O sistema da dívida

O sistema da dívida

O sistema da dívida é um dos principais responsáveis pela exclusão de milhões de pessoas no Brasil 

A prioridade dada ao Sistema da Dívida e às metas do arcabouço fiscal estão colocando em risco os pisos constitucionais de saúde e educação

Por Maria Lucia Fattorelli / Publicado em 4 de setembro de 2025

O sistema da dívida é um dos principais responsáveis pela exclusão de milhões de pessoas no Brasil

Na sua primeira edição, em 1995, o Grito dos Excluídos tinha como lema 
A Vida em Primeiro Lugar. Foto: Arquivo do Grito dos Excluídos

A Auditoria Cidadã da Dívida está celebrando 25 anos de luta pelo cumprimento da Constituição Federal, no que diz respeito à realização da auditoria da dívida pública, exigindo a devida transparência das contas públicas e a correta aplicação dos recursos, para que os direitos sociais sejam plenamente atendidos e todas as pessoas tenham vida digna em nosso país.

Entre os diversos eventos que fazem parte da celebração dos nossos 25 anos de luta, está a participação no Grito dos Excluídos, que acontece sempre no dia 7 de setembro e que, neste ano, tem como tema: “Cuidar da Casa Comum e da Democracia é luta de todo dia”.

De fato, todo dia é dia de lutar por nossa Mãe Terra, nossa Casa Comum, aviltada pelo contínuo desmatamento e queimadas criminosas que atingem nossas florestas, o cerrado, o pantanal e a Mata Atlântica; pela contaminação do solo, da água dos rios, lagos e lençóis subterrâneos, além de graves prejuízos a todos os biomas e às populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas.

Toda essa destruição decorre dos abusos cometidos pela mineração predatória e pelo grande agronegócio de exportação, que produz commodities, e não comida para o povo brasileiro, que ainda passa fome.

Essa exploração ambiental e ecológica atua em conjunto com os demais pilares que sustentam o modelo econômico aplicado em nosso país, produzindo escassez para a imensa maioria da população, enquanto concentra cada vez mais a renda nas mãos de privilegiados do setor financeiro e grandes corporações nacionais e estrangeiras.

A ACD analisa esses pilares do modelo econômico em vários vídeos da campanha “É hora de virar o jogo”, na qual o jogo representa exatamente o modelo econômico que precisa ser modificado.

Não podemos falar em democracia quando tantas pessoas vivem na escassez, excluídas do acesso a direitos sociais básicos como saúde, educação e previdência social, ainda passando fome e sem ter onde morar, impedidas de ter uma vida minimamente digna. Democracia pressupõe igualdade de oportunidades, e ainda estamos muito longe disso no Brasil.

A contribuição que eu gostaria de trazer nessa reflexão do Grito dos Excluídos é essa:

  • Por que ainda existem tantas pessoas excluídas em um país tão rico como o Brasil?

O Brasil é um dos países mais ricos do mundo: temos a maior reserva de água doce do mundo; uma das maiores reservas de petróleo; abundância de minerais estratégicos e terras raras; riquíssima biodiversidade; clima favorável. Enfim, temos todas as riquezas naturais em abundância, além de imensa riqueza humana e cultural. Temos também riquezas financeiras! Temos mantido mais de R$ 5 trilhões em caixa — em reservas internacionais, na conta única do Tesouro Nacional e no Banco Central.

Portanto, não falta dinheiro no Brasil. Somos um país riquíssimo em todos os sentidos. Diante disso, refaço a pergunta:

  • Se somos tão ricos, por que ainda existem tantas pessoas excluídas em nosso país?

A resposta é simples: justamente por causa do modelo econômico que atua aqui no Brasil. Esse modelo prioriza o pagamento de juros e amortizações da chamada dívida pública, consumindo, todo ano, quase a metade do orçamento federal, como mostra o gráfico elaborado pela Auditoria Cidadã da Dívida, com dados oficiais.

No ano passado, 2024, praticamente 43% de todo o orçamento federal foi destinado ao pagamento de juros e amortizações da chamada dívida pública — uma dívida que sequer tem contrapartida em investimentos no país, como já declarou o Tribunal de Contas da União (TCU).

Isso é muito sério: se a dívida pública não tem servido para investimentos, como declarou o TCU, para que ela tem servido? A ACD tem se dedicado a essa investigação há 25 anos e já comprovou uma série de mecanismos financeiros que criam dívida sem contrapartida alguma, como o mecanismo que chamamos de Bolsa-Banqueiro, por exemplo, que remunera diariamente os bancos sobre dinheiro que sequer pertence a eles.

Isso mesmo: o dinheiro da sociedade (isto é, dinheiro das pessoas, empresas e órgãos públicos) que está depositado ou aplicado nos bancos é usado para receber remuneração diária, paga pelo Banco Central aos bancos, com dinheiro do Tesouro Nacional. Nos últimos anos, foram gastos mais de R$ 220 bilhões por ano com a Bolsa-Banqueiro — bem mais que o orçamento anual da Saúde, que foi de R$ 193 bilhões em 2024.

