Onde o racismo se esconde?
Onde o racismo se esconde?
Representantes da cultura, procuradora e professor comentam sobre a importância do Dia da Consciência Negra
Na semana da Consciência Negra, que culmina no dia 20 de novembro, data que marca a morte de Zumbi dos Palmares, a questão do racismo vem à discussão. Na opinião das pessoas ouvidas pelo Semanário, esse tipo de preconceito se manifesta sobretudo de forma velada e está intrínseco com a formação social do Brasil.
Para buscar modificar essa realidade desde o princípio, a Sociedade 20 de Novembro, que trabalha pela valorização da cultura negra, e a Prefeitura de Bento Gonçalves organizaram uma extensa programação que vem acontecendo desde segunda-feira, 13. A agenda envolve debates, mostra de cinema e rodas
de conversa.
Na opinião do presidente da Associação 20 de Novembro, Oscar Alfredo de Souza Gonçalves, é de suma importância trazer o tema para estudantes, uma vez que são o futuro do país. “A partir de uma conscientização podemos erradicar de uma vez por todas a intolerância”, comenta.
Ele afirma ainda que o racismo existe no Brasil e ocorre de maneira direta ou indireta. “Recentemente tivemos o caso de um repórter de TV que praticou um ato de racismo. Se a pessoa que acompanhasse ele, na ocasião, fosse de cor negra, o que ele faria?”, questiona. O presidente afirma ainda que o problema se torna explícito quando as pessoas se veem diante de uma situação que possa desencadear o ódio.
A programação da Semana continua a ocorrer no sábado, domingo e segunda-feira, dia 20. Neste sábado, ocorre o costelão da Sociedade 20 de Novembro, no CTG Laços da Amizade. No domingo, ocorre um sarau poético na praça do bairro São Bento e, na segunda, a abertura da programação de 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher.
“Ele está nas estruturas de poder”, afirma procuradora
A procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT), Mônica Fenalti Delgado Pasetto, que atua em Caxias do Sul, entende que o racismo está nas estruturas de poder e que o 20 de novembro é muito importante para a sociedade refletir sobre o tema. De acordo com ela, os problemas também ocorrem na diferença salarial e em questões que envolvem atendimento ou contratação.
Mônica afirma que as pessoas não querem lembrar o dia 20 de novembro, uma vez que a sociedade em si ignora a importância das lideranças negras. “É o dia em que as pessoas têm que parar para olhar a vida do outro. A data existe porque é histórica, que nos reporta à consciência, porque marcou a morte de um líder que lutou contra a escravidão, de uma maneira muito dramática”, reitera.
Ela comenta que no ambiente de trabalho o preconceito se torna visível, na medida em que os negros são contratados com salários mais baixos e há casos de racismo explícito. “Podemos utilizar de exemplo um médico. Quando o paciente é recebido pelo médico negro, por mais que seja qualificado, ela recusa aquele atendimento. Isso acontece em vários grupos, em todas minorias. As empresas contratam os homossexuais, desde que ele esteja vestido como heterossexual”, argumenta.
Ainda de acordo com ela, o problema do preconceito é, sobretudo, falar sobre ele. “Nós precisamos nos abrir para que a conversa seja mais real. As pessoas não são iguais, elas não precisam ser iguais. Essa diversidade é que precisamos aprender a conviver”, comenta.
Desemprego atinge principalmente negros
Dos 13 milhões de brasileiros desempregados no terceiro trimestre deste ano, 8,3 milhões, o que corresponde a 63,7%, eram pretos ou pardos. É o que aponta a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) divulgada nesta sexta-feira, 17, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De acordo com o IBGE, o dado indica que a taxa de desocupação dessa parcela da população ficou em 14,6%, enquanto a da população branca ficou em 9,9%. A situação de desemprego dos pretos e pardos contrasta com os números do mercado de trabalho. De acordo com o IBGE, esta parcela da população representa mais da metade dos trabalhadores brasileiros, com 53%.
“O racismo se esconde na ignorância”, afirma professor
As cotas demonstraram ser uma política de inclusão eficiente, uma vez que possibilitam o acesso ao ensino superior aos jovens que sequer sonhavam com a universidade. Essa é a opinião do professor do campus do Instituto Federal de Educação (IFRS) de Bento Gonçalves, Gregório Grisa. Ele escreveu sua tese de doutorado sobre as ações afirmativas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Indo além do âmbito universitário, o professor comenta sobre o racismo estrutural do Brasil, que, na sua opinião, está presente em várias esferas e muitas vezes se manifesta de forma velada.
Jornal Semanário: De que forma se manifesta o racismo?
Gregório Grisa: Antes de pensar nas formas de manifestação do racismo é importante conceituá-lo. No senso-comum, o racismo é concebido como um sentimento de desprezo de algumas pessoas por outras, em função de origem ou cor da pele. Entendido assim, o racismo se manifestaria apenas em algum ato ou tratamento preconceituoso de alguém para outrem.
