O NEM e a falência da cultura
O novo ensino médio e a falência da cultura do espírito, por Michel Aires de Souza Dias
Com a fragmentação dos conteúdos curriculares, o jovem perde a capacidade de pensar a totalidade concreta da realidade histórico e social
O novo ensino médio e a falência da cultura do espírito
por Michel Aires de Souza Dias
O novo ensino médio tem por objetivo contribuir para o projeto pedagógico da burguesia. Ele sofre forte influência das novas demandas do neoliberalismo, impulsionado pela flexibilização dos mercados de trabalho e pelas inovações tecnológicas.
Desse modo, a educação voltada para a conscientização, para a reflexão crítica e a autonomia de pensamento cede lugar a uma educação voltado a especialização técnica. Há uma maior flexibilização dos currículos, das avaliações e da organização do ensino, privilegiando as competências para o trabalho.
O novo currículo também foca na construção do projeto de vidas dos jovens e na formação socioemocional. Ao mesmo tempo disponibiliza aos alunos itinerários formativos associando-os ao projeto de vida, para que os jovens possam ser protagonistas de sua própria vida.
Esses itinerários se constituem por um conjunto de disciplinas e projetos que o jovem deve escolher a fim de se aprofundar em uma das áreas do conhecimento: ciências humanas e sociais aplicadas; linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; e ciências da natureza e suas tecnologias.
Neste novo currículo, que valoriza a preparação para o trabalho, a cultura do espírito e a educação humanista foram relegados a segundo plano. A educação se voltou cada vez mais para a formação tecnológica. O resultado disso, é uma maior atomização do indivíduo, que se tornou incapaz de refletir sobre sua condição histórica e social, e sobre seus verdadeiros interesses. Seu pensamento foi reduzido ao mundo concreto das coisas, servindo apenas como cálculo, desempenho e eficiência para se adaptar de forma cada vez melhor aos padrões e modos de comportamento socialmente exigidos. Desprovidos de uma formação espiritual plena, a mente do jovem é preenchida pelos entretenimentos, pelos valores e pela visão de mundo impostas pelos meios de comunicação de massa. Como avalia a professora Olgária Matos (2001, p. 144), o vazio deixado pela falência da educação humanista a que buscava formar “a excelência dos talentos e habilidade” – vem a ser preenchido pelos valores da mídia e do mercado. A educação de massa não visa a formar o espírito, ao contrário, adapta o indivíduo aos valores empresariais do lucro, da competição e do sucesso, por um lado, as vicissitudes do mercado, de outro. A competição talvez possa melhorar as mercadorias, mas necessariamente piora os homens.
Com a fragmentação dos conteúdos curriculares, o jovem perde a capacidade de pensar a totalidade concreta da realidade histórico e social. Por meio da experiência formativa do espírito seria necessário que ele compreendesse as mediações e as forças que se processam entre sua vida e a sociedade, entre sua interioridade e a realidade, entre sua trajetória individual e a história universal. Contudo, com a exigência cada vez maior de especialização técnica, o jovem torna-se incapaz de pensar as mediações e as relações de poder que determinam sua vida. A formação educacional abandonou a formação espiritual ao reduzir toda atividade humana ao desempenho de tarefas mecânicas (cultura maker). Ao limitar a inteligência a instrução sobre processos, a educação produz tipos de indivíduos que a sociedade necessita socialmente, pessoas tecnológicas, eficientes, com uma mente reificada. Quando o indivíduo por meio da educação é talhado para fazer coisas, para manipular objetos, cultuando a eficiência, a organização e o controle; quando é educado para ser um sujeito ativo, produtivo e eficiente, ele perde a capacidade de levar a cabo experiências humanas diretas. Ele perde a capacidade de amar e se torna um ser frio e individualista.
A educação burguesa, fundamentada na competição, na meritocracia e no individualismo, é o apanágio de um mundo que incentiva a frieza e cria as condições objetivas para a barbárie. O processo educativo se guia pelo princípio da competição como método pedagógico. Com isso, valoriza a disputa, o desempenho e o esforço pessoal, perpetuando a lei do mais forte, transformando os homens em inimigos uns dos outros. Nessa perspectiva, a educação reproduz as condições sociais de competição do sistema capitalista, propagando a frieza como o principal mandamento para a sobrevivência. Daí, em nossa época, o renascimento da personalidade fascista, que tem produzido governos antidemocráticos, contrário as minorias e aos direitos humanos.
Ao refletir sobre a educação em nossos dias, a professor Marilena Chauí (2016, p. 276) observou que a competição nas escolas foi naturalizada. A maioria dos professores do ensino fundamental e médio pertence aos estratos inferiores da classe média urbana e, portanto, a maioria adere ao ideário dessa classe, em que a educação é transmissão de informação e adestramento para a conquista do diploma, de maneira que a prática pedagógica visa a reforçar e não a criticar a ideologia dominante, que é tomada como a verdade das coisas. Nessa perspectiva, a competição individual, o vencer a qualquer custo, a recusa do companheirismo e da solidariedade é vista como natural.
A valorização da formação para o trabalho em detrimento da formação do espírito também colabora para a deterioração da memória. Há o desaparecimento da consciência da continuidade histórica. Muitos jovens são capazes de lembrar o nome de um jogador de futebol ou de um artista de novela, mas são incapazes de dizer quem foi Dom João VI ou Marechal Deodoro da Fonseca. Para o filósofo alemão Theodor Adorno, a perda da memória é bastante útil na reprodução do capital, uma vez que tem a função de adaptar os indivíduos as formas de domínio social prevalecentes: “Quando a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação do existente, nisto reflete-se uma lei objetiva do desenvolvimento (Adorno, 1995, p.33).
Outro fato que merece reflexão, é o de que o projeto de vida e os itinerários formativos não podem ser considerados como disciplinas curriculares. Para que certos objetos de conhecimento façam parte de uma disciplina, como campo de saber, é necessário um longo percurso histórico consolidado pela tradição e por paradigmas e referenciais teóricos aceitos pela comunidade cientifica. O componente projeto de vida, por exemplo, não possui paradigmas ou um referencial teórico fundamentado na tradição. Qualquer professor pode ministrar os conteúdos. O resultado disso é que essa “disciplina” se torna uma aula de autoajuda, onde os preconceitos, a religião, o espiritualismo e pseudoconhecimentos são mobilizados para ministrar a matéria. Não é incomum que os pais dos alunos se deparem com frases de Paulo Coelho, Zibia Gaspareto ou Alan Kardec no caderno de seus filhos.
Como diagnosticou o filósofo Walter Benjamim (1994), com o advento da técnica surgiu uma nova forma de miséria espiritual. A formação cultural do espírito deu lugar a uma angustiante riqueza de ideias que se difundiram entre as pessoas como a renovação da astrologia e da yoga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarianismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo. Adorno (1985, p. 36) complementa seu parceiro intelectual ao dizer que, “quanto mais o processo da autoconservação é assegurado pela divisão burguesa do trabalho, tanto mais ele força a autoalienação dos indivíduos, que têm de se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica”.
Referências
ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
CHAUI, Marilena. Percursos de Marilena Chaui: filosofia, política e educação. Entrevista concedida a Homero Silveira Santiago, Paulo Henrique Fernandes Silveira. Revista Educação e Pesquisa, vol. 42, n. 1, p. 259-277, jan./mar 2016.