A ACD tem denunciado também o impacto dos elevados juros praticados no Brasil sobre o crescimento exponencial dos gastos com a chamada dívida pública, fazendo com que essa dívida estéril, sem contrapartida, cresça como uma bola de neve e receba os juros mais elevados do planeta.

Criei a expressão Sistema da Dívida para caracterizar esse funcionamento distorcido do endividamento público no Brasil. A dívida pública deveria estar financiando o nosso desenvolvimento socioeconômico e ambiental, mas não é isso que acontece.

Em vez de aportar recursos ao orçamento e viabilizar investimentos no bem-estar da população, erradicando a pobreza e a exclusão, garantindo o nosso desenvolvimento socioeconômico e ambiental, a dívida funciona como um sistema que extrai recursos continuamente, prejudicando toda a sociedade e a economia do país.

Assim, a dívida pública tem funcionado como um sistema e tem servido para:

  • Pagar os juros da própria dívida

  • Veículo de transferência de recursos públicos para bancos

  • Justificar contrarreformas

  • Justificar para privatizações

  • Impor Teto de Gastos e Arcabouço Fiscal

  • Consumir a maior fatia do orçamento federal todos os anos.

A ACD tem oferecido curso a distância para explicar detalhadamente o Sistema da Dívida e empoderar a sociedade com esse conhecimento.

Enquanto o Sistema da Dívida fica com esse privilégio de praticamente 43%, vejamos quanto foi destinado aos direitos sociais. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o chamado Arcabouço Fiscal vigente no Brasil desde 2023 manteve o teto de gastos sociais instituído pela Emenda Constitucional 95/2016, impondo sérias restrições aos direitos sociais no Brasil.

Esse teto (tanto o da EC 95 como do arcabouço) incide somente sobre as despesas orçamentárias com saúde, educação, previdência, assistência e demais direitos prestados à população, e sobre os gastos com a manutenção do Estado, o funcionamento das instituições. Os gastos com o Sistema da Dívida (que é onde está o rombo das contas públicas), fica fora de qualquer teto, controle ou limite! Pelo contrário, os demais gastos e investimentos públicos ficam restringidos pelo teto para que sobre mais dinheiro para os elevados juros da dívida.

Por isso, o Sistema da Dívida é um dos principais responsáveis pela exclusão de milhões de pessoas no Brasil, que ficam sem acesso aos serviços públicos quando mais necessitam. Quantos morrem aguardando por uma cirurgia de urgência, um tratamento ou medicamento? Quantas crianças e jovens têm seu futuro comprometido por falta de acesso a uma educação integral de qualidade? Quantos idosos morrem sem ter conseguido alcançar o direito a uma aposentadoria, ou passam fome porque o valor da aposentadoria e da pensão é baixo demais?

A alegação dos sucessivos governos tem sido a falta de recursos para atender a esses direitos sociais dignamente, mas não falta dinheiro no Brasil; possuímos imensas riquezas naturais e temos mantido mais de R$ 5 trilhões em caixa, mas tudo isso fica reservado para o Sistema da Dívida.

Vamos ver a destinação orçamentária para alguns dos principais direitos sociais no Brasil. Para a Previdência Social, programa que atende mais de 41 milhões de pessoas e suas famílias no Brasil, que recebem aposentadoria, pensão e outros benefícios, como auxílio-doença e acidente, por exemplo, o governo federal destinou 21% do orçamento em 2024, enquanto o Sistema da Dívida recebeu praticamente 43%, mais que o dobro!

O mais grave é que estamos sob a ameaça de mais uma contrarreforma da Previdência, que pretende adiar, mais uma vez, o direito à aposentadoria, aumentando a idade para acesso a esse direito, além de ameaça de congelamento do valor do salário-mínimo e desvinculação de seu valor aos benefícios sociais, entre outras retiradas de direitos.

Para quê sacrificar ainda mais a já empobrecida população brasileira? A resposta para esse e outros sacrifícios é a mesma: Para que sobre mais dinheiro para o Sistema da Dívida!

Não existe o falacioso déficit da Previdência

O que tem ocorrido no Brasil é uma significativa queda na arrecadação de contribuições previdenciárias devido:

  • à precarização do trabalho, por meio da uberização e da pejotização;

  • à questionável desoneração da folha de pagamento de vários setores econômicos, que deixam de pagar as suas contribuições previdenciárias.

Essas distorções precisam ser enfrentadas, para minorar a desigualdade social profunda que ainda existe em nosso país, e condena à exclusão milhões de brasileiros e brasileiras.

