Para pensar sobre a volta às aulas

Para pensar sobre a volta às aulas

Coronavírus: 8 pontos para pensar sobre a volta às aulas presenciais

O Brasil ainda não achatou a curva de casos e mortes por covid-19, mas já ensaia os primeiros passos para a retomada das aulas presenciais. Mozart Neves Ramos destaca os desafios do momento

POR: Mozart Neves Ramos      

De março para cá, o mundo começou a enfrentar uma situação jamais imaginada: 1,5 bilhões de estudantes fora da escola. Os dados do relatório do Banco Mundial são o retrato de mais de 160 países que tiveram suas aulas afetadas por conta do coronavírus. Passada a pior fase da pandemia, diversas nações que viram suas curvas de casos de covid-19 se achatarem, como Itália e Reino Unido, retomam as atividades escolares presenciais.

O Brasil ainda não chegou neste momento. No entanto, dificuldades financeiras e a própria fome começam a atingir cada vez mais a população brasileira. Pressionados por um ambiente econômico e de renda que mostra sinais de fraqueza, os estados e municípios ensaiam seus primeiros passos rumo à volta as aulas presenciais. Pensando nesse planejamento das escolas, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publica em julho o parecer 11/2020, que traz orientações educacionais para a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia (clique aqui para acessar o parecer). Abaixo, destaco os alguns pontos da discussão que atravessam esse planejamento:

1. A retomada das aulas presenciais de forma segura depende de medidas sanitárias. A maioria dos estados planeja o retorno para agosto ou setembro, mas depende de cumprir requisitos que assegurem a segurança sanitária das escolas. Isso inclui reorganizar o espaço das instituições de ensino, garantir o distanciamento dentro das salas de aula e manter orientações permanentes aos alunos quanto aos cuidados a serem tomados nos contatos com os colegas. Embora o CNE coloque um conjunto de orientações, cada secretaria de Educação define como será sua retomada, já que as regiões se encontram em momentos diferentes da pandemia e assumiram estratégias próprias em relação ao calendário letivo.

2. O acolhimento é o principal ponto de discussão nesse momento. Muitas crianças que estiveram em isolamento vivem em famílias de baixa renda, as mais afetadas pela pandemia. Perda de familiares por coronavírus, impacto na renda e o próprio confinamento ampliam o estresse social e emocional. A neurociência mostra que quando uma criança está com níveis elevados de estresse, uma substância chamada cortisol fica impregnada no cabelo. Altos índices de cortisol estão associados ao baixo desempenho dos estudantes. Por isso, nesse momento é muito importante fazer o acolhimento social, cuidar da saúde mental, dar assistência. Cuidar da saúde emocional vai exigir das escolas uma infraestrutura que grande parte das públicas hoje não possui. Portanto, será necessário que as redes se organizem para estar preparadas para esse acolhimento, que não será algo trivial.

3. Será necessário um esforço de busca ativa, especialmente em relação aos alunos do Ensino Médio. Antes da pandemia, na média, um jovem abandonava a escola de ensino médio por minuto. Para contribuir nas rendas familiares, muitos são pressionados a buscar alguma atividade laboral, que corre o risco de substituir as atividades escolares. Além disso, há o fenômeno da autoexclusão: aqueles que se sentem desmotivados pela situação e talvez não queiram voltar à escola. Há prospecção de que muitos jovens não vão fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) porque não se sentem preparados e não querem fracassar. Sem concluir a escola, possivelmente estes jovens se encontram em trabalhos conhecidos como “bico”. São jovens em situação de alta vulnerabilidade social que devem engrossar a fila dos “nem-nem”, aqueles jovens que nem trabalham e nem estudam. Atualmente, já são 13 milhões nessa situação – sem falar dos desalentados, aqueles que nem sequer estão em busca de alguma atividade laboral. É necessário pensar políticas que atuem incentivando a permanência, especialmente dos jovens, na escola. 

