Os Rankings não mentem

Os Rankings não mentem

Os Rankings não mentem

Partilhar histórias de alunos filhos de trabalhadores empobrecidos e mesmo miseráveis (eufemismo “carenciados”) não nos explica o que é a escola pública nem quem são os professores. Primeiro, porque felizmente não são a esmagadora maioria dos que andam na escola, nem o principal desafio dos professores. Não devia existir uma única criança com fome mas são menos de 5% do universo da população escolar (5% que envergonham qualquer país, sem dúvida). Ora Portugal construiu a escola pública e universal com as lutas dos professores na revolução quando só em Lisboa havia centenas de milhar de pessoas a viver em barracas, crianças com fome, epidemias de cólera, com muito mais problemas de saúde e de aprendizagem do que hoje, e a escola mudou-lhes a vida, para sempre. A escola não esteve lá para eles, os filhos de quem trabalha, só para lhes dar de comer, mas para lhes dar uma formação.

A escola que os professores receberem, e transformaram com a revolução depois do 25 de Abril e na década seguinte, não tinha alguns alunos “carenciados” – tinha centenas de milhar e no entanto a escola mudou-lhe a vida, dando-lhes ferramentas para terem um trabalho. Conheço professores, escritores, médicos que vinham de classes trabalhadoras muito pobres e a diferença foi a escola pública. Hoje não é – apesar de terem publicado aqui uma gorda de um estudo que diz que os alunos do privado chumbam mais na Universidade do que o público – todos os estudos nacionais, sem exceção, o que dizem é que a escola deixou de ser um lugar de emancipação e passou a ser de reprodução social. Filho de operário não vai ser médico na escola pública.

O estudo cuja gorda tem sido partilhada refere-se exclusivamente a um universo restrito de medicina e o que diz é que nos últimos anos de medicina chumbam mais os da pública, no início os da privada. Por outro lado, não distingue colégios de topo, de outros do ensino privado. E tem um viés, que é parte do universo – nas privadas estão alguns (quantos?) alunos que querem ir para medicina por pressão familiar e menos por vocação, e isso acaba por ter impacto na carreira escolar. Finalmente os colégios do ranking têm bolsas com alunos “carenciados” que fazem percursos brilhantes. A questão não está – volto a dizer – nos alunos que entram na escola mas no que a escola tem para lhes oferecer. Ou têm dúvidas do que responder à pergunta do início? Sim, podem colocar um aluno pobre e miserável num colégio de topo e o que acontece é que ele vai aprender e vai aprender muito bem. E ser feliz na escola.

A caricatura que fazem aqui dos colégios de topo é um disparate, como se fossem autómatos a fazer testes para os exames. Não, há aulas de manhã ou à tarde o resto são artes, desporto, cultura. A diferença está na formação dos professores, nas condições de trabalho dos docentes, e na organização da escola. É neste trio que se resolvem todos os problemas.

Temos que debater porque a escola pública deixou de ser um lugar de emancipação, para alunos e professores. Isto se queremos defender a escola pública. É difícil fazer esse debate se chocamos de frente com um muro em negação a dizer-nos que não senhora, a escola pública está óptima. Parte deste muro , desta negação, que os professores replicam segue a orientação das ciências da educação dominantes (que fizeram da escola um espaço assistencialista, cheios de “tolerância” e “cidadania” e sem qualquer horizonte de emancipação e liberdade); parte tem a ver com as teorias dominantes governamentais que querem uma escola voltada para o mercado de trabalho (e eu diria que os professores e pais também acreditam nisto – voltarei ao tema também) e, finalmente, parte da negação vem dos próprios sindicatos que ao não conseguiram inverter este rumo (a derrota master foi em 2008-2010) criaram uma fábula de uma escola pública excelente, de docentes esforçados, que lidam com situações complexas todos os dias. O que é verdade, mas isso não faz uma escola.

Os rankings não mentem. Mostram uma realidade, parcial mas real. Os rankings dizem uma terrível verdade – a escola pública reproduz as desigualdades sociais existentes, logo não cumpre a sua função de escola. Cumpre outras: evitar delinquência, servir o mercado de trabalho, ocupar crianças enquanto os pais trabalham, dar de comer, no limite, mas não cumpre a função primordial que é ensinar e transformar. E a minha tese é que um professor não pode ser feliz se não cumpre a função de educar e transformar. O “brilho nos olhos” não chega quando conseguimos um lugar no ensino profissional para um filho de um operário ir estudar, mas quando temos uma criança que não está a aprender um raciocínio complexo e nós conseguimos ensinar esse raciocínio. Esse “clique” é apaixonante e é o que faz um bom professor. Quando eles aprendem, e por isso ficam melhores, mais livres, mais emancipados.

