Parecer CEEd nº 003/2020

Parecer CEEd nº 003/2020

COMISSÃO DE LEGISLAÇÃO E NORMAS

Parecer CEEd nº 003/2020

Processo nº 20/0801-0001523-6


Manifesta-se contrário ao Projeto de Lei nº 170∕2019 que tramita na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul - AL∕ RS que dispõe sobre a educação domiciliar.

 

RELATÓRIO

O Conselho Estadual de Educação – CEEd/RS, no exercício das suas atribuições como órgão consultivo, normativo, fiscalizador e deliberativo do Sistema Estadual de Ensino, recebeu Processo nº 20/0801-0001523-6 contendo Ofício nº 012/2020/SL/DAL, de 15 de julho de 2020, pedido de Diligência da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia acerca do Projeto de Lei nº 170/2019, que dispõe sobre educação domiciliar e dá outras providências. Em virtude dessa solicitação, o CEEd estabeleceu estudos no âmbito das Comissões de Ensino sobre o tema, incluindo também, ações junto ao Grupo de Estudos e Debates Permanente do Regime de Colaboração (GEDP RC), vinculado à Comissão Especial do Regime de Colaboração (CERC) do Conselho Estadual de Educação.

 

ANÁLISE DA MATÉRIA

O CEEd reconhece que o parlamento é um espaço institucional importante e legítimo de discussão dos temas da Educação. No entanto, com relação ao PL 170/2019, manifesta-se contrário pelas razões e fundamentos explicitados neste parecer, como segue.

Preliminarmente, é importante registrar que a matéria educação domiciliar1 já suscitou manifestação do Supremo Tribunal Federal- STF, em sede de Recurso Extraordinário (RE), oriundo de mandado de segurança impetrado pelos pais de uma menina de 11 anos contra ato da Secretária de Educação do Município de Canela (RS), que negou pedido para que fosse educada em casa, orientando-os a fazer a matrícula na rede regular de ensino. Reconhecida a repercussão geral da matéria, o STF julgou o RE nº 888.815 em 12/09/2018, negando por maioria provimento ao referido recurso, vencidos o Ministro Roberto Barroso (Relator) e, em parte, o Ministro Edson Fachin. Portanto, a matéria encontra-se pacificada pela Suprema Corte.

Há três aspectos que merecem ser destacados, com relação à matéria envolvendo o PL em comento: a) a constitucionalidade e a legalidade; b) o processo pedagógico; c) os efeitos da educação domiciliar no sistema estadual de ensino.

Quanto ao primeiro aspecto destacado, é importante referir o artigo 208, parágrafo 3º, da Constituição Federal, ao estabelecer que “Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à

1 Também camada “ensino doméstico, “homeschooling” e “desescolarização“.

escola” (grifo nosso). Portanto, a frequência à escola impõe como dever, não apenas da família, mas especialmente do Poder Público. A Lei de Diretrizes e Bases – LDB (Lei 9394/1996), artigo 5º, inciso III, é ainda mais impositiva quanto ao dever do Poder Público, incumbindo-lhe a tarefa de “zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola” (grifo nosso).

Com relação à obrigatoriedade da matrícula em estabelecimento de ensino pelos pais, a Lei de Diretrizes e Bases- LDB determina, no artigo 6º, que “é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4  (quatro)  anos  de  idade”  (grifo  nosso). Ou seja, por óbvio, trata-se do dever da família de matricular as crianças na rede regular de ensino e não apenas dar assistência educacional no respectivo domicilio residencial. Essa obrigatoriedade da matrícula em instituição da rede escolar fica ainda mais reforçada no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990), no artigo 55, ao determinar que “os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino” (grifo nosso).

O PL na forma apresentada, ao reduzir a educação ao âmbito familiar, suprime do processo educativo um dos importantes princípios da educação formal: a sua função socializadora que contribui para o exercício da cidadania ativa. A educação é direito e dever da família e do Estado, portanto, “deve ser implementada coletivamente”, como afirmou o Ministro Ricardo Lewandowski durante o debate da matéria no STF. Esse entendimento de que a educação deve ser um processo coletivo está consolidado no artigo 205 (grifo nosso) da Constituição Federal, textualmente:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (grifo nosso).

