Perfis de bolsonaristas
Pesquisa identifica três perfis de bolsonaristas e revela contradições no eleitorado de Bolsonaro
Estudo com dados do ESEB 2022 mostra que eleitores de Bolsonaro têm valores diversos e nem sempre conservadores – Resenha: “O bolsonarismo como fenômeno de opinião pública”, de João Feres Júnior
Análise empírica questiona a coerência do discurso bolsonarista e revela diversidade entre seus eleitores
O cientista político João Feres Júnior, professor do IESP-UERJ, apresenta em seu artigo publicado na revista Opinião Pública uma abordagem inovadora sobre o bolsonarismo. Longe de tratá-lo como um fenômeno homogêneo ou ideologicamente coerente, Feres Júnior propõe uma interpretação ancorada em dados quantitativos sobre o comportamento político do eleitorado de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022.
Desafiando leituras predominantes
O autor faz uma revisão crítica da literatura sobre o bolsonarismo, dividindo-a em três grandes abordagens: a discursiva, que foca nos discursos de Bolsonaro e seus aliados; a sociológica, centrada em identidades sociais e etnografias; e a de opinião pública, que trata o fenômeno a partir de dados de surveys. Feres Júnior se alinha a esta última, mas vai além dos tradicionais modelos de regressão ao utilizar análise de cluster para identificar padrões de preferência entre os eleitores.
Sua crítica à abordagem discursiva é contundente. Para ele, concentrar-se apenas nos discursos proferidos por Bolsonaro e seus aliados ignora a complexidade da recepção desses discursos pelo eleitorado. A ideia de que o bolsonarismo seria a soma de fatores ideológicos como lavajatismo, neoliberalismo e autoritarismo é considerada excessivamente impressionista. O mesmo vale para abordagens que tratam o bolsonarismo como ideologia coesa ou movimento social homogêneo. Em vez disso, o autor propõe olhar para os dados empíricos e mapear os diferentes perfis de adesão política entre os eleitores que efetivamente votaram em Bolsonaro.
A metodologia: clusterização de dados e opinião política
Baseando-se na base de dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) 2022, o autor analisou respostas de eleitores de Bolsonaro a 13 questões sobre valores e políticas públicas, incluindo temas como maioridade penal, casamento homoafetivo, privatizações, cotas raciais, programas de transferência de renda (Bolsa Família e Auxílio Brasil), militarização das escolas e golpe militar em casos de corrupção. As respostas foram padronizadas para identificar adesões conservadoras (valor 1) ou progressistas (valor 0).
A seguir, a tabela com as variáveis analisadas no estudo, conforme apresentada no artigo original:
Variável | Questão do survey |
---|---|
Maior | O(a) sr(a) é a favor ou contra: A redução da maioridade penal? |
CasG |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: O casamento civil de pessoas do mesmo sexo? |
AdoG |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: A adoção de criança por um casal gay? |
PenM |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: A pena de morte? |
DesD |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: A descriminalização do uso de drogas, ou seja, que o uso de drogas deixe de ser considerado crime? |
Arma |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: A proibição de venda de armas de fogo? |
Abor |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: A legalização do aborto? |
PAbo |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: A prisão de mulheres que interrompam a gravidez? |
Cota |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: Adoção de cotas raciais? |
Deus |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: Que as escolas públicas ensinem as crianças a rezar e a acreditar em Deus? |
Priva |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: Privatizações no setor público? |
Bolsa |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: O Programa Bolsa Família? |
AuxB |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: O Programa Auxílio Brasil? |
Milt |
O(a) sr(a) é a favor ou contra: A militarização das escolas públicas? |
RegEv |
Qual a religião do(a) sr(a)? |
GolpC |
Algumas pessoas dizem que em certas circunstâncias se justificaria que os militares tomassem o poder através de um golpe de estado. |
A escolha metodológica recaiu sobre o método PAM (Partitioning Around Medoids), aplicado com a distância de Gower para tratar variáveis categóricas e binárias. O procedimento revelou três clusters principais entre os eleitores de Bolsonaro que votaram nele no primeiro turno da eleição presidencial de 2022. Esse recorte evita incluir eleitores que, por razões de rejeição ao PT ou a Lula, tenham aderido a Bolsonaro apenas no segundo turno. O foco está, portanto, na base mais sólida e voluntária de apoio ao ex-presidente.
Três perfis principais de bolsonaristas
A análise identificou três grupos distintos de eleitores bolsonaristas, com características ideológicas, morais e sociais bastante diferenciadas.
1. O bolsonarista liberal antipetista
Este é o grupo mais coeso e, ao mesmo tempo, o mais surpreendente. Representa cerca de um terço da base bolsonarista no primeiro turno de 2022. Seus membros rejeitam majoritariamente as pautas conservadoras: apenas 12% são contra o casamento homoafetivo, e 9% contra a adoção por casais do mesmo sexo. Também são amplamente contrários à pena de morte, ao militarismo e ao golpe militar. Apenas 15% se declaram evangélicos, muito abaixo da média nacional.
No campo econômico, esse grupo também se mostra progressista: rejeita privatizações e apoia os programas de transferência de renda. Apesar disso, votaram em Bolsonaro. A explicação mais plausível apontada por Feres Júnior é o antipetismo: um voto motivado menos por identificação com o candidato e mais por rejeição ao Partido dos Trabalhadores e à figura de Lula. Esse dado indica que o bolsonarismo pode incluir eleitores avessos ao conservadorismo, mas mobilizados por ressentimentos políticos acumulados desde a Operação Lava Jato.
