PEC 32: Uma análise crítica

PEC 32: Uma análise crítica


A PEC 32 da Reforma Administrativa: Uma análise crítica

JOSÉ LUIS OREIRO - HELDER LARA FERREIRA-FILHO

 

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise crítica da proposta de reforma administrativa apresentada pela PEC 32/2020. Como iremos argumentar, a proposta não resolve nenhuma das distorções que se dispõe a eliminar, enfraquece o poder de intervenção do Estado Brasileiro sobre o sistema econômico, diminui a autonomia dos servidores públicos e desestimula a contratação de funcionários públicos qualificados e motivados, tendo como provável consequência a redução da oferta e da qualidade dos serviços públicos. Dessa forma, o resultado da reforma administrativa é o enfraquecimento do Estado do Bem-Estar Social no Brasil.

INTRODUÇÃO

Entre 1945 e 1975 as economias capitalistas desenvolvidas experimentaram o maior período de crescimento econômico em toda a história. Mas os “anos gloriosos” do capitalismo chegaram ao fim na segunda metade dos anos 1970 devido a uma queda generalizada da taxa de lucro que derrubou o ritmo de acumulação de capital (Bresser-Pereira, 2017, p. 149; Marglin, 1989, p. 17). Esse evento permitiu o surgimento do neoliberalismo, o qual declarou o fim dos Estados-Nação e exaltava o mercado como um mecanismo automático de coordenação entre os agentes econômicos.

A ascensão do neoliberalismo foi seguida por movimentos de reforma administrativa nos Estados Unidos e no Reino Unido, as quais acabaram se espalhando para outros países, também o Brasil. As reformas administrativas dos anos 1980 e 1990 foram inspiradas pela New Public Management (NPM). Segundo Kline e Aristigueta (2017, p. 4), o princípio básico da NPM é que o governo deve adotar uma abordagem do setor privado para a entrega de serviços públicos.

Em 2020, o Ministério da Economia encaminhou uma nova proposta de reforma administrativa na forma da Proposta de Emenda Constitucional 32. Essa proposta parte do pressuposto de que existiria uma série de distorções na administração pública que aumentariam o gasto com os salários e benefícios dos servidores públicos a patamares elevados como proporção do PIB.

Isso posto, o presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da PEC 32/2020. A proposta não resolve nenhuma das distorções que se dispõe a eliminar, enfraquece o poder de intervenção do Estado Brasileiro sobre o sistema econômico, diminui a autonomia dos servidores públicos, e desestimula a contratação de funcionários públicos qualificados e motivados, tendo como provável consequência a redução da oferta e da qualidade dos serviços públicos. Dessa forma, o resultado da reforma administrativa seria, no mínimo, o enfraquecimento do Estado do Bem-Estar Social no Brasil.

O presente artigo está dividido em cinco seções, incluindo a introdução e a conclusão. Na segunda seção faremos um histórico das reformas administrativas realizadas no Brasil, mostrando que tais reformas tiveram como norte a crescente profissionalização do serviço público no Brasil. Na terceira seção faremos uma exposição do conteúdo da PEC 32/2020, frisando seus aspectos problemáticos. Na quarta seção realizaremos uma análise mais aprofundada dos pressupostos da PEC 32/2020, mostrando a inexistência das distorções que a fundamentariam. A quinta seção faz um resumo das conclusões obtidas ao longo do artigo.

AS SUCESSIVAS REFORMAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL: UMA BREVE RETROSPECTIVA

A primeira reforma administrativa realizada no Brasil moderno se deu na década de 1930 sob o governo de Getulio Vargas. Durante seu governo, foi criado o DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), tendo sido instituído o concurso público e treinamento dos servidores, ou seja, a assim chamada reforma burocrática do Estado (Ribeiro et al., 2013). Nessa ocasião foi implantado no Brasil o modelo burocrático de Estado, inspirado em Max Weber, no qual a administração pública passava a ser racionalizada, buscando a eficiência através da profissionalização, formalismo, impessoalidade e hierarquia funcional.

A segunda grande reforma administrativa foi realizada durante o governo militar (1964-1985). O Estado buscou expandir o escopo de sua intervenção no sistema econômico e na vida social, além de descentralizar as atividades do setor público por intermédio da criação de órgãos de administração indireta. Essa reforma administrativa foi realizada por intermédio do Decreto-Lei nº 200/1967. Ainda durante o governo militar foi criado o Programa Nacional de Desburocratização (1979), cujo objetivo era eliminar a burocracia desnecessária que impedia que os cidadãos pudessem fazer uso dos serviços públicos.

A terceira reforma administrativa ocorreu com a promulgação da Constituição de 1988, que buscou frear as práticas do patrimonialismo, implementando instrumentos que reforçavam a descentralização da ação do governo (Ibid., p. 5). A profissionalização do serviço público previsto pela Constituição veio acompanhada com alguns excessos no corporativismo estatal. Com isso, foram criadas “falsas isonomias como incorporações absurdas de gratificações e benefícios; estabeleceu-se um modelo de previdência que era inviável pelo ponto de vista atuarial e injusta pela ótica social” (Ribeiro et al., 2013, p. 5).