E os direitos à Saúde e à Educação? Em 2024, o orçamento federal destinou R$ 193,5 bilhões para a Saúde o que corresponde a pouco mais de 4% de todo o orçamento, menos de 1/10 do que o governo federal pagou de juros e amortizações da dívida pública. Para a Educação, foram destinados R$ 137 bilhões em 2024, correspondente a apenas 2,95% do orçamento federal, ou seja, quase 15 vezes menos do que o que o Sistema da Dívida recebeu.

A prioridade dada ao Sistema da Dívida e às metas do arcabouço fiscal, que visam garantir o pagamento dos abusivos juros, estão colocando em risco o cumprimento dos pisos constitucionais de saúde e educação. Claro! A lógica se inverteu: na época em que os pisos foram inseridos na Constituição Federal de 1988, a garantia de recursos para a Saúde e para a Educação ficavam do piso para cima, ou seja, o limite mínimo estava garantido e o governo deveria gastar daquele piso para cima. Com a Emenda Constitucional 95 e a lei do arcabouço fiscal, passamos a ter um teto para os investimentos sociais e o gasto nessas áreas fundamentais da Saúde e Educação e em todos os demais investimentos sociais têm que ficar do teto pra baixo.

A garantia de pisos constitucionais para Saúde e Educação passou a ficar incompatível com a lógica do teto de gastos e aquela garantia constitucional corre risco de ser descumprida e revogada, piorando ainda mais a sustentabilidade do SUS, deixando hospitais sucateados, escolas sem condições de funcionamento e professores desvalorizados, comprometendo seriamente os direitos sociais previstos na Constituição de 1988, e aumentando ainda mais a exclusão social.

O teto de gastos sociais – feito para priorizar o pagamento de juros do Sistema da Dívida – também ameaça a nossa Casa Comum, a nossa Mãe Terra. Cortes orçamentários para se cumprir as metas do arcabouço fiscal têm inviabilizado o funcionamento dos órgãos responsáveis pela gestão ambiental, prejudicando as atividades de proteção de todos os ecossistemas brasileiros – as florestas, toda a nossa fauna e flora, os rios, povos originários e demais atividades de fiscalização ambiental em nosso país, que combatem o desmatamento ilegal e demais ilícitos ambientais. Esse desmonte dos órgãos ambientais ameaça a vida de comunidades inteiras e compromete o futuro das próximas gerações.

Basta dar uma olhada nos dados do orçamento federal executado (pago) no ano de 2024 para se constatar o ínfimo montante destinado à Gestão Ambiental no país: apenas 0,3%, equivalente a R$ 14,2 bilhões, dos quais R$ 10,5 bilhões ficaram retidos no Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, que teve somente R$ 1 bi liberado em 2024. Portanto, a gestão ambiental recebeu em 2024 apenas cerca de R$ 5 bilhõees.

Em resumo, o Sistema da Dívida está por trás do arcabouço fiscal e todo esse arrocho que sofremos nos investimentos em direitos sociais no Brasil. Está também por trás das contrarreformas da Previdência e Administrativa, que visam retirar direitos e suprimir estruturas do Estado, para que sobrem mais recursos para o pagamento dos juros da chamada dívida pública. Sequer sabemos para quem pagamos essa dívida, pois a informação sobre os detentores dos títulos públicos é considerada sigilosa no Brasil. Por isso lutamos, há 25 anos, por uma auditoria integral dessa chamada dívida pública, que tem ficado com tantos recursos e provocado tanta exclusão.

O Grito dos Excluídos é o espaço da sociedade para denunciar tudo isso e reafirmar que o Brasil precisa sair desse cenário de escassez, incompatível com toda a abundância que existe aqui.

É urgente inverter prioridades: auditar a dívida pública já e interromper os mecanismos que geram dívida sem contrapartida; limitar os juros em lei, como fazem cerca de 80 países mundo afora, e destinar os nossos abundantes recursos para a garantia de desenvolvimento socioeconômico e ambiental, investindo generosamente nas áreas da saúde, educação, previdência, ciência e tecnologia, infraestrutura, geração de empregos dignos e proteção ambiental.

Juntos avançaremos em direção à conquista da democracia plena, sem qualquer tipo de exclusão, com respeito e convivência digna entre todas as pessoas e a nossa Mãe Natureza, nossa Casa Comum.

É fundamental apoiar o Grito dos Excluídos neste 7 de setembro e em todos os dias, fortalecendo as lutas sociais e a Auditoria Cidadã da Dívida. Aguardo você em nossas redes sociais, nas lutas e nas ruas.

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB (CBJP). Escreve mensalmente para o Extra Classe.

 

FONTE:

https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2025/09/o-sistema-da-divida-e-um-dos-principais-responsaveis-pela-exclusao-de-milhoes-de-pessoas-no-brasil/?fbclid=IwY2xjawMyvgZleHRuA2FlbQIxMABicmlkETFwWUh6WjNJSHpxY
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