A negativa de acesso do aluno ao espaço escolar traz prejuízos no campo pedagógico, sociocultural e protetivo. Restrito ao âmbito domiciliar, o aluno fica privado do convício social com outros jovens, professores e funcionários, bem como, do pluralismo pedagógico que a escola oferece. A escola é parte importante da rede de proteção à Criança e ao Adolescente, inclusive contra a violência familiar. É nela que professores atentos fazem o diagnóstico e comunicam ao Conselho Tutelar situações de violência doméstica. A ausência à escola deixa mais vulneráveis as crianças e adolescentes – especialmente das famílias das classes populares – à exploração do trabalho infantil doméstico, à mendicância, ao comércio informal nas ruas ou mesmo à exploração sexual.

Portanto, a privação do convívio escolar implica na supressão de um espaço de proteção e de uma experiência fundamental na formação integral da criança e do adolescente, o que pode ter consequências nocivas à sua formação como cidadãos em fase de peculiar desenvolvimento. Como espaço de socialização, a escola, além de exercer a sua função clássica de ensinar a ler, a escrever e a contar, propicia o ensino de valores, de atitudes e de regras e parâmetros de convivência que, por ela passam. Além disso, cumpre uma importante função de intermediária entre a família e a vida social. É de se perguntar: na ausência da escola, que instituição cumpriria esse papel?

Em relação ao processo pedagógico é de se destacar o disposto no Parecer CNE/CEB nº 7/2010:

A escola de Educação Básica é espaço coletivo de convívio, onde são privilegiadas trocas, acolhimento e aconchego para garantir o bem-estar de crianças, adolescentes, jovens e adultos, no relacionamento entre si e com as demais pessoas. É uma instância em que se aprende a valorizar a riqueza das raízes culturais próprias das diferentes regiões do País que, juntas, formam a Nação.

Cabe, pois, à escola, diante dessa sua natureza, assumir diferentes papéis, no exercício da sua missão essencial, que é a de construir uma cultura de direitos humanos  para preparar cidadãos plenos. A educação destina-se a múltiplos sujeitos e tem como objetivo a troca de saberes, a socialização e o confronto do conhecimento, segundo diferentes abordagens exercidas por pessoas: de diferentes condições físicas, sensoriais, intelectuais e emocionais, classes sociais, crenças, etnias, gêneros, origens, contextos socioculturais, e da cidade, do campo e de aldeias. Por isso, é preciso fazer da escola a instituição acolhedora, inclusiva, pois essa é uma opção “transgressora”, porque rompe com a ilusão da homogeneidade e provoca, quase sempre, uma espécie de crise de identidade institucional.

Esse espaço coletivo chamado escola exerce uma função social onde há lugar para todos numa relação solidária, de cuidado, de trocas, de compartilhamento. É o espaço fundamental voltado à formação plena dos seus estudantes, pois é nela que se desenvolvem suas vivências e aprendizagens, por meio da troca de saberes e experiências, é na escola que se extrai o processo de humanização, fundamental para formação de sujeitos solidários.

Quanto aos documentos legais do processo pedagógico observa-se que não há espaço para o ensino domiciliar e sim para a construção coletiva no espaço escolar da qual se destaca:

  • A Base Nacional Comum Curricular, BNCC, documento normativo, aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define no § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996) e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica.

  • O Referencial Curricular Gaúcho aprovado por meio da Resolução CEEd nº 345, de 19 de dezembro de 2018, que em seu Art. 3º reafirma a obrigatoriedade para todos os estabelecimentos de ensino integrantes do território estadual, seja para os pertencentes ao Sistema Estadual ou Sistemas Municipais, que, por meio de suas entidades representativas – União dos Dirigentes Municipais de Educação do RS( UNDIME/RS) e União dos Conselhos Municipais de Educação do RS (UNCME/RS) aderiram ao processo de construção do RCG, em Regime de Colaboração, para adequação ou elaboração de suas Propostas Pedagógicas/Projetos Político-Pedagógicos e dos currículos das unidades escolares, podendo, no exercício de sua autonomia, adotar formas de organização e progressão que julgarem necessárias, atendidos o Referencial Curricular e as normas estabelecidas pelo respectivo Sistema de de Ensino.

