Obediência militar não
José Sérgio Fonseca de Carvalho: “A escola precisa da disciplina do estudo, não da disciplina da obediência militar”
Para professor de Filosofia da Universidade de São Paulo, a escola é o ambiente para entrar em contato com pessoas com pontos de vista diferentes
A escola, seja ela pública ou particular, é o local onde entramos em contato com pontos de vista diferentes daqueles expressados da nossa casa. Compartilhar os valores aprendidos na família e, ao mesmo tempo, ser exposto a outras opiniões é enriquecedor para a vida dos alunos e cercear isso é assaltar a própria liberdade dos estudantes, explica o professor de Filosofia da Educação da USP, José Sérgio Fonseca de Carvalho. Ao mesmo tempo, é preciso entender o anseio de algumas famílias por ambientes escolares militarizados e explicar para elas que o tipo de disciplina exigido para uma boa aprendizagem é diferente da lógica da obediência militar. Se todos os cientistas fossem obedientes, diz ele, não existiriam pensadores inovadores, como o físico Albert Einstein. Em entrevista concedida na Faculdade de Educação da USP, o coordenador do grupo de pesquisas “Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória” do Instituto de Estudos Avançados da USP explica a unanimidade superficial em torno da bandeira por “mais educação”, fala sobre a tensão entre os valores das famílias e o papel da escola e discute a opção pela militarização dos espaços escolares.
NOVA ESCOLA: Nessas eleições, o tema “mais educação” apareceu novamente na promessa dos políticos e no pedido de eleitores. O que precisaria ser defendido, neste momento, para melhorias efetivas na educação brasileira?
JOSÉ DE CARVALHO: A unanimidade da luta pela qualidade da educação é uma unanimidade da superfície. Nossa grande questão é que sentido atribuir para a formação educacional. E, para tal, estamos longe de um consenso. Há quem veja a qualidade da educação como difusora de competências, o que capacitaria trabalhadores mais inteligentes e empreendedores. Para outros, formaria um cidadão crítico, uma expressão igualmente vaga. Ao meu ver, o preocupante nesse momento é a renúncia à formação moral, ao entender que a capacidade só diz respeito ao valor da eficácia. Não nego que o (presidente dos EUA) Donald Trump é um competente comunicador, no entanto, posso dizer também que ele usa essa competência para o mal.
NE: A renúncia à formação moral esvazia o sentido da educação?
JSFC: É preciso entender até que ponto a sociedade, com o apoio de instituições sociais, não coloca para a educação tarefas que ela não quer ou não pode resolver do ponto de vista político. E, ao mesmo tempo, esvazia a educação das funções que ela pode realizar. A bandeira da educação como elemento responsável pela diminuição das desigualdades sociais aparece nos discursos de esquerda e de direita. Ora, se você quer mesmo resolver as diferenças do Brasil, faça uma política de distribuição de renda. Ao transferir essa tarefa para a educação, ela fica para o amanhã. Além disso, essa visão pressupõe uma continuidade entre o aparelho produtivo e o escolar, o que simplesmente não existe. É perfeitamente possível uma sociedade melhorar a sua educação e não resolver o problema de desemprego, como acontece na Espanha. Ou que a educação melhore e os níveis de privilégios continuem, como na Índia. O que mais me contraria nessa ideia é o fato de que se despolitiza o que é do âmbito estrito da política, o problema de distribuição de renda, e se ‘pedagogiza’ o que é político.
NE: É possível uma educação neutra?
JSFC: A neutralidade é um conceito químico. É possível uma pessoa apresentar um livro sem dizer o que aquele livro representa para ele? Seria melhor ler um sumário de cursinho. O que faz a literatura ser uma tradição viva, por exemplo, é que os homens e as mulheres conversam sobre ela. Não é a tinta impressa que dá sentido, mas como aquela obra representa o sentido que alguém deu sobre uma experiência, dele e de outro. O professor reconfigura o sentido da Literatura para seus alunos e eles, por sua vez, dão outro sentido. Não há uma relação mecânica, de que os alunos comprarão o sentido dado pelos professores àquilo. Não se educa com máquinas de transmissão de informação.
NE: A educação passa por debate sobre as convicções das famílias e os deveres dos professores, algo trazido pelo movimento Escola Sem Partido. Como o senhor vê essa questão?
