O real irrompe no cotidiano
‘Adolescência’: quando o real irrompe no cotidiano — uma verdade que não queremos encarar
por Márcio Cabral
A série não cria um universo estranho — ela expõe o nosso, com todas as suas rachaduras. E talvez por isso doa tanto assistir
Márcio Cabral (*)
Atenção! Este artigo contem spoilers da série “Adolescência”, do Netflix
Desde o primeiro episódio, Adolescência instala no espectador uma sensação de incômodo profundo. Não se trata apenas da tensão dramática ou da crueza da narrativa, mas da impressão constante de que aquilo que estamos vendo não é uma ficção distante: é um espelho. Um espelho da escola pública ou privada ali do lado de casa. Da linguagem dos adolescentes que ouvimos no ônibus, no elevador, nas redes sociais. Da família em desagregação emocional. Do silêncio que atravessa nossas casas. A série não cria um universo estranho — ela expõe o nosso, com todas as suas rachaduras. E talvez por isso doa tanto assistir.
Está aqui o que mais impressiona em Adolescência: sua recusa em aliviar o impacto do real. Cada episódio se passa em tempo contínuo, sem cortes, como se não houvesse escapatória. Não há espaço para distrações, nem para fantasias reconfortantes. A câmera permanece firme enquanto testemunhamos o colapso de vínculos, a confusão psíquica dos jovens, a negligência dos adultos. Mas o que está em jogo vai além do drama: trata-se da estrutura de uma sociedade que perdeu a capacidade de escutar e de oferecer referências simbólicas minimamente consistentes.
A vítima que não aparece
Há, no entanto, uma ausência gritante na série, e que diz muito sobre a forma como olhamos para os conflitos da atualidade. Enquanto tentamos compreender o que levou um garoto de 13 anos a matar uma colega de classe, raramente nos perguntamos quem era a menina. O foco está na mente do agressor, nas suas dores, nas suas contradições, e isso, por si só, é revelador. A fala da sargento no segundo episódio escancara essa lógica: “Ninguém quer saber quem era ela. Só querem entender o que se passou com ele.” E isso é um espelho da sociedade.
O apagamento da vítima, sobretudo quando é uma mulher, é recorrente. Nos crimes midiáticos, nos tribunais, nas conversas de bar. A narrativa se desloca para o agressor porque ele “é o mistério”, porque supostamente “há algo a ser compreendido ali”. Mas a escolha de ignorar a vítima revela mais sobre nós do que sobre o crime em si. Não suportamos encarar a violência como ela é — uma ruptura brutal com qualquer ideal de humanidade. Preferimos transformá-la em enigma, algo a ser decifrado, não condenado.
Meninos criados para o colapso
Ao mergulhar na subjetividade de meninos em colapso, Adolescência expõe, com precisão, a fábrica silenciosa de violências que atravessa a formação masculina contemporânea. A série aponta para algo mais profundo do que um simples “desvio de comportamento”: ela denuncia um modelo de masculinidade que, desde cedo, ensina os meninos a não sentir, a não escutar, a não ceder. Um modelo que valoriza a força bruta, o silêncio como suposta maturidade, a competição como forma de relação. Esses meninos, privados de escuta, de cuidado e de linguagem para elaborar suas dores, são lançados à selvageria emocional — e ali sobrevivem como podem.
Esse processo se radicaliza com o acesso desregulado à internet. O que antes era transmitido em silêncio nas famílias ou nos grupos escolares, agora é amplificado por algoritmos que alimentam o ressentimento. É nesse ambiente que florescem as comunidades red pill e incel — espaços virtuais que prometem sentido, identidade e pertencimento, mas que, na prática, oferecem ódio, misoginia e paranoia. Jovens inseguros, solitários e desamparados encontram nesses espaços um simulacro de comunidade. Ali, a figura feminina é construída como inimiga, e a violência, como forma de redenção simbólica. Esta é mais uma denúncia da série: jovens meninos estão sendo recrutados, em tempo real, por ideias extremistas ultra conservadoras, para se tornarem soldados de teorias conspiratórias misóginas, racistas e fascistas, como um contraponto ao fracasso que a sociedade de consumo impõe ao indivíduo que não segue o padrão meritocrático.
A série não usa esses termos diretamente, mas os ecos dessas subculturas estão presentes em cada gesto, em cada silêncio. O adolescente assassino, por exemplo, não parece compreender plenamente o que fez. Mas isso não é desculpa — é sintoma. O que se vê é um sujeito atravessado por fantasias de poder e controle, incapaz de reconhecer o outro como alguém com desejo próprio. É o colapso da alteridade: o outro deixa de existir como sujeito e vira apenas obstáculo, ameaça, objeto a ser eliminado.
