Pessoas que leem livros

Pessoas que leem livros

Sabia que eles não gostam de pessoas que leem livros?

Paulo José Cunha

04.09.2024

 Sabia que eles não gostam de pessoas que leem livros? - Congresso em Foco

Foto: Freepik

 

“A coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha, graças a Deus”.

Ganha um picolé quem lembrar de onde foi extraído o trecho acima, citado outro dia pelo professor e escritor José de Nicola durante o programa “Feito em casa”, programa ótimo, por sinal, dirigido e apresentado pelo também professor e escritor Cineas Santos, na TV Assembleia do Piauí.

Não lembrou? Pois perdeu o picolé. O trecho foi extraído de Farenheit 451, novela distópica de autoria de Ray Bradbury, no qual brigadistas de um governo autoritário queimam livros, considerados objetos subversivos. E as pessoas são obrigadas a saber do mundo exclusivamente por telões instalados em casas cujos alpendres foram demolidos para evitar que os moradores interagissem e refletissem sobre o que estava acontecendo. O livro foi publicado há sete décadas, mas o trecho lá de cima parece que foi escrito… ontem! Farenheit 451 (temperatura em que o papel entra em combustão) pode nos ajudar a entender um pouco do alarido em torno do banimento da plataforma “X”, do bilionário Elon Musk, pela Justiça brasileira. Bem como a crescente e assustadora alienação da sociedade pelo consumo desenfreado de informações fragmentadas, contidas nas plataformas da internet, que vem resultando na supressão da chamada “leitura profunda” com suas perigosas consequências.

A sociedade atual, sujeitada aos ditames da tecnologia, vem se superficializando, se alienando e se tornando presa fácil para qualquer aventureiro de viés fascista. Como ressalta bem o jornalista Severino Francisco, no Correio Braziliense, “com sua cumplicidade e omissão criminosas, as big techs contribuíram, decisivamente, para a derrocada das democracias e para a ascensão de tiranetes em vários pontos do mundo, por meio de uma política sistemática de propagação de notícias fraudulentas”. O pensamento crítico vem sistematicamente sendo contido. Sem “leitura profunda” do mundo e das reflexões feitas a partir dela, isto que chamamos de civilização vai por água abaixo.

Desde quando a queima de livros pode ser uma ação civilizatória? E a indução ao consumo de informação fragmentada e rasteira pode igualmente ser uma característica de civilização? E o predomínio da tecnologia sobre o humanismo pode ser caracterizado como indício de civilização?

O romance de Bradbury bem poderia ser classificado de ficção científica se não exibisse, lá bem antes da invasão planetária pela internet e suas plataformas, os riscos a que está exposta uma sociedade onde, sub-repticiamente, vem sendo suprimido o direito de pensar, refletir, questionar. Nada contra os benefícios da tecnologia, muito antes pelo contrário. Mas o que falta é, no mínimo, uma regulação da responsabilidade das plataformas digitais para o controle da difusão de informações que podem se tornar altamente perigosas e inflamáveis. Como, por exemplo, as fake news. E com a dosagem, pelas organizações educacionais – a partir, é claro, da conscientização das famílias – da carga de exposição às telas a que a sociedade como um todo, principalmente as crianças, vem sendo submetida. Pois já restou provado que o excesso de telas é prejudicial até ao equilíbrio psicológico dos usuários.

A questão que se coloca acima das posições favoráveis e contrárias à decisão de Xandão é: o que a tecnologia pode fazer para, ao contrário do que hoje ocorre, proporcionar condições à sociedade para discutir, confrontar, refletir, discordar e, sobretudo pensar sobre a realidade? A distopia de Bradbury dá a pista para a forma como agem os autocratas nos regimes autoritários. Pois a queima de livros já existiu, de fato, na Alemanha nazista. E até aqui mesmo, no Brasil, durante a ditadura militar. Porque os tiranos não gostam que as pessoas pensem. E livros fazem as pessoas pensarem.

Os ditadores não querem que as pessoas pensem porque se tornam questionadoras e colocam em risco seus projetos autoritários.

Será que plataformas como o “X” são apenas ingênuos espaços de difusão e troca de informações? Os que, até de boa-fé, criticam a decisão de Xandão, alegam que ele suprimiu um espaço democrático de comunicação e por isso o acusam de praticar censura. Mas a verdade é outra. O objetivo de plataformas como o ”X” é, pura e simplesmente, a monetização a partir do acesso dos usuários. Por isso Musk é… bilionário! E para ganhar mais e mais dinheiro ele se alia ao que há de pior na política mundial, justamente aos governantes que agem em nome da democracia para solapá-la em proveito próprio. É apoiador de Bolsonaro no Brasil. De Milei na Argentina. E de Trump nos Estados Unidos, para ficar em três exemplos. A ideologia de Musk responde pelo simples e direto nome de… DINHEIRO! A qualquer custo. Por meios lícitos ou criminosos.

Ao se recusar a respeitar a legislação brasileira, mostrou abertamente a forma como encara os direitos dos povos residentes nos países onde sua plataforma opera. Só que nem mesmo sua montanha de dólares é suficiente para eliminar o direito de um povo à sua autonomia. E esse é apenas um aspecto do caráter autoritário e simplista dos que, como ele, comandam as plataformas digitais pelo mundo afora.

Agora, se os que ainda acreditam nos valores da democracia não acordarem e começarem a cobrar de seus governantes ações que propiciem o crescimento do pensamento crítico, do questionamento, da reflexão política e ideológica, da defesa da democracia, aí os donos do dinheiro, com seu viés fascista, vão controlar cada vez mais as mentes dos usuários. Entretidos em frivolidades, os cidadãos se tornam presas fáceis e dóceis. Tal como os governantes lá do livro de Bradbury queriam que as pessoas se tornassem pela ausência do pensamento crítico trazido pela leitura de… livros. Livros! E não apenas de tuítes bobinhos como os do “X” e de seus semelhantes.

FONTE:

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/mundo-cat/sabia-que-eles-nao-gostam-de-pessoas-que-leem-livros/ 




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