Os reveses educacionais
A pandemia e os reveses educacionais
por Maria Alice Nogueira e Tânia F. Resende*
A conjuntura sanitária resultante da pandemia de Covid-19 produziu, no campo educacional, uma forte crise, dada a interrupção súbita e sem precedentes das atividades letivas em quase todos os países do mundo, atingindo a grande maioria da população em idade escolar e deixando aproximadamente 1,5 bilhão de alunos confinados em suas casas. Dentre as inúmeras preocupações que esse cenário tem levantado, uma parece ser central: como o confinamento está afetando e irá afetar, no retorno às aulas, as já fortíssimas desigualdades escolares existentes entre os alunos dos diferentes grupos sociais? As conhecidas distâncias de proficiência entre crianças e jovens cultural e economicamente favorecidos e seus pares desmunidos poderão aprofundar-se ainda mais?
Infelizmente, tudo parece indicar que sim. Pesquisadores internacionais (especialmente de expressão anglófona) há tempos vêm observando as distâncias (gaps) de aprendizagem entre os alunos após períodos mais ou menos extensos de interrupção das aulas, como recessos prolongados e, especialmente, as férias longas de verão. Os resultados convergem para a conclusão de que o meio social e as condições de vida dos alunos impactam fortemente no fenômeno. Mensurando a proficiência de cada aluno antes e depois da pausa, por meio de testes e em condições científicas controladas, os investigadores constatam que os alunos oriundos de meios sociais desfavorecidos apresentam, no retorno às aulas, perdas bem mais acentuadas em seus níveis de aprendizagem, em relação a seus pares favorecidos, os quais tendem a manter os níveis iniciais ou até mesmo ostentar ganhos em suas habilidades. Trata-se do chamado “revés de verão” (summersetback), que tem sido evidenciado por essas pesquisas como um importante fator de desigualdade de desempenho entre alunos ricos e pobres – especialmente no caso das habilidades de leitura, configurando o chamado summer reading setback.
Isso tem levado, em especial na América do Norte, a diversos programas de intervenção visando a atenuar esse efeito nefasto. Seja na forma de ações pedagógicas postas em prática, pela escola, no retorno; seja de ações preventivas, como o fornecimento, pela escola, de livros a serem lidos nas férias, com instruções aos pais de como utilizá-los, e assim estimular a leitura dos filhos.
As razões levantadas pelos pesquisadores para explicar tais “reveses” apontam para o estilo de vida da família – em particular, o uso do tempo livre pelas crianças que, como se sabe, varia fortemente segundo o meio social, encontrando-se práticas mais próximas da cultura escolar entre aquelas de meios mais favorecidos. Alguns estudos revelam que, mesmo quando o tempo extraescolar é dispendido em atividades com fins educativos – por exemplo, aulas de reforço ou atividades de enriquecimento cultural (visitas a museus, etc.) – os modos desse uso e seus benefícios são desiguais, variando conforme o meio social do educando.
Apesar de não contarmos com pesquisas desse tipo no Brasil, suas conclusões fazem todo o sentido diante do que se conhece sobre as desigualdades educacionais em nosso país. Crianças e jovens oriundos de camadas socialmente desfavorecidas enfrentam barreiras de todo tipo para permanecer na escola e ter sucesso em suas trajetórias – desde as dificuldades materiais até a distância cultural em relação ao “universo escolar”. Nesse contexto, o distanciamento temporal em relação a esse “universo” tende a ter efeitos mais perversos do que para os demais grupos, podendo, frequentemente, levar ao abandono do projeto de estudos e à evasão.
É claro que a situação atual é muito mais complexa do que as que já foram focalizadas nas pesquisas, seja pela interrupção abrupta e não planejada, seja pela indefinição sobre a duração do período de fechamento das escolas, pela possibilidade de outras crises que levem a novos períodos de isolamento social – dentre outros agravantes. Diante disso, sistemas educacionais em todo o mundo têm investido na continuidade dos processos de ensino-aprendizagem por meios não presenciais, o que também é alvo de muitas polêmicas, nas quais a discussão das desigualdades tem lugar central. Em survey conduzido pela UNESCO entre março e abril de 2020, com sistemas educativos de 59 países, os desafios citados foram recorrentes: falta de acesso a recursos digitais e de habilidade para operá-los, tanto por parte de professores quanto de estudantes e famílias; aumento da carga de trabalho para os professores e funcionários, que não tiveram tempo e condições para se preparar; aumento de custos tanto para escolas quanto para famílias; dentre outros.
Por outro lado, o estudo também mostra que, apesar dessas dificuldades, muitos sistemas de ensino têm buscado estratégias para proporcionar condições de continuidade do aprendizado e para manter os vínculos entre escolas, estudantes e famílias. Tais estratégias são diversas e não se resumem ao uso das plataformas digitais, combinando-as com recursos mais tradicionais como TV, rádio, CDs/DVDs e até mesmo materiais impressos enviados pelos correios. O apoio aos professores e funcionários da educação, bem como aos alunos em situação mais vulnerável, é citado no estudo como condição fundamental para a implementação adequada de medidas capazes de mitigar o impacto da crise, com ênfase na inclusão e na equidade.
No Brasil, país marcado por profundas e persistentes desigualdades, a implantação de atividades remotas sem uma atenção especial às condições dos professores, estudantes e famílias pode ter efeitos perversos desse ponto de vista – da inclusão e da equidade. Porém, a inação diante da suspensão das aulas certamente não é uma solução face à desigualdade, podendo, também, redundar em mais um duro “revés” para os grupos que, a partir de situações desfavoráveis, lutam para fazer valer o seu direito à educação.
*Professoras da Faculdade de Educação da UFMG e pesquisadoras do Observatório Sociológico Família-Escola (OSFE) – osfe@fae.ufmg.br.