Paulo Freire, 100
Paulo Freire, 100: Em busca de outra autoridade pedagógica
No centenário do educador brasileiro, um convite para repensar o papel do mestre. Em vez de lógicas disciplinantes, uma educação libertadora requer também outra gramática de poder, que promova o diálogo e a construção coletiva
Escrever sobre o centenário de Paulo Freire, considerando minha formação em Pedagogia e meu envolvimento com as questões educacionais, apresentou-se para mim nas últimas semanas como uma tarefa inadiável. Freire ocupa um espaço fundamental em nossas prateleiras; não somente pela difusão internacional de seu pensamento, mas também pela necessidade de produzir conhecimento em Educação colocando-o em nosso horizonte de reflexões. Justapondo-se ao seu pensamento, refutando suas hipóteses ou reelaborando seu repertório de indagações, as últimas gerações de educadores precisaram colocar o pensamento freiriano em permanente reflexão. Há que se reconhecer também – e isto ainda é um aspecto bem significativo – o quanto suas obras são recorrentemente mencionadas e cada vez menos estudadas. Ou ainda, como destacou o professor Flávio Brayner, no campo educacional construímos certo culto à personalidade do mestre, acompanhado de uma gradativa institucionalização de sua obra.
Reconheço a crítica realizada pelo professor Brayner e tais argumentos servirão de balizas intelectuais para a reflexão que farei neste texto. Isto é, sob o ethos do pensamento freiriano, evitarei uma posição de fidelidade para colocar em debate um aspecto que considero central nas obras do pedagogo brasileiro, qual seja: o redimensionamento da autoridade educativa. Certamente podemos ingressar no grande conjunto de suas obras por caminhos variados, considerando o alargado percurso de estudos elaborado por Freire e seus comentadores. Escolho examinar – e defender – uma concepção de autoridade que se deriva do repertório de estudos freirianos e que, contemporaneamente, ainda nos permite caracterizar um modo de relação pedagógica em nosso país.
A publicação da Pedagogia do Oprimido, no contexto das tensões políticas experienciadas na América Latina na década de 1960, atribuiu visibilidade para questões que respondiam aos desafios educativos de nosso continente. A crítica da educação bancária – centrada no professor e em sua necessidade de transmitir conteúdos – bem como o advento de uma educação problematizadora – baseada no diálogo, na inconclusão dos seres humanos e nos temas geradores derivados de sua condição existencial – renovaram a pedagogia latino-americana. O contexto das lutas democráticas, as demandas pelo enfrentamento das desigualdades e a difusão da teologia da libertação serviam de contexto para a emergência de um novo léxico para delinear a formação humana.
Alvo de inúmeras controvérsias, a relação educando-educador proposta na obra de Freire ainda é o tema que mais me instiga a considerar em minhas elaborações educativas. “Ninguém educa ninguém”, “o diálogo começa na busca do conteúdo programático” ou “os homens se libertam em comunhão” são expressões que – ainda que muito repetidas (a ponto de quase se tornarem clichês, como lembra Brayner) – recolocam em debate a temática da autoridade daquele que educa. Teria Freire abdicado da defesa do ensino e do lugar do mestre? Teria Freire fabricado um educador com vocação política e pouco compromisso com a qualidade do ensino? Sua pedagogia foi incapaz de tornar-se efetiva, ficando circunscrita a modelos alternativos e pedagogias populares? Irei responder de forma negativa a todas essas indagações, uma vez que Freire – com uma perspectiva humanista – permite-nos recolocar em debate a controversa questão da autoridade.
Richard Sennett na obra Autoridade, publicada originalmente no ano de 1980, auxilia-nos a pensar sobre os laços afetivos das sociedades modernas. Tais laços afetivos têm consequências políticas e a autoridade é uma dessas expressões emocionais do poder. Considerando a ambiguidade destes laços, bem como a dimensão contextual referente aos modos pelos quais cada sociedade constrói seus vínculos, vamos reconhecendo que a partir das mutações culturais da década de 1960 somos desafiados a pensar sobre a autoridade. No contexto pós-guerra e das variadas ditaduras que ocorreram no século XX, importante destacar que se consolidou uma espécie de medo ou negação da autoridade.
As imagens modernas acerca do exercício da autoridade supõem o uso da força, a capacidade de guiar os outros, os modos de disciplinar ou a capacidade superior de julgamento, como bem descreveu Richard Sennett. A autoridade, enfim, remete-se a uma força sólida, um refúgio para nossa proteção ou um guia que nos coloque no melhor caminho. Mais que um mero exercício de poder, a autoridade é um processo de tradução social (e subjetiva) das práticas de governo. Podemos aderir ou rejeitar, obedecer ou transgredir, defender ou substituir tais práticas, como é de nosso conhecimento. Importante destacar que todas essas características ou dimensões poderiam ser atribuídas ao professor, pelo menos em sua forma engendrada na Modernidade.
Com a consolidação dos regimes democráticos, no final do século XX, a questão da autoridade é retomada; desta vez buscando sinalizar para o seu reconhecimento na vida pública. Relendo alguns clássicos do pensamento social, Sennett defenderá na obra mencionada que as figuras públicas da autoridade precisam ser legíveis e visíveis. Isto é, “os cidadãos devem ler juntos, devem observar a situação da sociedade e discuti-la entre si”. Neste momento, julgo oportuno voltar a Freire e reconhecer a potencialidade política de sua definição da autoridade pedagógica, uma definição enraizada nas lutas educativas de nosso continente.