Real, fantasia e o colapso do simbólico
Aqui é possível pensar como Adolescência nos obriga a encarar a fronteira entre o real e a fantasia. O real, nesse caso, não é a realidade concreta do cotidiano — é aquilo que escapa à simbolização, que não pode ser plenamente representado ou explicado. Na psicanálise, o real é aquilo que retorna sempre no mesmo lugar, como uma falta que não pode ser preenchida. E os jovens da série estão mergulhados nesse real brutal, sem ferramentas para nomeá-lo. Não têm linguagem para o que sentem, não têm palavras para suas angústias. Então agem. E muitas vezes agem de forma destrutiva, porque não foram ensinados a esperar, a elaborar, a escutar.
A internet, nesse cenário, funciona como um acelerador do colapso simbólico. Em vez de permitir a construção de referências compartilhadas, ela fragmenta o mundo em bolhas, alimenta a desinformação e cria realidades paralelas. No universo das fake news e dos fóruns anônimos, tudo é permitido. Não há consequências, não há limite. É o império da fantasia desenfreada, sem freios simbólicos. E quando um jovem confunde essa fantasia com o real — como vemos na série —, o resultado pode ser devastador.
A pergunta que a série parece fazer, sem dizer, é: quem deveria ter dado a esse menino os instrumentos para simbolizar sua dor? A escola? A família? A cultura? Todos falharam. E quando o simbólico falha, o real explode. A violência, nesse contexto, não é apenas um ato bárbaro — é também uma tentativa desesperada de significar algo, de se fazer ouvir, mesmo que seja pelo pior caminho.
O silêncio dos adultos
Outro elemento fundamental em Adolescência é o silêncio dos adultos. Pais ausentes, professores esgotados, policiais endurecidos, terapeutas limitados. Os adultos da série, com raras exceções, não escutam. Reagem, enquadram, disciplinam, mas não escutam. E essa escuta ausente é um dos eixos centrais da crise contemporânea. Sem escuta, não há laço. E sem laço, o sujeito se desfaz — ou se radicaliza.
Na ausência de adultos que sustentem o lugar da escuta e do limite simbólico, os jovens buscam referências nos lugares mais perigosos. Não é por acaso que tantos adolescentes hoje se identificam com discursos de ódio, com gurus masculinistas, com ideologias que prometem respostas simples para angústias complexas. Esses discursos não exigem elaboração — oferecem certezas. E as certezas, por mais falsas que sejam, seduzem justamente porque o mundo contemporâneo é marcado pela incerteza.
Não é uma série sobre monstros
É importante dizer: Adolescência não constrói monstros. Ela não fetichiza a violência nem transforma o adolescente assassino em vilão de novela. Ao contrário: ela o apresenta como alguém devastado por dentro, desprovido de linguagem, abandonado pelas instituições. Isso não o torna inocente, mas nos obriga a refletir sobre o que estamos fazendo com nossos meninos — e o que estamos deixando de fazer.
A série também mostra que não basta combater o ódio nas suas manifestações mais extremas. É preciso enfrentá-lo na base: na educação, na cultura, nas relações familiares. É preciso ensinar os meninos a nomear o que sentem, a lidar com a frustração, a reconhecer o desejo do outro. Isso exige tempo, cuidado, paciência — tudo que o mundo atual parece ter perdido.
Por fim: o que a série nos pede?
Adolescência não nos oferece redenção. Ela nos devolve ao mundo com mais perguntas do que respostas. Mas talvez essa seja sua maior virtude: forçar o espectador a sair do lugar confortável. A série não quer entreter — quer ferir, no melhor sentido da palavra. Quer nos obrigar a reconhecer que estamos todos implicados no que está acontecendo. E que, se não formos capazes de oferecer outra linguagem, outra escuta, outro horizonte simbólico para nossos jovens, estaremos apenas adiando o próximo colapso.
Num tempo em que tudo é excesso — de imagens, de ruídos, de discursos —, Adolescência se destaca por seu silêncio denso, sua atenção aos detalhes, sua recusa ao espetáculo. Ela nos mostra que a violência não nasce do nada, que os assassinos não surgem do vácuo. Eles são produto de uma cultura que perdeu a capacidade de cuidar, de escutar, de nomear o sofrimento.
Talvez, no fundo, essa seja a pergunta mais urgente que a série nos faz: ainda sabemos cuidar? Ainda sabemos nomear? Ou estamos apenas assistindo ao desmanche, como quem vê de longe uma tragédia anunciada?
(*) Psicanalista e professor, mestre pela UFRGS e diretor do Instituto SIG – Psicanálise & Política
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