Porém, o caso brasileiro é infinitamente mais complexo. O racismo é um sistema estrutural de desigualdades que se organiza e se desenvolve através de estruturas, políticas, práticas e normas capazes de definir oportunidades e valores para pessoas e populações a partir de sua aparência, atuando em diferentes níveis: pessoal, interpessoal e institucional.
Entendendo assim, o racismo se manifesta nas profundas desigualdades sociais, educacionais, de renda, de acesso a serviços públicos e bens culturais entre pessoas negras e não negras. Em 2015, considerando todas as rendas, brancos ganhavam, em média, o dobro do que ganhavam negros: R$ 1.589 em comparação com R$ 898 por mês, o que explica isso? Dos mais de 60 mil homicídios por arma de fogo por ano no Brasil, cerca de 70% são de jovens negros, porquê? A população carcerária tem a sua maioria composta por pessoas negras, entre os analfabetos e os mais pobres isso também ocorre. Essas são as principais formas de manifestação do racismo no Brasil.
Semanário: Quais tem sido os resultados das políticas de cotas?
Grisa: O percentual de negros no nível superior deu um salto e quase dobrou entre 2005 e 2015. Em 2005, com poucas instituições com cotas, apenas 5,5% dos jovens pretos ou pardos (classificação do IBGE) em idade universitária frequentavam uma faculdade.
Em 2015, 12,8% dos negros entre 18 e 24 anos chegaram ao nível superior. Falando apenas das universidades federais, pesquisa da ANDIFES revela que o número de estudantes autodeclarados pretos ou pardos aumentou de 34% para 47% de entre 2003 e 2014. Esses avanços reais não aconteceriam sem as cotas. Todavia, cabe dizer que em comparação com os dados gerais dos jovens brancos há muito que se avançar.
Semanário: Como essa política tem evoluído nos últimos anos?
Grisa: As cotas eram políticas adotadas pelas universidades federais conforme suas decisões internas até 2012. Depois disso, a Lei da Cotas unificou a política para a rede federal. Isso fez com que a política ganhasse em efetividade e se expandisse, os dados mostram isso. As polêmicas em torno das cotas foram ficando para o debate mundano na medida que os três poderes (judiciário, legislativo e executivo) chancelaram a política. A evolução das cotas mostra que, no que tange ao acesso, ela cumpre um papel histórico e fundamental de democratização. A questão atual das cotas é garantir que os cotistas concluam seus cursos.
Semanário: Em termos de educação, quais são os resultados?
Grisa: As cotas estão em plena implementação, sua primeira revisão, no âmbito federal, será em 2022. O estudante da educação básica pública de qualquer cor é o principal beneficiado dessa política. Do ponto de vista educacional poderíamos mencionar dezenas de fatores que passam a ocorrer com a adoção das cotas. Milhares de alunos representam as primeiras gerações de suas famílias a chegar no ensino superior. O horizonte de estudar em uma universidade passa a ser real para aqueles alunos jovens cujos pais nunca sonharam com isso.
Dentro da universidade há o impacto positivo da diversidade. Focos de pesquisa, modos de desenvolver o ensino e as relações culturais estão sendo tensionados. Princípios hierarquizados, métodos tradicionais e pesquisas descompromissadas socialmente estão ganhando adversários qualificados com o ingresso dos cotistas. Eles trazem desafios educacionais que exigem uma oxigenação por parte dos professores e das instituições.
Os resultados podem ser vistos na ampliação de pessoas negras e de baixa renda ingressando no mercado de trabalho com diploma universitário. Essa é uma realidade que felizmente deve se ampliar com o tempo e que não existiria sem as cotas.
Semanário: Onde se esconde o racismo no Brasil?
Grisa: Essa pergunta daria uma tese, na verdade já deu várias. O racismo no Brasil é explícito, mas também escondido. É visível, mas também invisível.
O racismo está na sociedade e nós estamos nela, nós guardamos o racismo em algum lugar. Deixar de guardar o racismo e passar a eliminá-lo do convívio e da nossa subjetividade não é um ato de boa vontade ou bondade, mas sim um ato político de humanização, estudo e conscientização.
Por nos convencermos que não somos pessoalmente racistas passamos a acreditar que nosso grupo social e até a sociedade não o é, o que é um engano. Infelizmente, por se tratar de elemento fundante da formação sociocultural do Brasil, o racismo está na minha família, nos meus amigos e em mim.
O Brasil se forjou com base na noção de miscigenação, isso produziu uma ideologia de que somos uma democracia racial, o que os dados nos mostram ser falso. O racismo não é somente um ato, o racismo pode ser um “não ato”, uma não presença. O racismo pode estar onde não vemos ou sentimos, por vezes, o racismo anestesia nosso olhar para que nos acostumemos a não encontrá-lo.
A crença de que somos uma democracia racial faz com que naturalizemos as desigualdades raciais mais latentes do mundo. Em resumo, o racismo se esconde na ignorância, na não compreensão de como se constituíram as desigualdades raciais e na incapacidade de indignação política diante disso.
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