“Ninguém educa ninguém” pode ser interpretada como um ideal democrático da escola brasileira, na medida em que nossos modos de autoridade sejam legíveis e visíveis. Com Freire encontramos uma redefinição do papel do mestre e não o seu esmaecimento como sinalizam alguns filósofos contemporâneos. Nas palavras do pedagogo, “educador e educando (liderança e massas), co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento”. Sem vincular-me ao culto à personalidade – aspecto destacado por Brayner que procurei evitar – reconheço que os escritos freirianos trouxeram importantes contribuições para um redimensionamento da autoridade pedagógica. A busca por construir uma escola democrática, capaz de enfrentar as condições desiguais da América Latina, continua sendo nosso desafio e para isso Freire seguirá sendo um interlocutor fundamental. Acompanhados da potencialidade de seu pensamento, ainda precisamos reinscrever a aprendizagem para nossas crianças e jovens em uma gramática mais aberta e plural.
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Referências:
BRAYNER, Flávio. Para além da educação popular. Campinas: Mercado de Letras, 2018.
SENNETT, Richard. Autoridade. 2a ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.
SILVA, Roberto Rafael Dias da. Sennett & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
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Para ler o mundo: 12 documentários e entrevistas com Paulo Freire
Referência mundial nos estudos da educação, Paulo Freire revolucionou o modo de ensinar; confira nossa seleção de vídeos para conhecer o Patrono da educação brasileira
Na janela de comemorações do centenário de Paulo Freire, reunimos uma série de vídeos com entrevistas e documentários para conhecer a vida e obra do patrono da educação brasileira.
Confira!
Entrevistas
Rádio e TV Unicamp (1985)
Entrevista para a Rádio e TV Unicamp, universidade onde Freire atuou como professor da Faculdade de Educação durante 10 anos, de 1981 a 1991, junto ao hoje denominado Departamento de Ciências Sociais na Educação (Decise), ministrando as disciplinas de Educação e Movimentos Sociais.
Serginho Groisman (1989)
Entrevista para o programa “Matéria Prima”, da TV Cultura. O educador conta sobre seu exílio fora do país, responde perguntas e dialoga com jovens e fala sobre o exílio e seu trabalho, convicções e ideais.
Bate-papo com Lula (1989)
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva entrevista Paulo Freire em sua campanha para a presidência no ano de 1989. O conteúdo foi recuperado pela TV dos Trabalhadores.
Paulo Freire e Seymour Papert – TV PUC/USP (1995)
Diálogo antológico com o matemático e educador, Seymour Papert, estadunidense nascido na África do Sul.
Entrevista a Ubiratan D´Ambrosio (1996)
Clássica entrevista de Paulo Freire a Ubiratan D´Ambrosio e Maria do Carmo Domite, provocando reflexões entre a educação matemática e suas relações com a pedagogia freireana.
A última entrevista – TV PUC/SP (1997)
Vídeo com a última entrevista de Paulo Freire, exibida em 17 de abril de 1997, concedida à jornalista Luciana Burlamaqui, da TV PUC-SP, em sua casa no Alto Sumaré, em São Paulo. Na ocasião o educador escrevia “Cartas Pedagógicas”, o qual viria a ser editado como “Pedagogia da Indignação”.
Documentários
De Pé no Chão se Aprende a Ler (1961)
(Documentário, 15min. 44seg, direção Heinz Forthmann)
Documentário sobre a campanha “De Pé no Chão se Aprender a Ler”, implantada em Natal/RN na década de 60 sob orientação da teoria freireana, com foco na implantação do ensino primário em bairros pobres, em escolas de chão batido e cobertas de palha. Valorizou as festas, músicas e danças populares e instalou bibliotecas populares, praças de cultura, museus de arte popular.
As 40 Horas de Angicos (1963)
(Documentário, 11min, Produção do Serviço Cooperativo de Educação do Rio Grande do Norte, Roteiro Luiz Lobo)
O curta-metragem retrata aquele que foi um dos mais emblemáticos exemplos de aplicação da teoria e práxis freireanas, quando o educador alfabetizou 300 camponeses em 40 horas em Angicos/RN. O sucesso da experiência e a vitalidade dos movimentos sociais no período provocou a escalada do sistema em todo o país.
Paulo Freire – Contemporâneo (2006)
(Documentário, Brasil, 2006, 52 min, direção Toni Venturi)
O filme atualiza Freire, mostrando as experiências educacionais atuais inspiradas em seus ensinamentos e abordando os efeitos inclusivos de seu método de alfabetização.
Biografia de Paulo Freire (2013)
(Documentário, 24 min, direção: André Henrique Figueiredo)
A produção conta com depoimentos de familiares, amigos e colegas de trabalho, além de cenas de arquivo do educador.
Paulo Freire: Um homem do mundo (2021)
(Série, Brasil, direção: Cristiano Burlan)
Série documental em cinco episódios sobre o pensador brasileiro. Os capítulos abordam desde a formação do pensamento até o exílio do educador.
Realidade Brasileira: Episódio – Pensando com Paulo Freire
(Série, 51 min, direção Tania Quaresma)
O programa Realidade Brasileira consiste na apresentação de uma série de documentários sobre os grandes pensadores brasileiros, já mortos, que marcaram o século XX. O projeto é uma parceria da TV E-Paraná com a Escola Nacional Florestan Fernandes e a Fundação Darcy Ribeiro, com apoio do Ministério da Cultura.
Com informações:
MST
Acervo Paulo Freire