O poder do conhecimento
O superpoder de ensinar a aprender
Qual é a área de um triângulo equilátero inscrito em uma circunferência?
Qual é a função sintática de um adjunto adnominal e de um complemento nominal?
Qual é a classificação dos hidrocarbonetos?
Qual é a relação existente entre os ciclos biogeoquímicos?
Qual é a diferença entre truste, cartel e holding?
O que foi a Guerra Fria?
Qual trajetória é desenvolvida por um projétil em movimento retilíneo uniforme?
Se você consegue responder a alguma dessas perguntas ou esses termos lhe são ao menos conhecidos, você cursou o Ensino Médio.
E se você esteve – ou ainda está – ocupando os assentos escolares, então você sabe que os professores não doutrinam ninguém.
Docentes estigmatizados como doutrinadores é um dos maiores absurdos que já vi – e olha que minhas retinas já estão fatigadas. Como Drummond, desse acontecimento jamais me esquecerei! Apesar de que eu gostaria de esquecer, deletar!
Só mesmo quem nunca pisou em uma sala de aula – ao menos não predisposto a aprender – para acreditar, e pior, replicar tamanha falácia! Quem dera tivéssemos o superpoder de doutrinar! Nosso mantra: estude... estude... estude, seria muito mais assertivo!
Eu sou professora há 23 anos e estudante há mais de 30. Me inspirei – e ainda me inspiro – nos meus professores.
Lembro-me perfeitamente da primeira vez que coloquei os meus pés em uma sala de aula. Foi em 1987, na Escola Normal José Bonifácio (que na época chamava-se Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus José Bonifácio). Eu, com 7 anos, na primeira série, cheia de medo e insegurança. Eis que ela chegou! A professora! Linda, elegante, fala mansa, suave e concordâncias impecáveis! Era a professora Nelcinda Ilse Gomes.
Naquele momento eu estava completamente hipnotizada por aquela mulher, que tudo sabia e que tudo explicava de um jeito único, numa perfeita sintonia entre fala, gestos e olhares. Bastava uma erguida de sobrancelha dela para que todos soubéssemos que algo estava errado.
Ali, eu decidi: quero ser professora, quero ser como ela. Que admiração eu senti – e continuo a sentir, pois profe Nelcinda é minha amiga da vida toda.
Na figura da minha amada primeira professora, homenageio a todos os educadores que fizeram e fazem parte da minha vida.
Ah! A erguida de sobrancelha!
Quem me conhece sabe...
Meus alunos e alunas costumam dizer assim:
“Xiu! Ela já ergueu a sobrancelha!”
Eu tive espelho!
Para nós, professores, o maior orgulho e alegria é receber a notícia de que alguém a quem já demos aula é bem-sucedido. É uma sensação maravilhosa de missão cumprida.
“Aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”
O pensamento de Antoine de Saint-Exupéry explica o que sentimos quando vemos nossos eternos estudantes – não gosto da expressão ex-aluno – prosperarem.
É como se o pedacinho de nós que dedicamos a cada um prosperasse também!
Nos sentimos parte das conquistas daqueles que passaram pela nossa vida, pela nossa sala de aula.
E aí não conseguimos conter a emoção, já com sorriso de orelha a orelha, dizemos: “Foi minha aluna! Foi meu aluno! Que orgulho!”
Que honra e prazer inestimáveis participar do estímulo à busca e construção do conhecimento e da superação de limites!
Que outra profissão no planeta nos permitiria ser referência para quem quer aprender?
Para nós, não importa se os estudantes vão ser médicos, advogados, engenheiros.
O que queremos é que sejam felizes e que façam a diferença para melhor no mundo – e no seu mundo!
Quando algum estudante diz que quer ser professor... é a glória!
Ser professor!
Meta cada vez mais rara entre os jovens brasileiros. Por que será, não é?
Há algo de muito errado em uma nação que demoniza seus mestres.
Nos países mais desenvolvidos do mundo, a educação é prioridade e a valorização dos professores é preeminência porque são eles os profissionais que formam outros profissionais.
O Brasil, entretanto, está na contramão do mundo e o Rio Grande do Sul então, está no acostamento, à margem da História da humanidade.
Aqui, os professores são desvalorizados, perseguidos e acusados.
A inversão de valores é tão grotesca que não raro ouve-se... “os estudantes estão indo bem demais, culpa do professor que dá matéria muito fácil e não cobra na prova!”
