Onde estão os professores negros?
Onde estão os professores negros?
A maioria das IES transformou a obrigatoriedade de abordar as relações étnico-raciais em palestras e cursos esporádicos e não tm ações antirracistas consistentes
Márcia Maria da Cruz: “a falta de professores negros é generalizada no ensino superior”
Rubens Campos e Rita Donato também são professores da área de comunicação social e trabalham na UniSant’Anna, na capital paulista. “Quando comecei a lecionar no ensino superior, em 2007, contava nos dedos quantos professores pretos havia. Num universo de 120 professores, mal chegava a dez pessoas pretas; não autodeclaradas, mas aquelas que se via, que se podia contar. Por um período, aumentou esse número, mas ainda pouco. Depois da pandemia, o número caiu. Hoje em dia, continuo contando nos dedos”, fala Campos. Rita também é professora na Universidade Metodista de São Paulo e atesta o mesmo cenário nas duas universidades.
De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Semesp, Márcia, Campos e Rita compõem os 22,6% de professores que se declararam negros ou pardos nas instituições de ensino superior privadas do País, em 2020. Na rede pública, o percentual é de 24,7%. A percepção dos professores entrevistados é a de que, em suas instituições, esse percentual é mais baixo. Eles também atestam que não há atividades ou iniciativas significativas voltadas às questões da diversidade étnico-racial. Campos comenta a existência de uma disciplina eletiva voltada ao tema: “No dia da prova, a sala estava vazia”. Também acontecem palestras eventuais. Rita menciona atividades desenvolvidas próximo ao dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Não há nas IES, de modo geral, a consciência da necessidade de ações antirracistas efetivas.
Para Rubens Campos, o tema “incomoda” (Foto: arquivo/revista)
Para Campos, a invisibilidade ou pouco interesse no tema tem a ver com o incômodo que ele causa
Ele cita Laurentino Gomes, em especial o Volume III da trilogia Escravidão, para entender o Brasil. “Ali o autor escreve que, a partir do século 19 até os anos 30, o País assumiu de vez uma cara, e é a que ficou até hoje: acabou a escravidão, mas os negros devem se manter no mesmo lugar. Essa forma de pensar em relação ao negro não mudou. O racismo está na cabeça das pessoas, no dia a dia, no comportamento das instituições.” Apesar disso, ele diz, houve melhora nos últimos anos em relação ao contexto que perdurou ao longo do século 20. E, apesar de o tema incomodar, ou justamente por isso, a discussão acerca do racismo precisa existir.
Uma mudança importante em curso é o aumento de estudantes pretos e pardos no ensino superior. De acordo com pesquisa do Instituto Semesp, o percentual de alunos matriculados no ensino superior brasileiro que se declararam pretos ou pardos chegou a 45,7%, segundo dados de 2020, sendo 44,8% na rede privada e um pouco mais na rede pública, 48,8%. Em 2015, esse percentual era de 41,6%, portanto, houve aumento de quatro pontos percentuais. É o resultado das cotas nas universidades públicas e programas como Prouni e Fies nas universidades privadas. Esses alunos buscam referências, inspiração, identificação.
Rita está cursando o doutorado e seu tema é o empoderamento da mulher negra
Ela conta que passou por processo de transição capilar, parou de alisar os cabelos e os deixou crespos:“por causa do cabelo crespo, é diferente a forma como os alunos me percebem e aceitam. É muito nítida a identificação das meninas negras comigo. Percebo que, pelo menos na área da comunicação, há muitas meninas negras se posicionando, ocupando espaço. Elas se aproximam e buscam questões fora da sala de aula”. Há o aumento no interesse dos alunos em relação às questões da diversidade étnico-racial: “penso que os alunos confiam mais quando é uma pessoa negra falando”, afirma Rita. Novas epistemologias e conhecimentos mais próximos das perspectivas desses estudantes são a grande mudança, opina Márcia.