4. A atividade diagnóstica é mãe do replanejamento. Mesmo em redes com alta capacidade de oferta de ferramentas digitais e de efetivar parcerias, como a rede estadual de São Paulo, os acessos não são igualitários para todos os estudantes. Isso exigirá que cada escola olhe para o planejamento feito até aqui em relação ao seu currículo para desenvolver um diagnóstico mais preciso. Só assim, as escolas conseguirão replanejar considerando os desafios de aprendizagem da sua comunidade. É fundamental realizar essa avaliação diagnóstica nas escolas para identificar o nível de desenvolvimento de cada estudante no retorno às atividades presenciais.

5. O contraturno será um tempo chave para as escolas. Para conseguir desenvolver as habilidades e conteúdos essenciais e dar conta das 800 horas letivas obrigatórias, será necessário oferecer atividades no contraturno, e até mesmo estender o ano letivo para os primeiros dois meses de 2021. Isso não significa necessariamente que as crianças e adolescentes deverão passar mais tempo na escola. É possível fazer atividades de reforço ou complementares aos conteúdos do currículo usando mediação tecnológica. O aluno estuda presencialmente em um turno e no outro as atividades são a distância. Mesmo que a maioria das escolas sejam de tempo parcial, um dos legados que a pandemia nos deixará são os alunos de tempo integral.

6. Na Educação, precisamos somar para multiplicar. Recursos humanos, físicos e materiais são limitados nas secretarias de Educação. Algumas secretarias (geralmente as estaduais) possuem mais infraestrutura e capacidade de trabalho o que facilita o planejamento e execução de ações. Estas podem ser grandes parceiras de um regime de colaboração com os municípios para apoiar o desenvolvimento de ações para o segundo semestre letivo e atingir os objetivos de aprendizagem. Sem a coordenação necessária do governo federal para fortalecer a colaboração entre os entes federados e com o momento difícil de arrecadação dos estados e municípios, o terceiro setor aparece como um parceiro importante para que o regime de colaboração se efetive na prática.

7. 2020 e 2021 vão dialogar. Além de um possível calendário escolar bianual, em que as atividades letivas de 2020 avançam por pelo menos dois meses de 2021, como falamos acima, o planejamento de 2021 exigirá uma conexão mais forte com o currículo cumprido em 2020. Aquelas habilidades e conteúdos que eventualmente não foram dados neste ano ou não tiveram o aprofundamento necessário precisarão de maior articulação em 2021, podendo conter inclusive conteúdos da série anterior. Cada escola deverá reconstruir seu projeto político pedagógico (PPP) também fazendo esse diálogo bianual. É aquilo que o próprio CNE está chamando do currículo contínuo.

8. 2020 não será um ano perdido. É um ponto polêmico porque alguns consideram que 2020 será um ano letivo perdido.  Lógico que em períodos de férias prolongadas há uma perda de cognição e de aprendizagem grande, especialmente entre os mais vulneráveis socialmente. Mas penso que é preciso ir além dos aspectos cognitivos. O mais importante é motivar a retornar a escola, prever ações de acolhimento para se reintegrar e aprender com a pandemia. É isso que deveríamos trilhar e pensar daqui por adiante. 2020 não é ano pra reprovar, mas para não perder nenhum aluno. A avaliação é feita posteriormente, é a última coisa que deveríamos pensar. A escola um estudo contínuo. Podemos pensar em avaliações por ciclos de aprendizagem, como é feito, por exemplo, nas séries que integram o ciclo de alfabetização, compreendendo o tempo de aprendizagem como um processo que avança as barreiras do calendário letivo.

 

Mozart Neves Ramos é titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) – Ribeirão Preto e membro do Conselho Nacional de Educação. Engenheiro químico de formação, possui doutorado e pós-doutorado na área, além de grande trajetória no Ensino Superior. Foi professor, pró-reitor acadêmico e reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi diretor de articulação e inovação do Instituto Ayrton Senna. Foi eleito pela Revista Época como uma das 100 pessoas mais influentes do Brasil em 2008, também foi considerado Educador Internacional do Ano, em 2005, pela IBC Cambridge. Mozart atuou como secretário de Educação de Pernambuco, foi presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed) e presidente-executivo do Todos Pela Educação. Também é autor dos títulos “Educação brasileira: uma agenda inadiável”, “Educação sustentável” e “Sem Educação não haverá futuro”.




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