E quando o resultado na prova é insuficiente, em muitos casos, os primeiros a serem cobrados são os professores, como se não tivessem realizado seu trabalho de forma satisfatória!
Agressões psicológicas, morais e físicas. Colocados à prova o tempo todo.
Nas palavras do mais célebre educador brasileiro, o retrato de um povo que defende quem o avilta e ataca quem o quer livre:
Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se o opressor.
(Paulo Freire)
Triste é o povo que acredita que seus educadores sejam seus inimigos!
Alienada é a população que deflagra-se cúmplice do desmonte da educação!
Eu acredito que professores têm muitos superpoderes...
Preparar-se com afinco para a melhor explanação do conteúdo, buscar constante aperfeiçoamento, pensar em diferentes estratégias que levem cada estudante a assimilar os conteúdos, respeitar o ritmo de aprendizagem de cada um, ser luz!
Levar trabalho para casa, criar mecanismos para aproximar o conteúdo abstrato da realidade dos estudantes, preocupar-se com cada ser que tem nas mãos, entristecer-se com suas perdas, ensiná-los a acreditar em sua própria capacidade, vibrar com suas conquistas, ser apoio! Acolher!
Viver com o salário parcelado e continuar acreditando na educação! Por amor! Por ideal! E por teimosia também!
“Não estão contentes? Mudem de profissão!”.
Quando ouvimos isso de alguém, é como se um punhal nos transpassasse!
Nós não somos despreparados!
Não somos professores por falta de opção! Somos professores porque acreditamos que através da educação podemos mudar o mundo para melhor.
Não somos nós que temos que desistir, é a educação que clama por atenção!
Uma vez a mãe de uma estudante me perguntou o que eu seria se não fosse professora.
Eu respondi o óbvio: seria infeliz!
Porque se cada um é para o que nasce, eu nasci para ser professora.
Eu gostaria que todos que também nasceram para serem professores pudessem sê-lo, sem receio de sofrer com o descaso e com a falta de reconhecimento!
Pessoas instruídas não se deixam manipular tão facilmente, são questionadoras e formadoras da sua própria opinião.
Quem tem acesso à informação, sabe que o inimigo não é o professor.
O inimigo é outro.
É alguém a quem interessa que professores sejam vistos como vilões.
Governos totalitários não investem em educação simplesmente porque a educação derruba governos totalitários.
Instigar a sociedade contra seus mestres, cortar verbas destinadas à educação, reduzir políticas educacionais de inclusão e formação acadêmica não são atitudes resultantes de nenhuma crise. São um projeto de dominação e poder.
Nós, professores, havemos de permanecer no nosso mantra: estude... estude... para que tenhas autonomia!
Estude para que tenhas qualidade de vida!
Estude para que tenhas a liberdade de ser aquilo que quiseres!
Nós não doutrinamos ninguém!
Nós educamos seres questionadores, pensantes e protagonistas da sua própria história.
Dizer que professores doutrinam, fere não apenas os professores, mas sobretudo os estudantes, que de fato não se encaixam no perfil de doutrinados.
Estudante que se preza reúne informações e obtém suas próprias conclusões com base em diversas e confiáveis fontes.
Estudante de verdade é aquele que filma o professor só se for para mostrá-lo elaborando aulas no feriado, corrigindo provas de madrugada...
Estudante maiúsculo não se deixa manipular!
Heróis da vida real não vestem capas nem trocam sentenças por cargos públicos.
Heróis de verdade educam e seu maior superpoder é ensinar a aprender.
Ensinar até mesmo àqueles que não querem aprender!
Se nós, professores, tivéssemos o poder de doutrinar, todos que já frequentaram a escola saberiam na ponta da língua as respostas de todas as perguntas as quais expus no início deste texto.
Além disso, se fôssemos doutrinadores, ninguém compactuaria com a tortura, não existiria preconceito, nenhum governo se sentiria tão à vontade para liberar tantos agrotóxicos e sequer ousaria propor uma reforma da previdência que penaliza os trabalhadores.
Se doutrinássemos, não ouviríamos ninguém que se diz contra a corrupção apoiar ex-juiz corrupto, o desmatamento não seria tolerável, não se admitiria o chefe de Estado batendo continência à bandeira dos Estados Unidos e, principalmente, todos seriam capazes de identificar os sinais do fascismo e a História se repetindo!
Ah, e antes que eu me esqueça, se tivéssemos mesmo o poder de doutrinar, o presidente do Brasil jamais, jamais mesmo seria o Bolsonaro.
-Ana-