Planejamento do sistema educacional

Planejamento do sistema educacional

Em virtude da pandemia é necessário discutir o planejamento do sistema educacional

Parecer do CNE sobre atividades escolares desconsidera as consequências da pandemia e da crise econômica

Por Roberto Leher          04/05/2020

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Créditos da foto: (Shutterstock)

O trabalho persistente, hostil à ciência e à razão crítica, desprovido de ética e de qualquer resquício de humanidade do presidente Bolsonaro – num esforço para apagar a existência de uma pandemia que já atingiu mais de 3,5 milhões de pessoas e ceifou a vida de mais de 246 mil pessoas em todo mundo, alcançando mais de 100 mil casos registrados e mais de 7 mil mortes notificadas (e, seguramente, fortemente subnotificadas) no Brasil[1] – não pode deixar de ser enfrentado pela educação, ciência e saúde pública.

A tentativa de difundir no senso comum a crença de que as escolas e as universidades estão funcionando normalmente, por meio de aulas remotas e educação a distância (EaD), é crucial, decisiva e fulcral para o fim do isolamento social sem preocupação com a vida, como quer o governo Federal. Somente antecipando uma falsa normalidade do sistema educacional será possível pressionar os trabalhadores a retornarem aos seus postos de trabalho, embora o país ainda esteja na parte inferior da curva que anuncia um pico de proporções catastróficas, conformando uma política de morte[2].

Nos países que aparentemente já passaram pelo pior momento da pandemia, o tema da reabertura das escolas ocupa um lugar central na agenda nacional. E os imperativos capitalistas estão em confronto com a ciência e o planejamento da saúde pública. Os proprietários dos meios de produção atuam de modo coordenado objetivando a pronta reabertura das escolas para que a força de trabalho possa estar à disposição do capital. Em editorial, The Economist[3] exorta a pronta volta às aulas, embora sensatamente por etapas, expressando o inconformismo da alta finança diante da decisão de muitos países em adiar a abertura das escolas, exceto as da educação infantil, mas com normas muito restritivas, conforme discutido adiante.

Por isso, o Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre as atividades escolares na pandemia foi aguardado com muita expectativa, pois, em todos os países atingidos pela pandemia, o tema é dos mais complexos por estar indissoluvelmente relacionado com o curso da Covid-19 e com a possibilidade de uma nova onda epidêmica, tudo isso em um contexto de profunda crise econômica que acentua a desigualdade da taxa de letalidade no país.

A leitura do texto é profundamente preocupante. Surpreende que a versão de 29/04/20[4] tenha desconsiderado, de fato, as consequências da pandemia e da deletéria crise econômica para os sistemas educacionais.

Após elencar as medidas legais adotadas pelo governo brasileiro a respeito da emergência sanitária e as proposições do MEC e do próprio CNE, e se reportar a uma pandemia “que não encontra precedentes na história mundial do pós-guerra”, a expectativa, óbvia, era de que o CNE considerasse, de fato, a situação em curso de pandemia na vida real dos quase 60 milhões de estudantes da educação básica, profissional e superior e de seus mais de 2,4 milhões de professores, isso sem contar um importante contingente de profissionais afins.

Entretanto, quando o documento examina a situação dos níveis e modalidades de ensino, a pandemia, quando muito, é um vaporoso pano de fundo para um festival de objetivos, competências, avaliações e do esperado trabalho de apoio pedagógico dos pais, tudo isso impulsionado a partir de ambientes virtuais, mitigados, aqui e ali, por uso de programas televisivos.

Causa perplexidade que o CNE tenha elaborado orientações para que todas as escolas e universidades realizem ensino remoto massivo, ignorando que o país está na fase inicial do arranque do crescimento[5] da mortal pandemia que, infelizmente, irá se agravar muito nas próximas cinco a dez semanas, o que significa, mais infectados e, tragicamente, mais mortos. Estranhamente, o Parecer abstrai os efeitos das interações entre a imensa crise econômica e a pandemia, tema sequer esboçado no Parecer.

Aparentemente, o CNE foi pressionado a elaborar respostas favoráveis às demandas pela volta à normalidade (ecoando o posicionamento do MEC que está empenhado na retomada das aulas remotas para difundir a sensação de normalidade) e às pressões dos grupos econômicos que veem na pandemia uma oportunidade imperdível para os negócios de educação mediada por EaD. A leitura do texto permite concluir que, infelizmente, abriu mão de orientar, de modo rigoroso, as escolas e as universidades nas crises econômica e sanitária que convulsionam a vida de mais de 200 milhões de pessoas.

Nada pode ser pior do que contemplar anseios de aulas remotas pretendidos pelas corporações do setor, a despeito do fato de que estas irão deixar a maioria para trás (Ver documento “Em defesa da educação pública comprometida com a igualdade Social: porque os trabalhadores não devem aceitar o trabalho remoto” do Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação – COLEMARX)[6].