Permanência na vida acadêmica
Na Metodista, a maioria dos alunos bolsistas é negra, conta Rita. Eles não conseguem sequer estagiar: “Eles trabalham em supermercados, por exemplo, em entregas, e não podem abrir mão de seus ganhos”. Alexsandro Santos, professor de mestrado e doutorado nos programas de pós-graduação em educação e no mestrado profissional em formação de gestores, da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid), liderou pesquisa no Centro de Estudos e Memória da Juventude, acerca da lei de cotas, com enfoque racial. É fato que a implantação das cotas promoveu um avanço no acesso de pessoas negras à graduação, mas ele detalha: “Isso resolve uma parte do problema, a segunda parte é justamente a permanência desses estudantes na graduação e na pós-graduação”.
A garantia de permanência desses estudantes na graduação passa por três eixos de ação, de acordo com Santos: “Apoio financeiro, com bolsas de permanência remunerando estudantes pobres e negros, que podem estar vinculadas a prestação de serviços ou realização de atividades acadêmicas. O segundo eixo de ação é a criação e o fortalecimento, dentro das IES, de setores dedicados a fazer a escuta sensível e a propor políticas para o acolhimento desses estudantes e enfrentamento das situações de racismo estrutural que ainda acontecem dentro da universidade. São núcleos de diversidade, de estudos afro-brasileiros, que tenham o poder de propor medidas para a IES se corrigir. O terceiro eixo é apostar nos estudantes negros para que possam se tornar professores, um olhar atento para esses alunos no recrutamento das IES, uma espécie de banco de talentos com ações afirmativas”.
Na pós-graduação, Santos aponta dois movimentos simultâneos que incentivam as instituições a contratar professores negros:
“A pauta da diversidade racial foi assumida nas estratégias da alta gestão das organizações. No caso da Unicid, em particular, há metas específicas para ampliar a diversidade racial. Eu percebo esse aumento, mas é um processo muito lento. Outra questão é que os critérios de avaliação da Capes têm exigido compromissos dos programas de pós-graduação, por exemplo, o percentual de professores negros no programa é uma métrica”.
Há, entretanto, fatores que continuam impondo barreiras para a ascensão na carreira acadêmica
“Na área da educação, formamos muitos mestres e doutores negros, mas, nos processos de seleção e contratação, as exigências de produção acadêmica para se manter no mercado impactam muito a desigualdade racial no Brasil. De um lado, tem o que Cida Bento chama de pacto narcísico da branquitude, que ainda opera nas IES. Por outro lado, há a dificuldade das pessoas negras de responderem às exigências meritocráticas da pós-graduação. Vou dar um exemplo: nenhum programa hoje contrata para dar aula na pós-graduação alguém que não tenha artigo publicado em uma revista classificada como A1. Publicar numa revista dessas requer um tempo para produzir pesquisa e custa caro para quem não está empregado, então, disputar vaga implica para além do título de doutor, que é só o primeiro passo.”
Alexsandro Santos, professor de mestrado e doutorado (Foto: arquivo/revista)
Entre as ações afirmativas que podem realmente mudar esse cenário, Santos aponta o programa de pós-doutoramento para pesquisadoras negras brasileiras, da Universidade de São Paulo (USP), que este ano distribuiu três bolsas de pós-doutorado no valor de R$ 8.479,20.
Editais para contratação de professores negros também contribuem
Por exemplo, o Grupo Ânima, com 18 mil educadores, 18 instituições de ensino superior e mais 570 polos educacionais, já lançou dois editais neste ano para contratação exclusiva de professores negros. “Cerca de 50% da população brasileira é negra. Nossa intenção é chegar a isso no quadro de professores. Há uma demanda dos estudantes negros e há um reconhecimento nosso da importância dessa presença, é um preceito pedagógico da Ânima. Contratamos 100 professores esse semestre e não facilitamos em nada, não baixamos a régua para contratá-los”, diz Kika Gomes, diretora de desenvolvimento organizacional.
Kika diz que não é uma ação fácil e atesta a resistência de parte da instituição. “Professores negros que já estavam aqui, supergabaritados, apoiam os que estão chegando.” Para abrir o diálogo, um grupo de discussão sobre as relações étnico-raciais se reúne semanalmente, com a participação de pessoas de diferentes áreas e hierarquias e também é responsável pelas ações afirmativas.