Quanto aos efeitos da eventual aprovação da educação domiciliar nos termos do PL 170/ 2019, sua transformação em lei encerra sérios riscos para os sistemas de ensino do RS dos quais destacamos: a pulverização dos escassos recursos educacionais, a fragmentação do processo educacional, o agravamento do quadro de evasão escolar disfarçada de ensino domiciliar.

O PL 170/2019 atribui aos Conselhos Tutelares (CT) função fiscalizadora na educação domiciliar, mesmo que limitadas às suas competências, agregando tarefa específica ao que dispõe a Lei Federal nº 8.069/1990. Atribui, ainda, à Secretaria Estadual de Educação e às Secretarias Municipais de Educação o dever de fiscalizar as atividades realizadas no âmbito da educação domiciliar, o que obviamente não será feito sem custos extraordinários para tais executivos, pois exige a alocação de recursos humanos e materiais, agravando, ainda mais os já insuficientes orçamentos disponíveis para o atendimento à demanda ordinária das respectivas redes de ensino. Cabe destacar também, as dificuldades no acompanhamento, controle, e a avaliação dessa oferta de ensino para assegurar a qualidade do processo educativo.

Essa incidência direta no orçamento e na estruturação das Secretarias de Educação do  Estado e dos Municípios pode configurar invasão de competência reservada aos Executivos em confronto com a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, artigo 60, inciso II, alínea “d” que reserva como competência privativa do Governador do Estado a “criação, estruturação e atribuições 

das Secretarias e órgãos da administração pública”, e, por simetria, com o artigo 61, parágrafo 1º, inciso II, alínea “b” da Constituição Federal.

A responsabilidade pública pela educação passa pela defesa da escola para todos. A opção de não enviar seus filhos à escola tem como premissa que a família tenha o domínio dos saberes escolares ou condições financeiras para contratar um professor particular que substitua a escola. Boa parcela da população, mesmo sem essas condições intelectuais e econômicas, poderia optar pela educação domiciliar, favorecendo o aumento da evasão escolar e da desigualdade social.

Por fim, é importante fazer referência aos riscos de aprovação da matéria neste momento. Vivemos um período de pandemia mundial determinada pela eclosão da Covid-19 que impôs o fechamento das escolas, como medida de acautelamento e redução do ritmo célere de disseminação do vírus. Esse atendimento domiciliar por meio virtual caracteriza-se, portanto, como medida excepcional determinada exclusivamente por razões de saúde pública. Como tal, essa excepcionalidade se extinguirá no momento da cessação da epidemia, retomando-se o funcionamento das escolas e o atendimento presencial.

Em nada se confunde com a situação suscitada pelo PL 170/ 2019 que pretende instituir, de forma permanente, a educação domiciliar a critério dos pais, desobrigando-os do dever de matricular os filhos na rede escolar, incorrendo em todas as inconformidades e consequências anteriormente apontadas.

Além disso, registre-se, a inoportunidade de aprovação que impede ou restringe o funcionamento regular das instituições públicas, privadas ou comunitárias, especialmente ligadas à educação, demandando concentração de esforços da comunidade escolar, das instituições de ensino e das autoridades educacionais do Estado e do país.

CONCLUSÃO

Face ao exposto, o Conselho Estadual de Educação, por meio de seu Colegiado, nos termos desse parecer manifesta-se contrário à Educação Domiciliar proposta no PL 170/ 2019, que tramita na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul- AL/RS.

Em 11 de setembro de 2020.

Antônio Maria Melgarejo Saldanha - relator

Raul Gomes de Oliveira Filho- relator

Ruben Werner Goldmeyer- relator

Aprovada, por unanimidade, na Sessão Plenária, de 30 de setembro de 2020.

Marcia Adriana de Carvalho

Presidente

 




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