Orçamento e politicas de educação
Entrevista completa de GREGÓRIO GRISA para a Folha de São Paulo
Transcrevo abaixo a íntegra das repostas que dei para a repórter Angela Pinho da Folha de São Paulo. Minha expectativa sincera é que as pessoas façam a leitura da entrevista para além da manchete.
Segue!
Professor, o senhor fez recentemente um texto com “uma provocação ao campo progressista na educação”. Antes de começarmos a falar sobre isso, gostaria de saber: o senhor se identifica politicamente com esse campo?
Escrevi essa reflexão justamente por me considerar alguém forjado politicamente dentro do campo progressista, embora possamos estar falando de diferentes grupos e correndo os riscos que toda classificação traz, sim, me identifico como alguém de centro-esquerda, portanto, parte do campo progressista.
Como viu o posicionamento desse campo em relação à educação durante a atual pandemia?
No início da pandemia, o debate central era ofertar ensino remoto ou não, depois a necessidade de fazê-lo se tornou imperiosa.
Em maio de 2020, publiquei um artigo intitulado “É hora de agir na educação, mesmo que seja de maneira remota” em que questionei a posição daqueles que resistiam em ofertar ensino remoto nas redes públicas. Eu afirmava: “os setores que creem que vamos recuperar as aulas depois e se agarram ao princípio da igualdade de acesso para defender que nada seja ofertado e registrado agora estão cometendo uma injustiça com os mais pobres”; e dizia também: “as desigualdades sociais e educacionais já existiam antes da pandemia e não iremos solucioná-las agora e nem no retorno às aulas. Nesse sentido, devemos ser propositivos e ofertar atividades nos mais diversos meios possíveis, respeitadas as especificidades das etapas e modalidades de ensino.”
Ainda em maio, defendi em outro artigo que a escola é um cinturão de proteção social que deve se manter ativo em tempos de pandemia. A proteção social envolve perseguir o aprendizado dos estudantes, garantindo até sua alimentação em muitos casos, passa por subsidiar condições factíveis de trabalho para professores, por fomentar que as famílias se mantenham comprometidas com ações educativas e, ainda, ter cuidado com a saúde mental das comunidades escolares.
Já propunha nesses textos que era urgente garantir acesso a computadores e internet (inclusão digital) e que o Estado tinha de aprimorar seus mecanismos de busca ativa relativa aos estudantes mais vulneráveis. A longa duração da inatividade das escolas estava no horizonte para mim, os indícios de que o governo federal não iria liderar nenhuma coordenação para o retorno das escolas e que teria grandes dificuldades em combater a doença já eram claros.
Penso que a resistência inicial com a oferta de ensino remoto por parte de alguns grupos do campo progressista inibiu, em alguma medida, a capacidade de planejamento de escolas e redes em relação ao que era possível fazer. Com o passar do tempo isso foi mais bem contornado. Por outro lado, me filio as exigências de que para garantir segurança e cumprir protocolos sanitários é necessário recursos extras (em alguns contextos, um significativo investimento) e priorização política para com a área da educação.
Pode explicar melhor de que forma a resistência inicial com a oferta de ensino remoto por parte de alguns grupos do campo progressista inibiu, em alguma medida, a capacidade de planejamento de escolas e redes? Isso ocorreu mesmo em cidades e estados liderados por partidos de direita e centro-direita?
Quando me refiro a resistência inicial falo tanto do sentimento de que o fechamento das escolas não iria durar tanto e que se poderia aguardar um tempo sem atividades (isso inibiu planejamento por inação), quanto da resistência inicial fundada na tese de que ofertar atividades remotas poderia ferir alguma isonomia. Enquanto ficamos debatendo a exaustão questões conceituais, o tempo foi passando e o planejamento foi afetado. Isso ocorreu em todos os lugares, não se trata de um fenômeno de gestão, mas de debate dentro do campo educacional e não envolve necessariamente todos os profissionais. Contudo, não se pode confundir essa crítica com qualquer espécie de culpabilização dos professores em relação a qualidade da oferta do ensino remoto, esses profissionais tiveram de se reinventar, viram seus trabalhos precarizados em muitos casos, portanto, não podemos confundir as coisas.
Sindicatos de professores que, no início da pandemia, eram contra o ensino EAD, hoje também se manifestam contrários à volta às aulas presenciais. No caso de São Paulo, pregam a volta só após a vacinação da população, o que deverá levar meses. Como vê a postura dos sindicatos contrários à reabertura das escolas, inclusive com indicativo de greve de professores, tendo em vista que o fechamento prejudica principalmente os estudantes mais pobres?