A sensação de pouca redução do patrimonialismo na administração pública conjugada com a necessidade de se dar uma resposta à crítica neoliberal ao Estado do Bem-Estar Social deu origem à quarta reforma administrativa, ou seja, a Reforma Gerencial do Estado Brasileiro a partir de 1995 (Bresser-Pereira, 2017 pp. 151--152). O objetivo da reforma gerencial de 1995 não era criar um Estado Mínimo ou enfraquecer a burocracia pública, mas aumentar a profissionalização da administração pública por intermédio da fixação de metas e pela descentralização da execução das políticas nas mãos de gestores públicos competentes (Ibid., p. 152). Essa reforma começa a ser implementada em 1995 por intermédio da criação do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), sob o comando de Luiz Carlos Bresser-Pereira.

A Reforma Gerencial do Estado Brasileiro foi inspirada nos princípios da NPM (Matias-Pereira, 2008, p. 75). Assim, o MARE elaborou em 1995 o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), o qual estabeleceu quatro setores dentro do Estado Brasileiro, a saber: o núcleo estratégico, as atividades exclusivas, os serviços não exclusivos e a produção de bens e serviços para o mercado.

Nesse contexto, o cerne da reforma administrativa proposta pelo MARE se referia ao desenho institucional do Estado Brasileiro em busca da eficiência da administração pública e da qualidade dos serviços públicos. Para atingir eficiência e qualidade o Estado deveria, de um lado, repassar para a iniciativa privada o que esta pode executar sobre o seu controle; de outro, o Estado deveria descentralizar a execução de seus serviços que não envolvessem o exercício do poder do Estado para o setor.

Em 1999 o MARE é extinto e suas funções são absorvidas pela Secretaria de Gestão (SEGES) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG). A transferência de funções do MARE para a SEGES teve por efeito focar a atenção do governo no ajuste fiscal - notadamente a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal -, ao invés do necessário redesenho institucional do Estado Brasileiro. Nos anos 2000 ocorreu a tentativa de democratizar a gestão pública por intermédio da introdução de uma Reforma Societal da Administração Pública, entendida como a integração da administração e a política por intermédio da participação popular nos processos de administração pública (Ribeiro et al., 2013, p. 9). Essa nova proposta de reforma administrativa está apoiada na New Public Governance.

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 criou fortes expectativas de criação e consolidação de mecanismos institucionais de participação social junto ao Estado e maior democratização das estruturas políticas. No entanto, em seus dois mandatos continuou reproduzindo as práticas gerencialistas da reforma de 1995 (Ribeiro et al., 2013, p. 9).

A partir das sucessivas reformas administrativas do Estado Brasileiro, não há dúvida de que o Brasil avançou muito no sentido de ter uma burocracia pública consolidada, mas, como ressalta Matias-Pereira (2008, p. 76), ainda subsiste no Brasil um Estado Patrimonialista, o qual se manifesta no clientelismo, no corporativismo, no fisiologismo e na corrupção. Essas reformas não se mostraram capazes de resolver plenamente a crise da burocracia brasileira. Uma reforma administrativa qualificada poderia endereçar essas questões, deixando de ter como foco principal os possíveis ganhos fiscais decorrentes da redução dos benefícios pagos aos servidores públicos. A experiência internacional mostra que os ganhos fiscais advindos das reformas administrativas tendem a ser desprezíveis, e que o ajuste fiscal, quando necessário, é realizado por intermédio de aumento da carga tributária e/ou redução dos gastos extra-salário, além da aceleração do crescimento econômico (Randma-Liiv. e Kickert, 2016Dybczak e García-Escribano, 2019).

A REFORMA ADMINISTRATIVA APRESENTADA (PEC 32/2020)

O governo, recentemente, apresentou documento com alterações ao texto constitucional em PEC, sendo que as principais serão apresentadas e analisadas nesta seção. Cabe ressaltar que a avaliação de desempenho2 é uma repetição de disposição da Emenda Constitucional (EC) 19/98 (art. 41, § 4º, III), e outros pontos da PEC (e fora dela, não obstante, relevantes, como projeto de lei PL 6726/2016 sobre o limite remuneratório e pagamentos além do teto constitucional) poderiam ser legislados de maneira infraconstitucional.

O Art. 37, inciso II, acerca da investidura em cargo público, diferencia cargos com vínculos por prazo indeterminado e cargos típicos de Estado. Ainda, acrescenta, além de provas ou provas e títulos, as seguintes etapas: cumprimento de período de um ou dois anos de vínculo de experiência com desempenho satisfatório, para cada tipo de cargo, respectivamente; e a classificação final dentro do quantitativo previsto no edital do concurso público ao final desse período de experiência.

Esse é um dos pontos baixos da proposta. Primeiramente, divide o funcionalismo em dois níveis, criando uma espécie de segunda classe de servidores. Em segundo lugar, futuramente, por lei, seriam regulamentadas quais as carreiras típicas de Estado e as carreiras com prazo indeterminado, o que faz com que a aprovação desta PEC seja um salvo-conduto para que algo essencial seja definido, a posteriori, de forma mais facilitada.

Em terceiro lugar, a alteração no acesso ao cargo público é igualmente prejudicial, e também seria regulamentada posteriormente à PEC. Com isso, não é razoável supor que muitas pessoas continuarão tentando ingressar no serviço público, dando maior competitividade e qualidade aos pleitos, com a possibilidade de que mesmo desempenhando bem seu papel durante os dois anos de experiência ainda possam ser dispensados, talvez até de forma injusta, por diferenças na subjetividade, no alinhamento ideológico e na severidade da avaliação das chefias.

Além disso, a situação de um servidor em experiência é curiosa, sendo que ainda não assumiu o cargo, não podendo, em tese, desempenhar as atividades legalmente atribuídas ao cargo. Como será avaliado? Isso para não citar o fato de que, como somente parte será efetivada, haverá margem de pressão sobre esses pretendentes a servidores, ampliando a possibilidade de corrupção e desvios do interesse público.

No inciso V retira-se a diferenciação entre FCPE e Direção e Assessoramento Superiores (DAS), sendo que os primeiros seriam funções exercidas apenas por servidores efetivos, enquanto os segundos seriam preenchidos por servidores efetivos pelo menos em percentuais mínimos previstos em lei. Esse ponto, apesar de vago, dá a entender que não mais haveria uma cota de cargos destinados a apenas servidores públicos e tampouco os limites mínimos de DAS para o corpo funcional. Ao contrário, seriam transformados apenas em “cargos de liderança” que poderiam ser ocupados por qualquer pessoa que passasse por um processo seletivo - que também seria regulamentado posteriormente. Isso vai de encontro ao que estava sendo tentado anteriormente, ou seja, profissionalizar o serviço público, retirar o componente político de indicação ou de processos seletivos enviesados, e criar incentivos para que os próprios servidores se qualificassem e se engajassem para assumir cargos de gestão estratégicos de forma isenta e servindo ao Estado, e não a cada governo3.

Ademais, as carreiras com poder de polícia, como da fiscalização ambiental, agrária, trabalhista ou tributária, ou mesmo carreiras que conduzem a política fiscal e monetária, dentre outras, demandam um corpo especializado, exclusivo e independente. Segue-se que essas atividades de alta relevância seriam incompatíveis com a admissão de uma maioria de pessoas estranhas a essas carreiras para dirigi-las, pois poderão ser constrangidas ou mesmo utilizadas para benefício próprio. Este último ponto é extremamente importante, uma vez que haveria maior rotatividade dentro desses cargos de liderança. Com isso, haveria uma maior possibilidade de que profissionais utilizassem esses cargos para obter informações privilegiadas para alavancar suas carreiras no setor privado - inclusive a partir de ganhos de curto prazo em detrimento do longo prazo4.

Cabe ressaltar que, no Brasil, há, segundo o Ministério da Economia (2020), mais de 31.900 pessoas em posições comissionadas no Poder Executivo (entre cargos e funções), sendo que pelo menos 3,5 mil são indicações do chefe do Executivo, podendo ser preenchidos por profissionais sem concurso público. Enquanto isso, nos Estados Unidos, o número de livre nomeação do presidente é cerca de metade do número brasileiro, com 1.714 (USG, 2016). Nota-se, ainda, que desde 2017 tem havido um movimento de redução de cargos de menor porte, por exemplo, DAS 1 e 2, com expansão de cargos de mais elevados, como DAS 4 e 5. Assim, trata-se de uma estratégia para reduzir o número de funções no total - o que soa bem para o público geral -, mas que, na prática, não tem efeito fiscal. Além disso, como funções de menor porte normalmente são ocupadas por servidores, estes estão perdendo seus cargos e dando lugar a profissionais do setor privado em cargos superiores e com remuneração mais elevada.

No inciso XVIB autoriza-se a acumulação de cargos públicos para servidores não ocupantes de cargos típicos de Estado. Essa inserção deve estar relacionada às outras PECs (como redução da carga horária com redução de vencimentos, ou mesmo com a ideia do governo de reduzir a folha de pagamentos dos servidores no médio prazo) como forma de compensação à perda salarial. O oposto seria mais coerente, restringindo as possibilidades de acumulação, especialmente com atividades no setor privado, que podem criar conflitos de interesse. Ainda, o texto não cria regra de transição para os que possuam alguma atividade na iniciativa privada. Logo, os atuais ocupantes de cargos típicos de Estado deverão imediatamente após a aprovação da PEC 32, se não alterada, optar entre a atividade privada ou o cargo público.

Insere-se o inciso XXIII com a eliminação de uma série de benefícios aferidos por parte dos servidores públicos, como: “a) férias, incluído o período de recesso, em período superior a trinta dias pelo período aquisitivo de um ano; e) redução de jornada sem a correspondente redução de remuneração, exceto se decorrente de limitação de saúde, conforme previsto em lei; h) progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço; j) a incorporação, total ou parcial, da remuneração de cargo em comissão, função de confiança ou cargo de liderança e assessoramento ao cargo efetivo ou emprego permanente”, dentre outros. Destaca-se a alínea e), mas não seria vedada a redução de jornada com a correspondente redução de remuneração. Excetuando-se este ponto que poderia prejudicar a prestação de serviços de maneira qualificada, todos os outros itens são razoáveis e, inclusive, já se aplicam na maior parte do nível (Executivo) federal, apesar de existirem em grande parte em nível estadual e municipal, sendo saudável tal alteração. Entretanto, são práticas de muitos membros do judiciário (magistratura e membros do Ministério Público) que não serão afetados por essa reforma proposta.

Na sequência, no § 8º, temos um ponto que torna a administração do gasto com pessoal menos transparente, ao se admitir contratação por meio de processo seletivo simplificado e ser considerado custeio. Não se diz como seria esse processo simplificado, implicando ingerência política ainda maior, e tampouco deveria ser considerado custeio na ótica da contabilidade pública.

O Art. 39 é alterado, sendo que originalmente a política de administração e remuneração de pessoal era integrada por servidores designados pelos respectivos Poderes e previa alguma relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos. Também se acrescenta o Art. 39-A, assim, extingue-se o Regime Jurídico Único, sendo possíveis novas formas de ingresso no setor público, com distintas regras. Como comentado anteriormente, aprova-se uma medida que terá de ser regulamentada posteriormente por lei complementar sem prévio conhecimento dos dispositivos colocados como modo de seleção e tampouco sobre quais seriam as carreiras típicas de Estado, e também todos os pontos da gestão remuneratória e das políticas de progressão/promoção. Os servidores, notadamente os que estiverem em “experiência”, aqueles com vínculo por prazo determinado e indeterminado, serão mais suscetíveis a pedidos de seus superiores por notas técnicas, pareceres, etc., que lhes sejam favoráveis. Se tais práticas já ocorrem ocasionalmente com a estabilidade, com essa reforma o cenário tende a piorar.

No Art. 41 a estabilidade do servidor era garantida após três anos de exercício com desempenho satisfatório. Agora, novamente se realça a estabilidade para cargos típicos de Estado; e o servidor poderá perder o cargo por decisão proferida por órgão judicial colegiado, não mais apenas se transitada em julgado. Weber (1920 [2014]) já salientava que o Estado moderno se encontra nas mãos do funcionalismo, mas que devem ser separados por alta impessoalidade. Para que a lei seja aplicada a todos e para que os servidores possam exercer suas funções com independência, a estabilidade é necessária - também para permitir denúncias de algo fora da legalidade. Somente assim o servidor é de Estado, e não de eventual governo, se tornando um servidor público, e não um servidor político. A possibilidade de benefícios da experiência e das inovações de pessoas indicadas do setor privado já existe e são aquelas denominadas cargos de confiança - por indicação -, além da possibilidade da contratação de consultorias privadas. Com essa pluralidade, há um sistema que se balanceia entre o servidor público especializado, técnico e mais restrito e aquele funcionário que propõe mudanças e inovações incrementais para que não haja descontinuidades e grandes modificações de governo a governo, o que se traduz em serviços públicos estáveis. Por isso, propostas como do relaxamento da estabilidade pode nos fazer retroceder ao século XIX, quando ainda prevalecia o “Spoils System”, ou “Patronage System”, na política estadunidense.

Ainda, a experiência internacional mostra que tampouco houve uma tendência de redução da estabilidade entre os países após a crise de 2008 (OCDE, 2016). Por exemplo, Brierley (2020) indica que os políticos devem muitas vezes cooptar os burocratas para que haja corrupção. O autor, usando dados de uma pesquisa com burocratas de governos locais em 80 governos locais selecionados aleatoriamente em Gana, verifica associação positiva entre discricionariedade política (inclusive através de ferramentas de supervisão de funcionários públicos) e propensão de burocratas a se envolver em corrupção.

No Art. 48 retira-se a atribuição do Congresso Nacional sobre a criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública. Além disso, modifica o inciso X, dando maior poder à Presidência na definição de seus Ministérios, outras instituições, cargos, etc., à exceção das carreiras típicas de Estado. Cabe ressaltar que isso provavelmente leva em consideração que essas instituições façam parte da equipe de trabalho do Presidente e que poderiam ser moldadas de forma mais flexível para atender cada perfil. No entanto, isso esbarra na ideia de continuidade do Estado. Ou seja, cada Ministério ou instituição ganham maturidade e conhecimento tácito ao longo do tempo. Com isso, há inovações incrementais que se somam e aperfeiçoam as atividades de Estado. Portanto, esses órgãos não são de governo, mas de Estado, e não deveriam ser modificados com tanta frequência e sem o devido cuidado, com possibilidade de descontinuidade de serviços, de estatísticas relevantes, de programas e políticas públicas essenciais.

No Art. 88 modifica-se a redação, retirando a possibilidade de aumentar o número de Ministérios, se o Presidente em questão assim o desejasse. No Art. 173 se acrescenta um ponto com a finalidade de reduzir a possibilidade de intervenção estatal. Com isso, muitas políticas industriais estariam impossibilitadas constitucionalmente de serem idealizadas e colocadas em prática.

Em resumo, a PEC 32 pretende fazer as seguintes alterações: (i) criar novos vínculos e meios de acesso ao serviço público; (ii) facilitar a entrada de pessoas do setor privado em cargos de liderança; (iii) retirar direitos constitucionais dos servidores públicos; (iv) modificar a gestão de pessoal, carreiras, política remuneratória; (v) flexibilizar ou eliminar a estabilidade do servidor público; (vi) elevar o poder do Presidente da República na definição da organização de cargos públicos e suas atribuições; (vii) reduzir a capacidade de atuação e intervenção estatal; (viii) reduzir do Legislativo prerrogativas de decidir sobre os aspectos da administração pública; (ix) reduzir graus de liberdade dos chefes de executivo dos Estados e Municípios da função de gerir a administração pública sob sua responsabilidade.

REFORMA ADMINISTRATIVA: APROFUNDANDO A ANÁLISE

A proposta do governo federal sugere aumentar a qualidade do serviço público brasileiro, auxiliar no ajuste e no equilíbrio fiscal e reduzir as desigualdades entre o setor público e o privado. Sobre o primeiro ponto, sem análise mais detalhada, trata, em termos generalizados, todos os servidores e serviços públicos como de baixa qualidade. Isso pode ser algo que encontra respaldo no senso comum. Na exposição de motivos da Reforma Administrativa (através da Mensagem nº 504), temos: “Apesar de contar com uma força de trabalho profissional e altamente qualificada, a percepção do cidadão, corroborada por indicadores diversos, é a de que o Estado custa muito, mas entrega pouco”. E ainda: “É necessário evitar um duplo colapso: na prestação de serviços e no orçamento público”.

Entretanto, afirmações como essas não encontram base nos dados. De fato, o Brasil tem serviços públicos de menor qualidade que outros países mais desenvolvidos. No entanto, isso não se explica somente por demérito ou por falta de uma gestão qualificada no serviço público, mas justamente pelo fato de que o Brasil ainda é um país de renda média-baixa. Com uma renda per capita em torno de 15 mil dólares e na 87ª posição entre países (Banco Mundial, 2019), o país simplesmente não dispõe de todos os recursos necessários a serem investidos para ter serviços públicos comparáveis a países como Suíça, Noruega, Estados Unidos, Dinamarca, dentre outros. Apesar de ser possível o contínuo incremento da gestão do recurso público, a elevação dos gastos e investimentos públicos é imprescindível para obtermos níveis similares de qualidade dos serviços públicos dos países ricos (Paliova et al.., 2019). Adicionalmente, algumas estatísticas acerca da qualidade dos servidores públicos também não sustentam essa narrativa apresentada pelo governo e pela mídia.

Figura 1:
Índice da Administração Pública Profissional5, 2019

 

Como pode ser verificado pela Figura 1, com base num índice relativo ao grau de profissionalismo do serviço público, o Brasil se encontra no grupo dos países com Administração Pública mais profissional, à frente de países como Itália, Grécia, China, Chile, Turquia, África do Sul, Croácia, Uruguai, dentre outros.

Além disso, numa comparação dentro da América Latina quanto a questões de correição dos servidores públicos, o Brasil se situa entre os que menos há ocorrência de qualquer tipo de suborno na prestação de algum serviço público (Global Corruption Barometer, 2020). No Brasil, 11% das pessoas que tiveram contato com servidores públicos reportaram que eventualmente, ao longo da vida, tiveram que pagar algum suborno para que ocorresse determinado serviço público, contra uma média da região latino-americana de 21%.

É importante salientar, também, que a proposta de reforma administrativa do governo parte do pressuposto de que a produtividade no serviço público decorre exclusivamente do servidor, ignorando que a produtividade é impactada igual ou de maneira mais relevante pela gestão. Por exemplo, o comprometimento com a função social do trabalho tem sido apontado como grande fator na motivação no serviço público - Public Service Motivation (PSM) -, algo como uma motivação intrínseca (Belrhiti et al.., 2019Homberg et al.., 2015). Além disso, recompensas verbais parecem ser mais significativas do que materiais para motivação (Andersen et al.., 2017). Ou seja, nada mais contraproducente para a motivação no serviço público, em busca por eficiência, do que pronunciamentos desqualificando os servidores públicos.

No mesmo sentido de diferenciação do setor público do setor privado, pagamento por desempenho tem efeitos modestos no primeiro6 (Weibel et al.., 2009). Ainda, de forma majoritária, pagamentos por desempenho não promovem maior motivação; apenas quando são percebidos como “justos” nesse tipo de pagamento, sendo transparentes7 (Wenzel et al.., 2017).

No Ministério do Meio Ambiente, no Ibama ou na Funai, onde os funcionários têm potencialmente identificação com a causa ambiental ou indígena, por exemplo, terem seu trabalho tolhido pelos gestores causam frustrações motivacionais e afetam a performance, uma vez que para servidores públicos, em sua maioria, sentirem que estão contribuindo para a sociedade cumprindo seu papel é o mais motivador (Van Loon et al.., 2016). Dessa forma, não são incentivos puramente financeiros que darão necessariamente motivação aos empregados no setor público, diferentemente da lógica do setor privado (Perry et al.., 2010) - a qual nem sempre pode ser replicada no setor público sem as devidas considerações e ajustes, não somente neste caso.

O segundo ponto levantado pelo governo parece ser o objetivo principal da reforma administrativa enviada. Sempre se lembra que os gastos com o funcionalismo público são a segunda maior rubrica das despesas primárias, atrás das despesas previdenciárias, e isso justificaria um ajuste nesses gastos que supostamente teriam contribuído para o desajuste das contas públicas. Como comentado anteriormente, a lógica de se manter a austeridade fiscal com o hiato do produto altamente negativo não parece ser razoável. Em segundo lugar, desconsidera-se que não há serviço público sem servidores públicos, e alguns desses serviços são altamente intensivos em trabalho. Em terceiro lugar, embora na exposição de motivos da PEC 32 se afirme que não haveria impacto orçamentário da proposta, posteriormente o Governo estimou a redução de R$ 300 bilhões de despesas em dez anos - embora não tenha sido demonstrado. Ademais, com o objetivo único de cortar despesas, não se observam evidências de avaliação positiva de certos serviços, órgãos ou programas públicos. Por exemplo, se cogitou recentemente a extinção do Farmácia Popular, enquanto sua aplicação não só beneficiou o bem-estar da população, como gerou economias diretas em possíveis internações no sistema público de saúde decorrentes de doenças crônicas que justificam o programa (De Almeida et al.., 2018).

Ainda assim, o foco fiscal da reforma administrativa parte do pressuposto de que se gasta demais com servidores públicos no Brasil, por termos mais funcionários relativamente a outros países e/ou por sua remuneração ser mais elevada. Será essa a realidade? Inicialmente, veremos a questão da quantidade de empregados no setor público em comparação a outros países.

Figura 2:
Emprego do setor público como proporção do emprego total, 2019

 

Como se verifica pela Figura 2, o Brasil possui cerca de 12,3% de empregados públicos em relação ao total de empregos do país. Logo, não se constata que o país se encontre fora da curva nesse quesito e tampouco esteja entre os mais países com maior proporção de empregados públicos.

 

Figura 3:
Despesas com servidores públicos do Governo Central (% do PIB), 2018

 

Por meio da Figura 3 vê-se que o Brasil possui uma despesa com pessoal do Governo Central de cerca de 4,26%, em 2018, sob a metodologia do FMI (2001) 8. Com isso, o país também não se encontra no grupo com maiores despesas com pessoal do Governo Central.

Outro ponto a se observar, na Figura 4, é que as despesas com pessoal no Governo Central flutuaram em torno de 3,8% a 4,4% do PIB entre 2010 e 2019, sendo que na média esse valor é de 4,1% do PIB. Em 2019 essa despesa foi de 4,31%, sendo que, se consideramos o hiato do produto fechado, o valor seria exatamente de 4,1% do PIB9, praticamente a média do período. Ainda, considerando apenas o pessoal ativo, seria 2,29% do PIB. Portanto, pode-se verificar que esses gastos não se encontram em trajetória explosiva. Cabe salientar, no entanto, algumas disparidades entre Poderes. Por exemplo, as despesas com militares subiram entre 2013 e 2019 de 0,92% do PIB para 1,12% do PIB e possuem uma característica peculiar: gasta-se mais com inativos (e pensões), com 0,71% do PIB, do que com ativos, em 0,41% do PIB em 2019.

 

Figura 4:
Despesas com servidores públicos do Governo Central do Brasil (% do PIB), 2010-2019

 

Além disso, dos servidores ativos, temos 367.527 militares e 764.293 civis (1.131.820 no total), no Poder Executivo, de acordo com o Portal da Transparência, e representam 2,29% do PIB em despesas. Enquanto isso, o Poder Judiciário como um todo (e não somente o Federal) possui 286.266 servidores (e magistrados) ativos (CNJ, 2020), ao custo de 1,3% do PIB em 2014 (Da Ros, 2015) - em 2019, esse valor já era de 1,5% do PIB (Fabrini, 2020). Ou seja, com um quantitativo de servidores de cerca de 25%, o Poder Judiciário custa cerca de 65% das despesas com os ativos federais do Executivo. Outro dado que apresenta essa desigualdade10 é o salário médio dos servidores de cada um dos três poderes. No Executivo, o salário médio é de R$ 3,9 mil, equivalente a 65% do salário médio de R$ 6 mil de um funcionário do Legislativo, que por sua vez é metade do salário médio de R$ 12 mil do Judiciário (Lopez e Guedes, 2020).

Entretanto, para afirmar que a remuneração dos servidores seria inadequada no geral, o Governo Federal se baseia num estudo (Banco Mundial, 2017). Aparentemente, por meio da decomposição de Oaxaca-Blinder11, os autores afirmam que “controlando a educação, a idade, a experiência, a localização, a cor e o gênero, [...] há um prêmio salarial significativo no setor público (17%, em média). No entanto, o prêmio é muito mais alto na esfera federal (67%) do que na estadual (31%). No caso de servidores municipais, não há prêmio salarial” (Banco Mundial, 2017). Na sequência, são selecionadas poucas carreiras para exemplificar a diferença salarial em cada uma delas relativamente ao setor privado12.

Sobre o estudo, em primeiro lugar, não fica claro qual grupo de carreiras do setor público foi escolhido como amostra que foi expandida para todo o serviço público. Se foram selecionadas todas as carreiras como média, como parece ser o caso, desde aquelas estratégicas até as mais simplificadas, para o setor privado exclui as remunerações mais relevantes como de membros de diretoria e de conselhos das empresas, uma vez que, em geral, são tratados como Pessoa Jurídica (PJ) e esses ganhos não são computados nas remunerações. E isso se agrava caso fosse feita uma análise com remuneração líquida de tributos, uma vez que distorções no Brasil fazem com que PJs paguem menos tributos do que aqueles empregados de Pessoa Física (PF).

Em segundo lugar, não fica claro se foi considerado o nível de escolaridade em educação por anos de estudo. No documento, somente há a referência comparativa sobre o nível superior e o nível médio - ou seja, não há referência à pós-graduação, ainda que, do total de servidores, 7% têm mestrado e 9,8% têm doutorado (Ministério da Economia, 2020), enquanto na população brasileira em geral apenas 0,8% possuem mestrado e 0,2% possuem doutorado, entre 25 e 64 anos - contra uma média de 13% e 1,1% da OCDE (OCDE, 2020). Ademais, comparações com países avançados acerca do prêmio salarial são mais complexas, uma vez que estes tendem a ter um menor diferencial de capacitação entre os setores público e privado do que o caso brasileiro (Jaloretto e Ohana, 2020). Ainda na questão da educação, não parece ter havido diferenciação entre a qualidade da instituição que a pessoa se graduou.

Em terceiro lugar, a maioria das carreiras de Estado não tem similar no setor privado ou tem atuação em áreas politicamente sensíveis, tais como o Banco Central, diplomacia, auditores, Tesouro Nacional, o que dificulta a comparação. Em quarto lugar, como lembram Jaloretto e Ohana (2020), é possível que um jovem profissional que trabalhe na assessoria econômica de um banco privado possa ter um salário inferior ao de um jovem equivalente que seja concursado no Tribunal de Contas da União. No entanto, a carreira no setor privado pode oferecer a perspectiva de ganhos futuros (muito) superiores aos do setor público.

Em quinto lugar, o estudo foi feito numa época em que a dinâmica do mercado de trabalho privado estava altamente prejudicada (2015-2016), dadas as quedas do PIB de 2015 e de 2016 da ordem de 3,6% e a elevação do desemprego. Em sexto lugar, aparentemente foi utilizada a remuneração final dos servidores para comparar com a média do setor privado, o que também contribui para o prêmio salarial no patamar indicado.

Alternativamente, Garcia-Escribano e Liu (2017) demonstram que há um prêmio salarial de quase 6% nas economias avançadas, enquanto nas economias emergentes esse prêmio salarial chega a cerca de 12% para trabalhadores de perfil similar de habilidades. Isso pode servir como meio de atrair e, mais importante, reter o pessoal mais qualificado. O Brasil se encontra próximo do valor esperado para economias emergentes em termos de prêmio salarial (Garcia-Escribano e Liu, 2017). É importante verificar, também, como se encontra a situação brasileira na comparação de gastos em nível estadual.

Segundo dados do FMI (2020), o Brasil também não está fora da curva em termos de gastos em nível estadual. De fato, esse valor se situava em cerca de 4,8% do PIB em 2018. Assim, vale verificar qual a dinâmica recente dessas despesas.

 

Figura 5:
Despesas com servidores públicos do Governo em nível estadual do Brasil (% do PIB), 2006-2018

 

Como se observa a partir na Figura 5, entre 2006 e 2018 as despesas em nível estadual passaram de 4% para 4,8% do PIB, com média no período de 4,49% do PIB. Considerando o hiato negativo como no caso federal, esse valor para 2018 seria de 4,57% do PIB. Assim, vale averiguar qual o valor das despesas com servidores também em nível local (municipal, no caso brasileiro).

Segundo dados do FMI (2020), tampouco no caso com despesas locais o Brasil se encontra tão fora da curva, com 4,27% do PIB em 2018, ainda mais considerando que o país tem dimensões continentais e, com isso, tem características diferentes de países menores os quais não necessitam de despesas tão descentralizadas.

 

Figura 6:
Despesas com servidores públicos do Governo em nível Municipal do Brasil (% do PIB), 2006-2018

 

Já ao observar a dinâmica dessa despesa ao longo de 2006 e 2018 na Figura 6, verifica-se que passou de 3,18% para 4,28% do PIB. A média no período foi de 3,72%, e mesmo considerando o hiato negativo do PIB, a despesa em nível municipal no Brasil foi de 4%. Logo, percebe-se que enquanto há estabilidade nas despesas federais com pessoal, as despesas estadual e municipal cresceram. De fato, em relação a 2006, cresceram 0,8 p.p. e 1 p.p., respectivamente.

No entanto, cabe ressaltar que dentre os civis do Poder Executivo federal, 66% são do Ministério da Saúde e da Educação (Ministério da Economia, 2020). Nos municípios, 40% correspondem a profissionais da saúde ou da educação, sejam professores, médicos ou enfermeiros; e algo parecido ocorre na esfera estadual, sendo que, se forem adicionados os servidores relacionados à segurança, seriam cerca de 60% dos servidores (Jaloretto e Ohana, 2020). Portanto, grande parte desse avanço nas despesas com pessoal nos estados e municípios foi para aumentar a oferta de serviços de saúde, educação e segurança - demandas da sociedade.

Em suma, a abordagem adotada pelo governo federal parte de premissas equivocadas. Nossos serviços públicos estão em linha com o esperado dado nosso nível de desenvolvimento e possibilidade de investimento. Por outro lado, temos relativamente poucos servidores com grande qualificação relativamente à média geral populacional. E, por mais que sejam difíceis comparações de gastos com pessoal, a depender do tamanho de cada país, da quantidade de níveis federativos e das responsabilidades constitucionais ou legais de cada um em termos de serviços públicos oferecidos, o país não parece estar fora da curva se comparadas as despesas por nível federativo.

Ainda assim, como o foco da reforma parece ser a questão fiscal, a PEC 32 deveria versar sobre a questão da violação do teto remuneratório; as vantagens de juízes e procuradores, como os dois meses de férias por ano (sem contar os períodos de recesso em julho e no final do ano). Outro ponto que em nada a Reforma contribui é para a Gestão de Processos na Administração Pública. Sua implementação poderia reduzir o tempo e os custos de emissão de documentos oficiais (Hesson, 2007Ongaro, 2004).

RESUMO DAS CONCLUSÕES

A PEC 32 deveria ser uma reforma administrativa que alcançasse a gestão de pessoas; a estrutura organizacional; a transparência e controle e a redução do custo administrativo. Ao contrário, parece focar na questão fiscal sem detalhar os problemas verificados na administração pública.