JSFC: Os pais têm direitos a ter convicções, não se pode educar sem convicções. Ocorre que a escola é uma instituição pública - é uma concessão pública mesmo quando sua gestão é privada - e é, de fato, onde você terá contato com pessoas que têm pontos de vista distintos daqueles da sua casa. Portanto, a ideia de continuidade entre casa e escola é nocivo. A escola tem que representar, seja ela pública ou privada, a pluralidade de cada ser humano que compõe o nosso mundo e a diversidade de ponto de vistas que o compõem. A casa pode ensinar os seus valores religiosos, por exemplo, mas compete à escola ensinar o valor do convívio com o diferente. Restringir ou cercear isso descaracteriza o significado dessa experiência pública, na bolha do espaço privado, e assalta a liberdade dos alunos.
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NE: Em que medida as famílias podem interferir sem impor seus princípios e valores ao conjunto de alunos?
JSFC: Sempre o fazem. A criança vive coisas dentro de casa que compartilha na escola. Quanto mais uma escola se abre à pluralidade, mais os valores privados têm uma dimensão pública. E me parece que todo e qualquer pai tem o direito de exigir de qualquer escola que as razões pela qual tal opção foi feita seja justificada. Isso não quer dizer cercear o trabalho do professor, mas eu tenho o direito, como pai, de perguntar: por que essa opção? Também, de eventualmente, discutir. Os pais devem e podem ser chamados a isso e também podem e devem cooperar com problemas práticos da escola. Há de haver esse diálogo e ele é possível.
NE: Na sua opinião, por que esse tipo de pensamento ganha força na sociedade brasileira?
JSFC: Vivemos uma imensa confusão entre público e privado. Só somos capazes de conceber um Estado que seja gestor dos interesses privados e queremos que ele funcione assim. A nossa profissão ameaça porque a gente não produz uma mercadoria. Porque o tempo da escolarização não é o tempo da produção, é o tempo da poesia, nesse mundo para o qual a poesia não tem nenhum valor de troca. A gente tem o privilégio de lidar com pessoas o tempo todo, de formar pessoas, de se dedicar a cultivar a Arte, a Ciência. Nós, professores, nos tornamos insuportáveis para as pessoas que tem o poder do decreto.
NE: Em muitos estados, há uma militarização de escolas. Um dos aspectos valorizados é a disciplina e as regras rígidas. O que significa a valorização desse modelo em 2018?
JSFC: É um assunto longo. Mas precisamos interpretar que, se há uma adesão a essa ideia, há algo por trás que a justifica. Vou começar pela disciplina. É claro que a escola precisa de disciplina, mas a disciplina do estudo não é a mesma disciplina da obediência militar. É a disciplina para aprender. E a nossa escola tem sido falha em ensinar a disciplina para aprender. Precisamos encarar esse fato e mostrar aos pais que um tipo de disciplina não coincide com a outra. Se todos os cientistas fossem obedientes, não teríamos o Einstein. Outra coisa são as imensas confusões sobre o lugar da autoridade numa relação pedagógica. Autoridade não tem a ver com força, coerção ou ameaça, mas com confiança. A palavra confiança significa isso, fidis, fé. Quer dizer, você não entende necessariamente, mas aposta nisso. O professor da escola militar restaura a autoridade? Não. Ele é capaz de produzir obediência, por meio da coerção. A disciplina é a mesma coisa. Esse é um desafio para a escola pública. Não basta criticar a militarização. O desafio é fazer uma escola pública acolhedora a todos, que tome para si o desafio da disciplina para a aprendizagem.
NE: Recentemente, o Supremo Tribunal Federal barrou o homeschooling ou educação domiciliar. Como o senhor vê esse movimento?
JSFC: É uma tentativa de abdicar da ideia de que viver junto aos outros é, em si mesmo, um elemento educativo. Significa renunciar à ideia de que há algo além da nossa própria vida privada. Significa renunciar à ideia de que a convivência dos nossos filhos com pessoas que pensam diferente é enriquecedora para os filhos. Significa renunciar à ideia de uma república. Isso é uma bomba a longo prazo, no pior sentido da palavra. Talvez também signifique esvaziar a ideia de que existe algo chamado experiência escolar que não se resume ao conteúdo. A experiência escolar significa que, quando estamos numa instituição escolar, nos abrimos para conviver com muitas coisas.
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