2. O bolsonarista lei e ordem
Composto por pouco mais de um terço dos eleitores bolsonaristas, esse cluster tem adesão expressiva ao discurso punitivista e militarista. É o grupo que mais apoia a pena de morte (69%) e a militarização das escolas (82%). Quase três em cada quatro entrevistados (75%) consideram justificável um golpe militar diante de casos de corrupção. No entanto, esse grupo também revela uma faceta contraditória: 65% apoiam cotas raciais e cerca de 20% são favoráveis ao Bolsa Família e ao Auxílio Brasil. Isso sugere uma distinção entre o conservadorismo nos costumes e a aceitação de políticas sociais.
A posição intermediária quanto às privatizações (44% favoráveis) reforça esse perfil híbrido. Não há um alinhamento automático com o neoliberalismo, o que contraria a tese de que o bolsonarismo seria um bloco unívoco em defesa do Estado mínimo. Quanto à religião, esse grupo tem proporção de evangélicos semelhante à média da amostra (18%), o que indica que o discurso religioso tem menos peso aqui do que no próximo perfil.
3. O bolsonarista ultraconservador evangélico
Representando cerca de um terço da base analisada, este é o grupo mais alinhado ao que muitos identificam como o “bolsonarismo raiz”. Fortemente moralista, 89% são contrários ao casamento gay e 81% à adoção por casais do mesmo sexo. Também lideram no apoio à prisão de mulheres que abortam (62%) e rejeitam as cotas raciais (59%). Embora compartilhem do militarismo e do autoritarismo do grupo anterior (74% apoiam golpes militares), se distinguem por sua adesão massiva a valores morais cristãos e por sua identidade religiosa: 63% se declaram evangélicos, praticamente o dobro da média nacional.
Apesar do conservadorismo, também são favoráveis a políticas de transferência de renda. Cerca de 20% aprovam o Bolsa Família e o Auxílio Brasil. Esse dado revela que a pauta moral pode conviver com demandas sociais, indicando que o eleitorado evangélico conservador não é homogêneo economicamente.
Resultados que questionam clichês
O principal mérito do artigo de Feres Júnior é desmistificar a ideia de um eleitorado bolsonarista unificado. A diversidade entre os três perfis evidencia que a base de apoio ao ex-presidente é composta por grupos com valores muitas vezes conflitantes entre si. Enquanto um grupo é progressista nos costumes, outro é ultraconservador. Enquanto um grupo apoia medidas autoritárias, outro é claramente contrário a elas.
Essa constatação tem implicações importantes. Primeiro, mostra que o bolsonarismo não pode ser entendido apenas como uma ideologia coerente, mas sim como uma coalizão de interesses e ressentimentos diversos. Segundo, evidencia que há espaço para que discursos distintos concorram dentro do mesmo campo político.
Além disso, os dados colocam em xeque a ideia de que o bolsonarismo é essencialmente neoliberal. A rejeição majoritária às privatizações e o apoio consistente a programas sociais como o Bolsa Família entre os eleitores de Bolsonaro indicam um público menos alinhado com o liberalismo econômico do que se supõe.
Outro ponto importante é o papel do antipetismo como motor eleitoral. Ele se mostra capaz de mobilizar até mesmo eleitores progressistas, que rejeitam pautas caras ao bolsonarismo, mas votam em Bolsonaro como forma de barrar o retorno do PT ao poder. Essa dimensão emocional do voto, marcada por rejeições mais do que por adesões, é central para compreender a dinâmica política recente no Brasil.
Contribuição metodológica e política
Feres Júnior propõe uma mudança de foco: em vez de tentar definir o bolsonarismo a partir do discurso de seus líderes, devemos analisar a recepção dessas ideias pelo eleitorado. Isso evita o erro comum de assumir que o discurso produz efeitos automáticos, como se os eleitores fossem apenas receptores passivos.
Ao privilegiar a opinião do eleitor comum, o artigo oferece uma leitura mais precisa e empiricamente fundamentada do fenômeno. Rejeita abordagens impressionistas e defende a necessidade de dados sistemáticos para compreender a opinião pública. A análise de cluster se revela uma ferramenta eficaz para captar nuances que as abordagens tradicionais ignoram.
Uma agenda de pesquisa promissora
O estudo abre caminhos para investigações futuras. Sugerem-se aprofundamentos sobre o papel das igrejas evangélicas, a interação entre discurso e recepção, e o peso do antipetismo na formação de preferências eleitorais. Além disso, reforça a importância de olhar para o comportamento político como algo complexo, que não pode ser reduzido a rótulos ideológicos simples.
Também seria pertinente investigar a mobilidade entre clusters ao longo do tempo, especialmente diante de mudanças no cenário político. Como se comportariam os eleitores do cluster liberal antipetista diante da ausência de Bolsonaro como opção eleitoral? E os evangélicos ultraconservadores manteriam sua adesão à extrema-direita em um cenário de reconfiguração partidária?
Essas questões reforçam a relevância de estudar a opinião pública não como um bloco estático, mas como um campo dinâmico, no qual emoções, identidades e interesses econômicos se entrelaçam de forma muitas vezes imprevisível.
Para acessar a íntegra do artigo original, clique aqui: “O bolsonarismo como fenômeno de opinião pública“.
Ilustração da capa: Manifestação bolsonarista – Ilustração gerada por IA ChatGPT
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