Nada pode ser mais destrutivo para o conjunto da educação pública na próxima década do que um sistema corroído por ainda maior desigualdade educacional. Conforme matéria do WSJ[7], após tentar um massivo programa de educação remota, previsto para alcançar 50 milhões de estudantes, estados como Washington DC e partes da Georgia e Texas resolveram interromper o programa, antecipando o fim do período acadêmico, pois concluíram que nem todos os estudantes possuem acesso adequado à internet e mães e pais com disponibilidade para ajudar seus filhos e que, com esse programa, aumentariam a desigualdade social, elevando, ainda mais, o estresse social. O ministério da Educação da França[8], igualmente, reconhece que a estratégia de aulas remotas acabou deixando um vasto contingente de estudantes para trás. A pergunta dos educadores sintetiza bem o problema: cabe aos professores escolher quem segue adiante e os que ficarão excluídos?

Como o tempo de duração do isolamento social não pode ser determinado, a expectativa era de que o CNE avançasse em definições de políticas públicas que viabilizassem um retorno às aulas virtuoso, visto que, em virtude do negacionismo, o MEC não terá protagonismo na definição de alternativas. Entre as medidas mais urgentes, o CNE poderia avançar em proposições que favorecessem o acesso à internet e aos meios tecnológicos, a exemplo de políticas na Inglaterra, para que as crianças e jovens pudessem ter acesso ao maravilhoso patrimônio constituído pela ciência, pela tecnologia, pela arte e a cultura em todas suas dimensões. Igualmente, seria muito bem-vindas orientações sobre a organização dos acervos e proposições para pensar em meios pedagógicos para favorecer uma apropriação construtiva desse patrimônio pelos estudantes. Existem verbas para isso: o Fundo de Universalização das Telecomunicações arrecada mais de R$ 1 bilhão por ano e já possui perto de R$ 22 bilhões acumulados, existe proposição legislativa e caberia um plano nacional para tal fim no contexto da pandemia[9].

Caberia ao CNE, igualmente, organizar as condições de trabalho dos docentes, visto que milhares que possuem contratos precários estão sendo demitidos. Justamente quando mais necessitaremos de professores qualificados os sistemas estão demitindo muitos milhares. Infelizmente, o problema parece não ter sensibilizado o CNE.

Seria muito relevante se o CNE tivesse planificado condições para ampliar a interação entre os trabalhadores da educação do país para que, articulados, pudessem discutir o problema da pandemia no contexto das crises econômica e política; criar canais de diálogo das escolas com as famílias, em suma, medidas que pudessem alcançar os que vivem a educação. Contudo, a linha de trabalho do Parecer foi a de forjar, contra todas as evidências, que as redes podem retomar a (falsa) normalidade.

Ademais, o documento é alheio ao evidente imperativo de suspender o ENEM, hoje um dos principais meios do MEC para forçar a volta “à normalidade”.

Em resumo, além de não prover meios para enfrentar o problema da pandemia em curso, o CNE deixou de planejar o futuro do desconfinamento nas escolas e universidades, o que deixa a educação brasileira em uma situação de grave abandono.

Desconfinamento e educação

Causa inquietação o fato de que o Parecer se abstém de planejar o futuro próximo, deixando as regras de desconfinamento educacional a cargo dos negacionistas. O documento não faz jus ao que se espera do campo da educação ao ignorar a complexidade do que será o processo de desconfinamento social – cuja duração temporal ainda é indeterminada – e suas consequências para as formas de reorganização das escolas e universidades. A partir da análise de protocolos em curso em diversos países, recontextualizando-os em função da realidade brasileira, é possível elencar algumas sínteses que deveriam ser objeto do planejamento do CNE.


1. Sob o ponto de vista sanitário, estabelecer que a reabertura das instituições deverá ser escalonada a partir de massivo e bem elaborado plano de testagem qualitativa, combinando testes moleculares (RT-PCR) e sorológicos certificados de todos os profissionais da educação e por meio de amostras cientificamente planejadas de estudantes, objetivando busca ativa de familiares dos estudantes que testarem positivo. Tais exames e estudos não poderão deixar de considerar aspectos territoriais, visto a expansão desigual da pandemia no país. Sem isso, o pré-requisito para a volta não será assegurado. Mas nada é indicado sobre isso.

2. A exemplo de outros países que já estudam os cenários para a retomada das aulas, discutir o retorno escalonado, um consenso em diferentes países, iniciando com a educação infantil e o primeiro ciclo do ensino fundamental, sempre levando em conta os territórios e a incidência do vírus.

3. Redução do número de estudantes por turma, não ultrapassando 15 estudantes (em sala de 50 m2), número que poderia ser um pouco ampliado caso o distanciamento mínimo de um metro entre os estudantes e, destes, com o profissional da educação, possa ser garantido. Em França, por exemplo, o ministro da Educação Jean Michel Blanquer indicou que inicialmente o número máximo de crianças por turma não poderá ultrapassar uma dezena[10].

4. Como assegurar que as turmas não ultrapassem quinze estudantes?

a) Novas salas de aula serão necessárias emergencialmente, outras tantas deverão passar por reformas.

b) Possível rodízio de dias para a ocupação das salas de aula.

5. Planejar, desde hoje, a realização de numerosos novos contratos de docentes para atender a redução do número de estudantes por turma e para o reforço escolar.