IES ainda patinam na gestão da diversidade
Não faz muito tempo, Nelson Piquet derrapou feio ao proferir uma fala racista para se referir a Lewis Hamilton. Pedro Bravo, presidente da Associação espanhola de empresários de jogadores, igualmente o fez em relação ao jogador brasileiro de futebol Vinicius Jr., do Real Madri. Esses casos ganham grande repercussão, é um avanço que sejam amplificados. Apesar dos pedidos de desculpas públicos – muito parecidos, por sinal, e protocolares – será difícil dissociar a imagem dessas pessoas às suas falas racistas. Também os casos de racismo que ocorrem cotidianamente, em comércios, nas ruas, vêm sendo denunciados na mídia. Youtubers e influenciadores, quando cometem erros similares, chegam a perder patrocínios. As grandes empresas, zelosas de suas imagens, também estão atentas ao que dizem seus representantes, pois declarações racistas causam prejuízo à imagem pessoal e corporativa.
Nesse contexto, é de estranhar que as relações étnico-raciais não sejam contempladas na formação de futuros profissionais. “Onde você vai aprender sobre isso se nas fases de socialização ou formação acadêmica sequer tomou contato com o tema? O estudo das relações étnico-raciais é obrigatório”, fala José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, única do País exclusiva para estudantes autodeclarados negros e que completará 20 anos em 2023. Ele conta que a luta antirracista no Brasil ganhou mais força a partir da Constituição de 1988, também por conta das discussões da Conferência Mundial contra o Racismo e Xenofobia de Durban, na África do Sul,em 2001:
“No conjunto, isso promoveu as primeiras grandes mudanças na agenda tanto do ensino superior público quanto do privado. Veio a Zumbi dos Palmares, junto com ela o grande debate em torno do reconhecimento da exclusão provocada pelo racismo e a necessidade de promoção de medidas de combate a ele.Vieram as cotas nas universidades públicas federais, depois extrapolaram para as universidades públicas estaduais e algumas municipais e, por fim, chegou, inclusive, à universidade privada através do Prouni”.
Vicente aponta a alteração na LDB, por meio da lei no 10.639/03, instituindo a história do negro e da África com uma dimensão obrigatória, e, no ensino superior, a necessidade de que todas as instituições cumprissem a disciplina de relações étnico-raciais.
Quase duas décadas depois, diz Vicente, “nós continuamos com as dificuldades que já tínhamos quando se promulgou a lei, com resistência formal ao próprio tema ou aos pressupostos da lei. Temos alguns professores que têm simpatia com essa agenda e colocam um esforço adicional para cumpri-la e instituições inteiras que não têm qualquer tipo de simpatia. Essa é a questão da educação brasileira, o grande desafio que se coloca para todo educador, toda instituição de ensino e para o Estado brasileiro, que precisa de uma educação em que todos estejam representados, que todas as histórias sejam internalizadas, acolhidas, que a diversidade, pluralidade do povo brasileiro seja valorizada, prestigiada”.
A Universidade Corporativa Semesp criou o curso Diversidade, equidade e inclusão, ministrado este ano a seus associados, gratuitamente. No ano passado, foram ministrados cursos alinhados à agenda ESG – Environmental, Social and Governance: Equidade de gênero e liderança feminina, em parceria com o grupo Mulheres do Brasil e Estratégias antirracistas, com a equipe da Universidade Zumbi dos Palmares. Marcio Sanches, coordenador da Universidade Corporativa Semesp, conta que a iniciativa desses cursos está vinculada à valorização desses temas na agenda das organizações comerciais que lideram os mercados.
Nesse sentido, explica, é importante que as IES conheçam os temas em suas práticas de gestão, educando e capacitando suas equipes para incorporar atitudes nos processos, como também incluir esses temas nos cursos. A ideia é que as IES se capacitem para operar nesse padrão e também formem profissionais com competências para trabalhar em organizações que incorporam essa agenda. Sanches avalia que a adesão aos cursos foi boa, mas reitera a percepção de Vicente: “A sensação é que as IES ainda não se atentaram para a importância do tema”.
A reportagem foi capa da edição 270 (outubro/2022) da Revista Ensino Superior.
https://revistaensinosuperior.com.br/onde-estao-os-professores-negros/