É difícil comentar sobre um estado ou cidade em específico. Os sindicatos são plenos de direitos para tomarem suas posições e ações políticas, algo absolutamente legítimo. Minha posição é de que é fundamental empreender todos os esforços para que as escolas de educação básica reabram o quanto antes, em segurança. A forma da reabertura tem de ser adaptada à situação local e deve ser, inicialmente, híbrida, com revezamentos. Há regiões em que a situação para o mês de janeiro ou fevereiro será muito complicada, entretanto, há contextos em que se pode iniciar a retomada e ela deve ser priorizada.
A experiência de vários países demonstra que a reabertura das escolas não causou um aumento significativo do contágio, o desafio é garantir os protocolos e isso não poder ser pensado sem envolver professores, demais profissionais da educação, estudantes, familiares e a comunidade escolar.
Conforme aval das autoridades sanitárias, devemos tentar o retorno das escolas, mesmo que isso implique em futuro fechamento, se for o caso. Profissionais no grupo de risco devem ser preservados e os professores devem estar entre os primeiros a serem vacinados no Brasil.
Essa minha posição também decorre da não idealização do isolamento social por parte dos estudantes, em especial os mais pobres. Essas crianças e jovens estão sujeitas ao vírus, infelizmente, se garantirmos distanciamento social na escola, mais atividades ao ar livre, em espaços ventilados, com EPIs, teremos os profissionais preservados também. Precisamos entender que além do espaço da aprendizagem (que será muito afetada), a escola é fundamental na proteção contra diferentes formas de violência (doméstica, sexual) e quanto mais tempo as crianças vulneráveis estiverem expostas, pior.
O senhor cita também a escassez de pesquisas da área educacional com evidências empíricas e estatísticas. Acrescento que os economistas parecem ter ganhado espaço nessa área. Por que isso ocorre? A formação dos pesquisadores da área é falha ou trata-se do preconceito com métricas?
Há um elemento epistemológico aqui, que se refere a característica seminal da área do conhecimento. Não se trata de a área educacional ter uma formação falha para a pesquisa, mas dela priorizar em demasia as dimensões principiológicas, políticas, ensaísticas, teóricas. Essas abordagens constituem o campo e, como argumento no texto, são importantes, mas a realidade vem demandando que se ampliem as pesquisas empíricas que aliem métodos qualitativos aos quantitativos, que sejam longitudinais e façam mais avaliações dos resultados práticos das ações e políticas educacionais. A cultura de produzir pesquisa nesses moldes parece ser mais disseminada no campo da economia e o protagonismo dos profissionais dessa área no debate educacional também se deve a isso, afora o maior prestígio social e uma maior circulação política desses profissionais nas instituições políticas e na própria imprensa.
Vale dizer que há sim pesquisas na educação que recorrem a metodologias calcadas em estatística, mas não é a regra. Não diria que existe um preconceito generalizado em relação a “métricas”, mas o fato de metodologias quantitativas não terem tanto espaço na formação faz com que elas sejam vistas como ferramentas “de outras áreas”. Há o elemento político também, quando se fala em métricas, muitos as remetem a “avaliações em grande escala”, a “testes padronizados”, “rankings” a uma espécie de “medição” do que é a aprendizagem. Alguns setores não simpatizam com essas avaliações sob o argumento de que elas não abarcam a complexidade dos fenômenos educativos. Realmente há muitos limites nesses levantamentos, mas eles são ferramentas importantes para termos noção dos estágios que se encontram redes, escolas e estudantes.
Quais as consequências para a esquerda dessa postura mais reativa em relação à educação no debate público?
A consequência é ficar cada vez mais ensimesmada, crendo se fortalecer em círculos em que já tem certa hegemonia. Por basicamente dois motivos de “ordem de grandeza política”, a esquerda não pode tomar a educação como uma pauta em que apenas ela pode dar as cartas. O primeiro é que a população brasileira não é de esquerda em sua maioria. Pesquisas de opinião que aferem as preferências das pessoas em relação aos costumes e temas morais mostram como o brasileiro tem um perfil conservador. O segundo é que se pensarmos nas recentes eleições municipais, a gestão educacional brasileira (educação infantil e ensino fundamental) está, na ampla maioria dos casos, nas mãos de partido de direita ou de centro-direita. Prefeitos do PSDB vão governar o maior número de habitantes, pois venceram nas grandes cidades. Não há como pensar em incidir na melhoria da educação pública sem um amplo e perene diálogo com estes setores políticos. Não há como imaginar que reproduzindo conceitos e discursos que são consumidos por pequenos grupos políticos irá se alcançar alguma conquista de maior magnitude e permanente. Em tempos de debate sobre “frente ampla”, resta evidente que nenhuma corrente ideológica conseguirá governar o país de forma unilateral, sem fazer política e compor. Para angariar a confiança das pessoas e de fato modificar o padrão de financiamento e de qualidade da educação, teremos de tornar essa uma pauta da maioria das forças políticas, para além do discurso.
