Ódio ao padre Júlio Lancellotti
Jessé Souza explica ódio ao padre Júlio Lancellotti
- Por Francisco Fernandes Ladeira
O sacerdote tem um histórico de trabalho junto à população pobre, sobretudo em relação às pessoas em situação de rua, mas para a extrema direita é inconcebível um religioso que siga o exemplo de Jesus.
Escrito en OPINIÃO el 25/1/2024
Padre Júlio Lancellotti.
Créditos: Victor Angelo Caldini
Em sua vasta e contundente obra, o sociólogo Jessé Souza explica que a origem do Brasil não está numa suposta herança portuguesa, responsável pelo surgimento de um povo corrupto e personalista, mas na escravidão, e todo tipo de relação social que esta prática gerou.
Nesse sentido, os descendentes dos ex-escravizados constituem um grupo de pessoas que, provocativamente, Jessé classifica como “ralé”, cuja principal característica é o abandono social e político e a ausência de direitos básicos fundamentais. Algo semelhante ao que eram os dalit, também conhecidos como párias, na antiga sociedade de castas hindu.
Evidentemente, na maioria das ocasiões, esse desprezo (e em alguns casos, ódio mesmo) em relação à ralé não é explicitado no cotidiano, se manifestando de maneira lateral, por exemplo, no chamado “antipetismo”. A partir desse “álibi”, nos últimos anos, o indivíduo de classe média pôde ir tranquilamente às ruas para se mostrar indignado com a “corrupção do PT” (quando, em realidade, este ódio ao partido não era por possíveis práticas ilícitas, mas pelo fato de os governos Lula e Dilma terem sido os únicos na história do país a olharem para a ralé).
No entanto, lembrando Brecht, com a “cadela do fascismo no cio”, muita gente já não se preocupa em esconder seus preconceitos. Isso nos ajuda a explicar os recentes ataques ao padre Júlio Lancellotti por parte da extrema direita.
Como sabemos, o sacerdote tem um histórico de trabalho junto à população pobre, sobretudo em relação às pessoas em situação de rua (portanto, o grupo a que Jessé Souza se refere como “ralé”). Para o padre, nós temos que sair da hostilidade para a hospitalidade [sobre ajuda às pessoas em situação de rua]. É um processo educativo, político, econômico e social”. Trata-se, assim, de seguir o exemplo do principal nome da religião cristã: Jesus.
Mas, para a extrema direita, é inconcebível um religioso que siga o exemplo de Jesus. Seu modelo ideal de líder espiritual é aquele vendilhão do templo, que corrompe seus fiéis, se locupleta a partir da fé alheia e, principalmente, “faz arminha com a mão”.
Desse modo, vale tudo para atacar o padre que defende a ralé: pedido de abertura de CPI, fake news, ameaças via redes sociais, editoriais raivosos na imprensa conservadora, vídeos falsos e tudo mais que a imaginação sórdida da extrema direita permitir.
Em suma, a “indignação” da extrema direita com o padre Júlio Lancellotti não é por causa de infiltração comunista na Igreja Católica, pregação política radical e agressiva, desvio de verbas públicas por ONGs ou outras supostas atividades ilícitas e reprováveis do religioso. É simplesmente a reatualização da velha aporofobia brasileira. A diferença é que a “direita tradicional”, pretensamente civilizada, tenta racionalizar seu ódio ao pobre com argumentos moralistas. Já a “extrema direita”, por sua vez, sem qualquer constrangimento ou pudor, reverbera esse ódio em estado bruto.
Se esse pessoal faz essas covardes acusações e ataques a Júlio Lancellotti, imagine o que fariam com um conhecido judeu que, há dois milênios, dizia frases como “Vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres”, “Felizes de vocês, os pobres, porque o Reino de Deus lhes pertence” e “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus”.
Não é difícil saber o que aconteceria!
*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp.
FONTE: