Pedagogia de guerra

Pedagogia de guerra

A escola cívico-militar e o currículo oculto de uma pedagogia de guerra 

9 de dezembro de 2025

 

Foto: Bruna de Bem/Seduc

Ronaldo Queiroz de Morais (*) 

 

Destituído de ilusão, toda sociedade moderna arrasta algum grau importante de militarização. Afinal, o sonho militar de sociedade anunciado por Michel Foucault é, demasiadamente, moderno. Entretanto, o Brasil constitui-se como sociedade militarizada antes mesmo de tornar-se nação e de efetivar-se como Estado Moderno no sentido weberiano, ou seja, de estabelecer o monopólio da violência a partir de instituições militares realmente militarizadas. A independência brasileira manteve o sistema escravocrata no território nacional e, inexoravelmente, arremeteu a força das armas contra a população escravizada e empobrecida. Nessa perspectiva, é possível discorrer que a história do Brasil independente é a história da incessante descarga de endocolonização junto à população tradicionalmente oprimida. Recorrentemente, é no interior do espaço ocupado por pobres que se efetiva a colonização do próprio território nacional. Dado que a endocolonização impõe o uso da força, a violência das armas se encontra direcionada à população empobrecida. São, amiudadamente, identificados como o problema e o inimigo do desenvolvimento do país.  É o que explica a premissa de poder que paira no imaginário nacional, na qual todo e qualquer problema nacional, principalmente referente aos pobres, deve ser resolvido por meio da militarização. A escola cívico-militar é o recente rebento de uma lógica de poder que atravessa a história do Brasil. Ela carrega um currículo oculto, que se fundamenta graças à presença de uma sociedade fortemente militarizada, que, contagiada pelo fenômeno pânico, confia nos homens de farda a solução de problemas de ordem civil, como se a pátria estivesse permanentemente sob o terror do campo de batalha.

Dezenas de adolescentes reunidos no pátio de uma escola cívico-militar assistem atentamente a uma exposição de militares a respeito do equipamento de guerra utilizado, cotidianamente, para o combate ao crime organizado nas favelas pelo Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (Bope). Em outra escola, também cívico-militar, estudantes como soldados de combate marchavam cantando inapropriadamente canção de guerra, na qual entoavam o seguinte refrão: “entrar na favela e deixar corpo no chão”. Isto é, reproduziam a pedagogia castrense, o currículo oculto que expressa a violência belicosa do Estado aplicada nos espaços inflacionados de desigualdade socioeconômica. São dois acontecimentos seminais como ponto de partida para a crítica política acerca da militarização de território empobrecido, que hoje se estende ao espaço escolar. Há uma pedagogia na escola cívico-militar – abrigada em currículo oculto – que aciona uma tradição política militarizante e, do mesmo modo, impõe mutação na filosofia da educação pública brasileira. A militarização do espaço escolar, nas áreas de “baixo desempenho” cognitivo, consiste tanto na imposição da disciplina de guerra, que dociliza corpos, como na transformação do território pedagógico em campo de combate. Dito instrutivamente, o mesmo território em que, repetidas vezes, se instaura a guerra irregular contra criminosos marginalizados igualmente é objeto de conversão da escola pública em caserna. É o uso abusivo da mão visível que, em tempos de crise societal, impõe a força militar a fim de resolver com a brutalidade simbólica e/ou física, problema que é, essencialmente, socioeconômico. 

Grosso modo, a escola cívico-militar corresponde à articulação entre as secretarias de educação e a de segurança pública. Há um corpo docente responsável pelos componentes curriculares e outro composto por militares da ativa e reserva que atua na parte administrativa e disciplinar. O projeto cívico-militar busca combinar educação civil com princípios de disciplina e hierarquia militar. Já são centenas de escolas cívico-militares espalhadas pelo Brasil. Ele foi previsto para aplicação em áreas de vulnerabilidade social e de baixo desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). O projeto pretende, por intermédio da aplicação de disciplina castrense, educar massas empobrecidas, sem assinalar política de alteração da realidade socioeconômica da comunidade escolar e de investimentos econômicos significativos. Em realidade, resgata a cultura política nacional-conservadora, que grosseiramente considera a militarização da sociedade como panaceia de todos os males do país, sobretudo os males sociais produzidos por uma elite branca que concentra a riqueza brasileira em pequenos grupos familiares. De fato, a solução militar para os problemas nacionais é a postura conservadora de longa duração, que refuta a premissa de que a indisciplina, o insucesso escolar e a violência urbana são o sintoma de uma sociedade profundamente desigual. 

Efetivamente, o resultado do Ideb registra que o sistema público de educação requer melhoria considerável, visto que a rápida universalização de acesso das massas exploradas ao sistema público educacional não foi acompanhada de desenvolvimento socioeconômico nacional. Além disso, as políticas neoliberais de privatização do comum e de austeridade nos gastos públicos contribuíram para a imediata frustração pedagógica. De forma que a realidade infeliz da escola pública, ou melhor, o malogro do ensino é o reflexo das condições miseráveis de brasileiros que vivem precariamente no território periférico das cidades brasileiras. Em síntese, a escola pública, impactada por décadas de baixo investimento e composta por trabalhadores da educação proletarizados com salários aviltantes, de igual modo, reflete a condição miserável que produz indisciplina e baixo desempenho escolar. É nesse contexto de empobrecimento da sociedade civil que brota, rapidamente, como erva daninha, a distopia de mutação da escola pública em uma caserna. 

É a militarização do espaço escolar, que aflora como saída para a indisciplina e os baixos resultados cognitivos, uma vez que problema socioeconômico no Brasil desenverga emprego de Polícia Militar e das Forças Armadas. A principal característica de nossa pátria moderna é o fascismo de cor, conceito potente de Muniz Sodré, que alcança e qualifica a política de opressão sobre a pele negra. Ele atua para afiançar a desigualdade estruturante nacional. O fascismo de cor subtrai da realidade educacional brasileira as raízes econômicas que inviabilizam o tal “sucesso” escolar no território das favelas. Então, contra sujeitos submetidos à barbárie socioeconômica – famílias desestruturadas, monoparentais e de baixíssima renda – institui-se a barbárie do Estado, a força militar com o objetivo de docilizar corpos indisciplinados e empobrecidos. Nesse diapasão, basta abrir os portões da escola aos militares para que os problemas da indisciplina e do desempenho cognitivo sejam dirimidos imediatamente. Eis o currículo oculto desse movimento de extrema-direita que avança contaminando o arranjo democrático da educação pública. 

Em suma, a militarização corresponde à invasão da caserna em território essencialmente de natureza civil. Ao corpo fardado atribuem-se poderes técnicos superiores; como deus ex machina, o militar lança a pedagogia de guerra para restaurar a ordem civil. Trata-se de uma sociedade tomada pela fé e contagiada pelo vírus militar. Assim, mesmo carente de amparo teórico-pedagógico que possa justificar a presença de militares no espaço escolar, a escola cívico-militar progride desembaraçadamente no terreno público, porque segue uma tradição brasileira, a de conferir solução aos problemas civis recorrendo ao emprego da força militar. Evidentemente, do ponto de vista pedagógico, a escola cívico-militar é vazia de proposição transformadora, pois parte de ideia simplista, que infere o baixo desempenho escolar como decorrente da indisciplina dos estudantes e, também, por conferir preconceito de inaptidão acerca da competência dos professores paisanos para conduzir o projeto político-pedagógico na totalidade do espaço escolar.  A escola cívico-militar é, sem dúvida, choque de gestão administrativo-militar, que ameaça desfazer as bases democráticas e pedagógicas da educação pública brasileira. A escola é espaço eminentemente civil, portanto configura território político, no qual a estrutura fardada de poder, baseada em uma pedagogia de guerra, desconfigura completamente o propósito constitucional-democrático da educação brasileira.  

(*) Doutor em História Social na Universidade de São Paulo (USP).

FONTE:

https://sul21.com.br/opiniao/2025/12/a-escola-civico-militar-e-o-curriculo-oculto-de-uma-pedagogia-de-guerra-por-ronaldo-queiroz-de-morais/ 




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