De que forma isso está ligado à receptividade de ideias como as do movimento Escola Sem Partido no Brasil?
Antes de mais nada é importante registrar que esse movimento merece todas as derrotas que já sofreu no STF, que praticamente o soterrou do ponto de vista jurídico, trata-se de um absurdo completo. As causas pelas quais parte da sociedade simpatiza ou apoia movimentos como esses são várias, não pretendo entrar nesse particular aqui. O que posso comentar é que quando me deparo com formações e debates educacionais constituídos de falas unívocas, por vezes panfletárias, que misturam a fala do sindicato com o da atividade que deveria ter um caráter técnico ligado a profissão, penso que isso pode ter favorecido a receptividade dessas ideias pela população. Inúmeras vezes percebi a comunidade escolar saturada dessas experiências. O desafio da esquerda parece ser, além de tentar compreender as razões políticas e sociológicas que permitiram a eclosão de um conservadorismo autoritário, o de identificar como sua postura pode ter contribuído para isso. Como sair da bolha adotando narrativas que só fazem sentido para a bolha? Como deixar de pregar para convertidos se é exatamente o que é feito nos debates da área?
Qual pauta educacional da esquerda poderia ser encampada por essas administrações de direita ou centro direita? É possível pensar em algum exemplo?
Podemos dividir as pautas em estruturais e curriculares.
Estruturais:
– Uma pauta que deveria ser de todos, mas que a esquerda destaca com mais frequência é a qualificação das condições de trabalho dos professores e da infraestrutura das escolas. A lei do Piso Salarial do Magistério prevê que o docente tem direito de que um terço da composição da sua carga horária seja dedicada para planejamento, estudos e correções das avaliações. Isso muitas vezes não é respeitado, a sobrecarga de horas aula é comum em muitas redes.
Com o advento de um Fundeb mais equitativo e com recursos adicionais nos próximos anos, é importante que as gestões encampem a ideia de que as escolas devem ser espaços dignos, com instalações minimamente descentes. O gargalo brasileiro em termos de infraestrutura é enorme e no debate sobre a regulamentação do CAQ (Custo Aluno Qualidade) teremos a oportunidade de mexer no desenho e no padrão de financiamento da educação básica.
– A formação continuada garantida de forma qualificada e frequente é outra pauta que pode ser construída junto as diferentes gestões do país. Ainda temos sérios limites em ofertar e conduzir uma formação efetiva, que responda aos anseios dos professores no sentido de lhes dar ferramentas para melhorar sua prática, seu engajamento e construir um “clima escolar” mais satisfatório no Brasil.
– Atendimento à primeira infância com a garantia de creche de qualidade, em especial para a população mais vulnerável. Isso faz toda diferença, pois crianças bem cuidadas e estimuladas nos primeiros anos têm maior facilidade de se alfabetizar, de socialização e de desenvolver boa autoestima. Indo além da educação, é fundamental conceber uma rede de proteção a primeira infância que envolva políticas da assistência social, da saúde, de lazer, de esporte, de cultura e atenção a maternidade. Isso deve ser pautado junto a qualquer administração.
Curricular:
– Uma pauta importante é a real implementação da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares das para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Uma educação antirracista é obrigação legal e uma urgência no Brasil. Embora a esquerda tenha uma voz mais ativa em relação a essa questão, penso que se trata de pauta transversal, calcada na legislação e na premissa política dos direitos humanos como horizonte civilizatório.
– O respeito a liberdade de cátedra dos professores, a garantia de autonomia das redes e escolas para definirem suas metodologias, seus projetos e, principalmente, a parte diversificada do currículo que está prevista no Art. 26 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394/1996). Vivemos um tempo em que tais garantias são pautas legítimas do campo progressista e elas devem ser respeitadas pelas gestões locais e regionais.
Agora queria propor um olhar sobre o outro lado, das ONGs e institutos de educação ligados ao empresariado e ao setor financeiro, que costumam ser vistos com desconfiança pela esquerda. São cada vez mais comuns parcerias dessas entidades com governos e prefeituras. Como vê essa atuação em conjunto?