6. Elaborar protocolo sanitário sobre a condição de funcionamento das escolas, em termos de ventilação, funcionamento da rede de água e esgoto, refeitórios que assegurem distanciamento e segurança sanitária, todas essas reformulações irão exigir planejamento e implementação de melhorias emergenciais nas escolas, muitas delas sem condições sanitárias adequadas.

7. Definir que os profissionais possam ter acesso a trajes de proteção e assegurar condições de distanciamento em relação aos estudantes, colegas e familiares que circulam nas escolas.

8. Elaborar protocolos, em conjunto com os sistemas de ensino dos estados, municípios, DF e escolas federais, articulados com os comitês científicos da Covid-19, objetivando elaborar normas para as escolas, desinfecção, atividades não recomendadas, arrumação das salas e das mesas, evitando face-a-face, como fazer a desinfecção, novos pontos para lavar as mãos etc.

9. Constituir comissão técnica, em conjunto com a Comissão de Orçamento da Câmara e do Senado, corpo técnico do INEP, entidades científicas e sindicais da área para levantar o custo geral da adaptação das escolas ao novo quadro advindo da pandemia, objetivando aprovação de lei federal que assegure o repasse imediato de suplementações para que as adequações das escolas e os concursos possam ser prontamente realizados.

O documento deveria conter diretrizes precisas e claras para assegurar que os estudantes, professores e demais profissionais não estarão em perigo e, nunca menos importante, considerar, seriamente, a situação social das famílias.

Neste momento 70 milhões de pessoas, a maioria jovens e, por conseguinte, mães de estudantes, lutam em filas de alto risco para receber o auxílio emergencial de R$ 600,00 que está sendo sistematicamente postergado. As mortes de avolumam nas abarrotadas residências, favelas e bairros populares. O CNE não pode ignorar fatos como os indicados no boletim epidemiológico da prefeitura de São Paulo que comprova que as chances de morte entre pretos é 62% maior do que a dos brancos[11]; no Rio de Janeiro, a taxa de letalidade é de 30,8%, enquanto no Leblon é de 2,4%[12].

A área da educação, por ser um forte contraponto ao negacionismo e, pelos valores democráticos contidos na Constituição de 1988, ao darwinismo social, não pode se furtar de elaborar um plano de ação para o período mais grave da pandemia que se aproxima e, ao mesmo tempo, um plano de retorno compatível com a gravidade da situação em curso.

Em virtude do negacionismo adotado como política pelo governo Federal, urge que os estados da Federação e do Distrito Federal convoquem suas universidades públicas, a Fiocruz, os institutos públicos, as entidades científicas, além das entidades já referidas para que, juntos, essas coordenações estaduais, em conjunto com as secretarias de saúde e afins, trabalhem uma grande planificação baseada na ciência.

Ainda é tempo de reverter o Parecer que, se não reformulado, pode agravar de modo profundo e duradouro o apartheid educacional. É necessário, mais do que em outros contextos, que a educação seja uma área construtiva na busca de alternativas para que o Brasil possa enfrentar a política de morte e segregação em curso no planalto central e nas grandes organizações empresariais que apoiam tais políticas, contra a liberdade, a vida e a humanidade.

Rio de Janeiro, 4 de maio de 2020.

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[1] COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University (JHU), 3/5/2020, https://coronavirus.jhu.edu/map.html

[2] . Roberto Leher. Reabertura das escolas defendida pelo presidente e seu ministro da educação é política de morte. Carta Maior, 22/04/20. https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Reabertura-das-escolas-defendida-pelo-presidente-e-seu-ministro-da-educacao-e-politica-de-morte/4/47256

[3] . The Economist, Covid-19 and the classroom. Open schools first, 2/05/20, p.8.

[4] Conselho Nacional de Educação, Parecer sobre reorganização dos calendários escolares e realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia da covid-19 (Documento em revisão, 29/04/20)

[5] Ver Boletim Epidemiológico 7. Ministério da Saúde (6 abr) indicando que o país está na fase inicial da fase de aceleração da pandemia.

[6] Disponível em: www.colemarx.com.br/colemarx-ead/

[7] TAWNELL D. HOBBS, Schools Decide to End Year Early, Wall Street Journal, 29/04/20, A3.

[8] Mattea Battaglia Un retour a%u000 l’e%u001cole progressif et incertain, Le Monde, 30/04/20, p.6.

[9]Câmara libera recursos para ampliar banda larga nas escolas, R7, 10/12/19, https://noticias.r7.com/educacao/camara-libera-recursos-para-ampliar-banda-larga-nas-escolas-10122019

[10] Mattea Battaglia Un retour a%u000 l’e%u001cole progressif et incertain, Le Monde, 30/04/20, p.6.

[11] Ana Letícia Leão et.al. Abismo social. Covid-19 deixa mais mortos nas periferias. O Globo, 3/05/20, p.4.

[12] Selma Schmidt. Maré de desamparo. Letalidade maior onde saúde falha, O Globo, 3/5/20, p.7.

 

 

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Em-virtude-da-pandemia-e-necessario-discutir-o-planejamento-do-sistema-educacional/54/47389#_ftn6




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