Um dos problemas da reforma é ser vaga, uma vez que deixa para regulamentar o essencial posteriormente - como a definição das carreiras típicas de Estado, os critérios de avaliação de desempenho e as novas formas de acesso ao serviço público. Além dos casos como da política remuneratória e de benefícios percebidos pelos servidores, regras para a ocupação de cargos de liderança e assessoramento, progressão e promoção funcionais que serão tratados por projeto de lei complementar.

Outro ponto crucial é que a reforma proposta deixa de fora as maiores fontes de distorções no serviço público, quais sejam, militares, juízes e membros do Ministério Público e parlamentares. Surgiu um argumento de que seria inconstitucional que o Poder Executivo arbitrasse regras para membros de outros Poderes. No entanto, em 2005, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e declarou a inexistência de qualquer vício formal na proposta apresentada por outros Poderes que não o Judiciário (Turtelli, 2020).

Ainda, a reforma cria novos meios de acesso ao serviço público e tende a reduzir fortemente os cargos em que haverá estabilidade. Já existe a possibilidade de demissão dos servidores, sendo que desde 2003 foram demitidos cerca de 7.766 servidores federais (Cucolo, 2020), sendo 566 em 2018. Esse número não está distante de outros países (dada a quantidade de servidores), como é o caso do Canadá, em que houve uma média de 130 demissões ao ano entre 2005 e 2015 (Thompson, 2018).

A reforma propõe também a criação dos cargos de liderança e assessoramento, algo na linha contrária à feita até hoje, tentando dar estabilidade e incrementar a profissionalização das atividades de Estado. Ainda, o acesso transparente e meritocrático a cargos também faz parte de um bom clima organizacional. Outra questão, a PEC 32 abre possibilidade para acumulação de cargos para carreiras menos prestigiadas, o que aumenta a possibilidade de interferências privadas e conflitos de interesse para esses cargos.

Adicionalmente, há a questão do sequenciamento de reformas. A PEC 32 deixa em segundo plano outras reformas mais relevantes, como a necessária reforma fiscal do país (Ferreira Filho e Oreiro, 2020) e a reforma tributária (Domingues e Cardoso, 2020), que podem auxiliar na retomada do crescimento e na sustentabilidade da dívida pública.

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Os autores agradecem os comentários de Luiz Carlos Bresser-Pereira a uma versão anterior deste artigo, isentando-o de erros e omissões que possam ter permanecido no texto atual.

2 Observe-se que a proposta deixa de exigir Lei Complementar para regulamentar a hipótese de perda do cargo por desempenho insatisfatório do servidor, sendo que atuais servidores estáveis serão avaliados de acordo com regulamentações em lei ordinária simples, modificadas mais facilmente, gerando instabilidade e variações potencialmente grandes a cada governo.

A maior discricionariedade na contratação de pessoal no serviço público está ligada a maiores conexões políticas e, logo, a menor qualificação dos escolhidos (Colonnelli et al.., 2020).

Ver, por exemplo, Bushee (1998) sobre redução investimentos de longo prazo em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) por conta de incentivos de curto prazo para gestores.

“Professional Public Administration: The index measures to what extent the public administration is professional rather than politicized. Higher values indicate a more professionalized public administration” (TEORELL et al.., 2020).

Em primeiro lugar, haveria, no setor público, alta motivação intrínseca, e que poderia se perder com esse tipo de pagamento. Em segundo lugar, os recursos destinados para esse tipo de pagamento são inferiores no caso público relativamente ao privado, não compensando o primeiro efeito. Terceiro, esse formato de pagamento pode reduzir os investimentos na especialização em políticas públicas e, ainda, induzir a seleção de tipos errados de funcionários. Quarto, a dificuldade em quantificar certos parâmetros no setor público pode induzir aos servidores atingirem metas apenas quantificáveis, e não aquelas mais qualitativas exigidas igualmente no setor público - uma avaliação mais qualitativa poderia resolver esse problema, mas criaria outros, como subjetividade. Quinto, recompensas relacionadas ao desempenho podem trazer manipulação política, com incentivos para manipular os critérios de avaliação (WEIBEL et al.., 2009).

O que não é o caso da PEC 32, pois não houve participação dos servidores na definição da nova política remuneratória.

FMI (2001): “Compensation of employees [GFS] is the remuneration, in cash or in kind, payable to an employee in return for work done. In addition to wages and salaries, compensation of employees includes social insurance contributions made by a general government unit on behalf of its employees. Excluded is any compensation of employees related to own-account capital formation.” Não está claro se em todos os países se incluem os inativos (está incluído no Brasil; tampouco se os militares estão incluídos em todos os países, como no dado brasileiro), o que pode interferir na análise.

Considerando um hiato negativo em 5%.

10 Também há discrepância entre os níveis da federação: servidores municipais têm salário médio de R$ 2,9 mil, 57% de R$ 5 mil de um estadual, que por sua vez equivale a 55% do salário médio de R$ 9,2 mil de um federal (Lopez e Guedes, 2020), mas isso é também uma tendência entre outros países com diferentes magnitudes.

11 Ver Oaxaca (1973) e Blinder (1973).

12 Maiores explicações estariam no volume II, no entanto no referido documento somente há análises de atividades setoriais da economia, sem explicações adicionais sobre o exercício do volume I.

 

JEL Classification: H1; H11; H12.

Datas de Publicação

  •  Publicação nesta coleção
    16 Jul 2021
  •  
  •  Data do Fascículo
    2021




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