Penso que devemos observar os resultados dessas cooperações e como elas são feitas. Há um vasto número de entidades que trabalham junto aos municípios e os estados, inclusive em parceria com os conselhos de secretários municipais e estaduais de educação. As condições da educação pública brasileira não permitem que se renuncie aos protocolos de cooperação com o terceiro setor, governos de diferentes partidos buscam assessorias e projetos que podem se encaixar com seus objetivos. Encaro como positiva a prestação de apoio técnico pedagógico a redes de ensino e escolas, desde que não acarrete despesa adicional ao poder público. O aperfeiçoamento das políticas públicas passa por esses diálogos e tensionamentos com diferentes setores da sociedade civil. Importante frisar que essas parcerias não podem significar a substituição do Estado na oferta da educação pública e tampouco extrair recursos públicos que já são escassos em favor de entidades que devem ter outra fonte de recursos para se manter.
Como saliento no texto, não podemos nos posicionar por premissa ideológica sobre contextos que não necessariamente conhecemos. Não podemos querer ter o monopólio das virtudes e alimentar uma desconfiança ética de atores políticos que não compartilham de nossas premissas ideológicas. Claro que existem muitos interesses envolvidos e cada caso deve ser analisado e avaliado como qualquer cooperação que o poder público realiza.
Essas ONGs, institutos, costumam apresentar seu trabalho como baseado em evidências. É possível existir um olhar meramente técnico, e não político, sobre as evidências? Perguntando de outra forma, essa postura também não interdita o debate, no sentido de que quem é contra o que pregam essas entidades seria contra as evidências, obscurantista?
Esse mantra do “baseado em evidências” já soa como caricato para mim. Ninguém é dono das evidências, elas têm seus contextos e condicionantes, estão sujeitas a interpretações. O que existe são resultados que vão se consolidando com o tempo e dados que mostram que determinada medida irá provocar essa ou aquela externalidade, isso faz parte do avanço do conhecimento.
O adequado é que aqueles grupos que defendem seu argumento com as melhores evidências prosperassem no debate público, isso ocorreu no debate do Fundeb, mas em política não é sempre assim. Essa reivindicação das “evidências” tem em si um elemento estético e de linguagem também. Quanto mais você se apresenta dotado dos elementos usados nas áreas de prestígio das ciências, mais aceito e escutado você é.
Não há neutralidade na educação, assim como na economia. A educação é permeada pela política, como tudo. A gestão educacional é um processo complexo de trabalho coletivo que requer, entre outras coisas, o convencimento dos atores que estão na ponta. Por isso, não existe política educacional sem gestor (de rede e escola) e sem professor. Mas a educação é permeada pela técnica também. Gestões que alcançam resultados satisfatórios são aquelas em que a maioria dos docentes se sentem capacitados para exercer seu trabalho e identificam que seus esforços, individuais e coletivos, produziram bons resultados.
O desafio é pesquisar da forma mais precisa possível as práticas que permitem que mais estudantes tenham seu direito à educação garantido. Conhecer as evidências e cruzamentos mais robustos e recentes é um passo necessário, mas não suficiente.
Entre as entidades privadas é preciso fazer distinções também. Muitas estão alinhadas a interesses específicos sim, de abertura de mercado para determinados grupos econômicos; já outras defendem determinada perspectiva por realmente terem aquela visão programática e política. Como a direita e a centro-direita dialogam de modo mais orgânico com o terceiro setor, por vezes parece haver maior alinhamento e proximidade entre eles quando se fala em educação. Depende muito da pauta. Doutra feita, dialogar com as “ONG empresariais” é tido como sacrilégio para alguns grupos de esquerda. Não caio nessas armadilhas mais, prefiro diálogo e aprendizado permanente, sem perder de vista que iremos divergir em algumas questões e concordar em outras.
Por fim, devo dizer que a posição de “provocador” nem sempre é confortável, mas reputo necessário que a esquerda ou centro-esquerda oxigene suas práticas e premissas no que tange a educação. Temos dificuldade para olhar os nossos dogmas e identificar nossas responsabilidades em todo o processo histórico recente. Faz parte da formação do cidadão crítico manter uma postura inquieta e vigilante diante de suas crenças, ter o espírito livre para questionar, fazer outras interpretações para fenômenos que estão sendo olhados de forma homogênea ou unânime no seu grupo.
https://gregoriogrisa.com.br/entrevista-completa-para-a-folha-de-sao-paulo/