Os exemplos que são partilhados são sobre escolas TEIP. É o viés do pobrezinho e feliz herdado do salazarismo. “Porque se queixam enfermeiros de ganhar 1000 euros se outros ganham 600?”. Andamos sempre a comparar-nos com o pior, nunca com o melhor. As TEIP são uma minoria. O cenário real da maioria não é TEIP e não é bom. Porque não partilhar o exemplo de uma escola pública de um bairro nobre de Lisboa onde as duas turmas de 10ª ano de humanidades têm média negativa às disciplinas fundamentais e nas turmas de ciências, onde foram cirurgicamente colocados os melhores professores, 70% tem explicações privadas? Porque não colocar o exemplo dos filhos de operários, enfermeiros, a quem foi dito no 7º ano que “talvez ele estivesse melhor num ensino profissional, lá para o 9º ano”? Assim, condenamos com 13 anos, já desistiram deles. E estes são os bem alimentados. Não têm fome, têm ignorância e desconhecimento, e por isso são menos livres, e a responsabilidade é nossa. A escola pública pode dar de comer aos filhos dos 5 a 10% que passam fome, e ainda bem que o faz. Mas não ensina em média com qualidade (sim, há exceções!) os filhos dos outros 90% que alimentam muito bem os filhos e pagam impostos como condenados. Estes filhos – de operários, funcionários públicos, motoristas, enfermeiros, e mesmo de professores – não vão entrar na faculdade ou não vão entrar no curso que desejariam. E pior, os resultados médios dos exames anónimos revelam que não aprenderam o mínimo.

Podemos continuar a debater as franjas mais pobres ou podemos perguntar que escola é esta que nos dão. Não deviam ser os professores os primeiros a fazer esta pergunta?

https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2021/05/26/os-rankings-nao-mentem/ 

 

Escola, para quem?

Tem razão, professora, mas há um perigo nessa visão. O conhecimento não se espelha na sua totalidade numa fotografia de 90 minutos, mas num filme, de evolução. Por isso os exames, que defendo, medem algo, mas não tudo. Mas o inverso é ainda um perigo maior – pensar que a escola serve para tudo menos para ensinar conhecimento, e que o professor, por consequência, raramente é professor, mas é um sacrificado psicólogo, burocrata, assistente social, e animador cultural. A escola é um lugar para ensinar conhecimento. Não é um jardim de infância nem um armazém de crianças. Se a escola tem qualidade as crianças e jovens estão lá de manhã. À tarde deviam estar a brincar e a socializar, aprender artes, música, jogos coletivos, desporto, conhecer o mundo, ir a museus, e à praia, mas agora passam 8, 10 horas dentro da escola, explicações e afins e no fim enfiam a cabeça, sozinhos, no telemóvel, onde ainda são treinados para a automação (que é esse o papel dos telemóveis nas crianças e jovens, ensiná-los a carregar sozinhos, alienados num botão várias horas ao dia). E há mais gente preocupada com direitos dos animais do que com isto que andamos a fazer a crianças e jovens, transformando-as em autómatos, com reflexos, com taxas de depressão e obsedidade, apartados da criatividade, catatónicos, porque com este ritmo a sua desumanização é galopante.

Se acham um horror um leão preso no circo o que achar de um intervalo numa escola de 10 minutos com miúdos agarrados ao telemóvel ? Nos colégios do topo são proibidos, mesmo no intervalo, e só há aulas por norma um turno. Coisa que defendo. Não são eles que estão errados, por serem uma elite, são os outros que estão errados, por não agirem em defesa das crianças na escola pública, que devia ser o lugar mais exigente e mais cuidado deste país. Bom, como a sala de aula na larga maioria das escolas não funciona como espaço de conhecimento, então alarga-se o período, mais apoios, mais aulas, mais explicações, mais, mais, mais. Um massacre. E o que acontece é que os miúdos – com razão – odeiam a escola, são aí infelizes, como indicam claramente as pesquisas. Ensina-se, não usando o melhor do conhecimento científico, com alta formação e pedagogia de excelentes docentes, mas por tentativa-erro e redundância. Até deixar exaustos alunos e professores. A escola também não é – não devia ser – para dar de comer.

Ouve-se cada vez mais que a escola tem outras valências de grande importância como dar de comer a crianças ou evitar que vão para gangues e afins. Ora, isto não é uma escola, é um departamento assistencial do Estado para algo que jamais devia existir no século XXI – fome. No fundo o que se está a criar é que há uma escola onde se ensina (de elite) e outra – pública e privada normais – onde, com esforço – ninguém o nega -, se ocupam de crianças e jovens o dia todo, os “aturam” até que eles entram, iletrados ou semi, no mercado de trabalho e sem ter adquirido conhecimento de fundo e desenvolvido as funções psíquicas superiores (abstração, memória, atenção dirigida, etc).A escola não se mede em 90 minutos. Mas aqueles resultados daqueles 90 minutos dizem muito sobre o que não está a fazer-se na escola pública e privada, e está a fazer-se nos colégios de elite. Em vez de desdenhar os que fazem bem porque não começamos a perguntar o que eles fazem bem, como fazem bem, e não exigimos isso para a escola pública que pagamos a peso de ouro?

https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2021/05/25/escola-para-quem/ 




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