sociais. Mas não é bem assim. O Canadá aprovou recentemente o Online News Act, uma lei que obriga as plataformas a remunerar veículos jornalísticos. Como é de se esperar, o projeto teve forte oposição das big techs. 

A Meta diz que as pessoas usam pouco suas plataformas para consumirem notícias. Enquanto o alcance de veículos – muito dependentes de redes sociais para a distribuição – continuava a cair nas suas próprias plataformas, a empresa de Zuckerberg financiou uma pesquisa que mostrou que os conteúdos jornalísticos são quase irrelevantes, e representam menos de 3% do que os usuários veem em seus feeds do Facebook. O estudo, muito espertamente, é usado pela empresa como barganha: ele conclui que é a indústria de notícias que se beneficia das redes sociais. E não o contrário. 

O terreno argumentativo estava pronto para sua ação mais agressiva: peitar a mídia canadense em oposição ao projeto de lei. Para a Meta, dizer que as redes sociais estão tirando dinheiro da imprensa é como dizer que a indústria automobilística está tirando dinheiro da indústria de cavalos e carroças (sim, por mais descabido que seja, foi essa a comparação que a empresa fez). No Canadá, hoje, 80% da publicidade online é abocanhada pela Meta e o Google, sem passar pelos veículos jornalísticos que um dia tiveram essa fonte de financiamento.

Apesar de a lei canadense só entrar em vigor no final do ano, a Meta já começou a retaliação, deixando de exibir conteúdos jornalísticos em suas plataformas.  Os efeitos para os veículos canadenses ainda são desconhecidos, mas podem vir a ser catastróficos. Como bem lembrado pelo Desinformante, o Facebook é a principal rede social em que os usuários consomem notícias no Canadá. Um professor de jornalismo da Universidade de Montreal estimou que a imprensa poderia perder 15% da audiência – e até 30% caso o Google também siga os passos da Meta.

Por que estou falando do Canadá? Porque, assim como na Austrália, onde funciona uma lei semelhante, o país será laboratório para a empresa de Mark Zuckerberg testar o seu poder de peitar legislações que prevêem remuneração do jornalismo. Lá também rolou chantagem: as redes sociais bloquearam conteúdos jornalísticos – mesmo aqueles de interesse público no auge da covid-19 – e só voltaram atrás depois de concessões do governo australiano.

"Se alguns dos países mais ricos do mundo estão tendo dificuldades de enfrentar as big techs, como será com as economias em desenvolvimento do sul global?", questionaram os pesquisadores Jonathan Heawood, Michael Markovitz e Anya Schiffrin. Os três estão entre os responsáveis por um relatório, lançado na África do Sul em maio, que apresentou para esse tipo de proposta de remuneração alguns modelos e diretrizes gerais, como responsabilização e independência, incentivo à diversidade, pluralidade e jornalismo de interesse público.

A iniciativa é especialmente importante porque vários países, incluindo o Brasil, Indonésia, África do Sul, Nova Zelândia e os EUA, já discutem regulações semelhantes – e algumas com problemas graves, como nosso caso aqui. A justificável tentativa de salvar o jornalismo em meio a uma crise global de audiência, de dinheiro e de confiança, causada basicamente em função do modelo de negócios das próprias big techs, é preciso frisar –, no entanto, está longe de salvar o jornalismo.

Na Austrália, onde o mecanismo funciona desde 2021, ficou claro que a grana das big techs ficou concentrada na mídia corporativa e nas grandes empresas – impactando no jornalismo independente. 

Por aqui, o PL 2.370/2019, uma fatia do PL 2630 (o das fake news), perigou entrar na pauta de votação da Câmara na semana passada – e deve ser votado em breve. Inicialmente, ele tratava do pagamento de direitos autorais por plataformas digitais (Spotify pagando aos músicos, por exemplo). Mas acabou herdando um tópico do PL das fake news: justamente o que tratava da remuneração de veículos jornalísticos (que, por beneficiar grandes veículos, acabou rendendo o apelido de PL da Globo).

Retirado do PL das Fake News e incluído neste, o tópico está pronto para ir a plenário com alguns pontos bem preocupantes. O relator Elmar Nascimento, do União Brasil, prevê, por exemplo, que o volume de conteúdo produzido, sua audiência nas plataformas digitais e a quantidade de jornalistas registrados deve ser critério na negociação dos valores a serem pagos pelas plataformas a empresas jornalísticas. Como muito acertadamente apelidou a jornalista Tai Nalon, o projeto vira o PL do Clickbait: acabará premiando com dinheiro os veículos que focarem em volume de produção de notícias e títulos sensacionalistas para conseguirem audiência, prejudicando os que fazem jornalismo sério, com apuração, aprofundado, ouvindo todos os lados da história e de longo prazo. Também serão penalizados os veículos menores e independentes, com equipes mais enxutas. 

Esse tipo de coisa, é preciso lembrar, já acontece. Já mostramos como o Google treinou propagadores de fake news para ganharem dinheiro e audiência com seu programa de anúncios. A própria Jovem Pan recebeu dinheiro dos programas de incentivo ao jornalismo do Google. É justamente por isso que um programa de remuneração deve servir para corrigir assimetrias, premiar o jornalismo de interesse público e garantir que os veículos continuem existindo, num tempo em que os caminhos para consumo de informação foram totalmente cercados pelas big techs. 

Não dá para deixar com elas a decisão de remunerar ou não, quem remunerar, ou mesmo determinar, com base em sua visão comercial, quem pode ou não aparecer nos feeds. Porque, quando convém, as plataformas são apenas tecnologias neutras, como elas gostam de se posicionar ao se esquivar da responsabilidade sobre o conteúdo. Mas, quando o calo aperta, agem como um poder paralelo filtrando feeds com base em seus interesses comerciais. Essa decisão não pode ser delas. E essa pode ser nossa chance crucial de disputar essa migalha de dinheiro perto do lucro bilionário que elas anunciam a cada quadrimestre.

Tatiana Dias
Editora Geral




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