Passar de ano

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Aulas Suspensas

 

Passar de ano

Wojciech Andrzej Kulesza

Em duas ocasiões, ao menos, estudantes no Brasil foram promovidos de ano ou série, independentemente do seu desempenho escolar. Da primeira vez, como consequência da epidemia de gripe espanhola que assolou o país a partir de setembro de 1918. Por meio do decreto nº 3603 de 11 de dezembro daquele ano, o governo federal decidiu “passar de ano” todos os alunos matriculados em escolas sob sua jurisdição. Isso incluía as escolas superiores, inclusive as militares, o Colégio Pedro II e os estabelecimentos a ele equiparados. Ou seja, todo o ensino superior e secundário. Para não haver dúvida sobre a irrelevância do aproveitamento escolar como critério de promoção, o decreto considerava “inexistentes quaisquer exames prestados de outubro em diante até esta data”. Face ao complexo sistema de ingresso no ensino superior então vigente, com a exigência de exames de preparatórios e vestibulares, o decreto detalhou minuciosamente todos os casos possíveis para que a medida contemplasse o máximo número de estudantes. Mesmo para aqueles que não quisessem gozar das promoções previstas na lei, foram criadas duas épocas de exames, uma em dezembro e outra em abril de 1919, satisfazendo assim todos os alunos.

As elites tratam bem seus filhos que não podem “perder um ano” por causa de uma gripezinha. A legislação, que tão precisamente garantia a seletividade do ensino, precisava ser cumprida, tanto é que o decreto alertava que os alunos beneficiados pela lei não ficariam isentos do pagamento das taxas dos exames correspondentes, fazendo assim parecer que eles tivessem sido efetivamente realizados. Pagou, passou e, no caso dos concluintes, certificado ou diploma na mão para consumar o processo de reprodução social. Doze anos depois, no decurso da “revolução de 30”, esse mecanismo de aprovação incondicional seria novamente utilizado. Para não prejudicar os jovens “tenentes”, civis e militares, que se engajaram no movimento que levou Getúlio Vargas ao poder, o governo provisório baixou o decreto nº 19 404 de 14 de novembro de 1930 promovendo automaticamente os estudantes brasileiros naquele ano.

Tal como em 1918, o decreto de Getúlio contemplava todo o ensino secundário e superior, que continuavam sob controle do governo federal. Entretanto, teve de levar em conta as mudanças feitas pela revisão constitucional de 1926, passo importante para a transformação do ensino secundário num curso seriado regular. Assim, somente seriam promovidos os estudantes que comprovassem haver frequentado mais de metade das aulas dadas em cada cadeira. Outra consequência dessa revisão foi a de que os alunos do ensino secundário teriam que ter obtido uma média anual de no mínimo 3,5 pontos, introduzindo-se pela primeira vez o aproveitamento do aluno como condição para a promoção. Abrandando um pouco essa exigência, o decreto estabeleceu que no período que perdurou o movimento revolucionário, de 3 de outubro a 14 de novembro, seriam atribuídas a cada aluno a melhor média mensal e frequência integral. Os vários artigos do decreto orientando como deveriam ser obtidos e apresentados os dados sobre o aproveitamento e frequência dos alunos de uma maneira confiável, são reveladores das condições precárias em que se encontrava a contabilidade escolar naquele período. Afinal, frequência e aproveitamento não eram essenciais na vida escolar. O que interessava mesmo era “passar de ano”.

Outra diferença importante em relação a 1918 é que não havia alternativa, pois somente poderiam se submeter a exames naquele ano os estudantes que não satisfizessem as condições estabelecidas pelo decreto para ter jus à aprovação automática. O caráter autoritário desse instrumento jurídico, antecipando os rumos que iria tomar o governo nos anos seguintes, traria graves consequências para a então Universidade de Minas Gerais. Criada em 1927, a universidade prezava sua autonomia, recém reconhecida pelo governo federal no início de 1930. Apenas poucos dias após a publicação do decreto, em 18 de novembro, o reitor convocou o Conselho Universitário para que se decidisse qual atitude tomar em relação ao decreto. A maioria dos alunos, ouvindo de alguns professores o absurdo da medida, que já havia sido criticada em 1918 na então Faculdade de Medicina, acorreu à reunião para apoiar o cumprimento do decreto.

Como relata Pedro Nava em suas memórias, muitos desses estudantes haviam participado em Minas dos batalhões patrióticos em prol de Getúlio e, apesar da orientação para que se desmobilizassem e se desarmassem, não o fizeram, mantendo assim disponível para si os armamentos. No decorrer da reunião, ao ver que o Conselho Universitário poderia recusar a promoção automática, os estudantes partiram para impor a sua posição pela força. Como resultado, a reunião se transformou numa praça de guerra, com troca de tiros, agressões e violência generalizada. Terminadas as escaramuças, várias horas depois, encontravam-se alunos e professores feridos e, infelizmente, um estudante de medicina mortalmente atingido por arma de fogo, enlutando Belo Horizonte. O reitor foi imediatamente afastado de suas funções e, poucos dias depois, a autonomia da universidade seria anulada pelo governo federal, trazendo dias tristes e tensos para a comunidade universitária.

Vê-se assim como é forte a reação quando surge algo que possa dificultar, ou mesmo retardar, o acesso das elites à educação. Em tempos recentes, durante os movimentos grevistas que paralisaram as aulas nas escolas, às vezes durante meses, o movimento docente sempre teve que lidar com a oposição de estudantes, principalmente concluintes, que deploravam o atraso na conclusão do curso que as greves causavam. O problema para eles não estava nos eventuais prejuízos em sua formação, mas sim a demora na obtenção dos diplomas. Embora até se cogitasse, não se reeditaram decretos semelhantes aos de 1918 e 1930 porque os grevistas sempre se posicionaram a favor da reposição das aulas, estratégia fundamental para que não houvesse a supressão dos salários enquanto durasse a paralisação. Como essas greves ocorriam majoritariamente nas escolas públicas, foram propagandeadas pelo setor privado para desqualificá-las e assim favorecer o ensino pago.

O fechamento das escolas em função da pandemia provocada pelo novo coronavírus, que já suspendeu as aulas do primeiro semestre deste ano, recoloca a questão do que fazer com o ano letivo devido a essa ausência prolongada das aulas. Com certeza, e até de modo mais virulento, será adotada pelo atual governo a solução de manter a qualquer custo o calendário escolar, independentemente do prejuízo na formação dos alunos e reforçar a seletividade do ensino superior freando a sua democratização. A tentativa frustrada de manter a data de realização do ENEM em 2020 já sinalizava essa tendência, numa clara intenção de prejudicar os estudantes das escolas públicas. A medida provisória nº 934, ora em discussão no Congresso Nacional, ao dispensar as escolas da educação básica da obrigatoriedade de observância ao mínimo de dias de efetivo trabalho escolar estabelecido na LDB e abreviar em 25% a duração dos cursos superiores da área da saúde, também aponta na mesma direção. A atual indefinição a respeito do titular do Ministério da Educação, só serve para obscurecer a política muito bem definida pelo governo de garantir e ampliar os privilégios educacionais das elites.


Imagem de destaque: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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