POA nunca foi farroupilha
Porto Alegre nunca foi farroupilha
Tudo começou sem um fim claro.
A revolução dos estancieiros teve início em 20 de setembro de 1835, quando os rebeldes tomaram a capital da província, Porto Alegre. Menos de um ano depois eles a perderiam e, embora a sitiassem demoradamente em outras ocasiões, não mais a retomariam. Porto Alegre se manteve imperial praticamente ao longo de todo o conflito.
Talvez por isso as grandes comemorações dos gaúchos, herdeiros dos farroupilhas, a cada 20 de setembro, na “mui leal e valorosa” Porto Alegre, pareçam fora de lugar, embora as suas ruas abundem em nomes de insurretos rejeitados […]
E é aí que começa uma história mal contada dentro de uma História excessivamente bem contada, uma narrativa tão perfeita a ponto de ligar todos os fios, mesmo os mais contraditórios, numa fábula sem brechas nem falhas.
A mais famosa causa da revolução dos proprietários do Rio Grande, nobres demais para falar em carrapatos, é a disparidade dos impostos cobrados pelo governo imperial ao charque rio-grandense e ao charque uruguaio.
A verdade é que, além dos carrapatos e dos impostos, a principal causa da chamada Revolução Farroupilha foi a independência da Banda Oriental, a Cisplatina, o Uruguai, em 1828. Perdidas as Guerras da Cisplatina, nas quais homens como Bento Gonçalves e Bento Manoel fizeram curso preparatório para a guerra civil que os levaria a entrar definitivamente para a história, os fazendeiros do Rio Grande ficaram sem as pastagens uruguaias.
Boa parte deles possuía terras do outro lado da fronteira. Sendo, porém, outro país, havia que pagar impostos para transitar com o gado.
Sem dúvida, uma complicação desagradável e que lhes parecia artificial e injusta. As pastagens uruguaias eram melhores. Os caudilhos da Banda Oriental sabiam disso e resolveram, a partir de certo momento, levar a cabo uma ideia estapafúrdia: ficar com a terra uruguaia para os uruguaios. Antes disso, alguns brasileiros e uruguaios, entre os quais Bento Gonçalves e Lavellaja, pensaram numa solução diferente: fazer um novo país unindo Rio Grande, Banda Oriental e Entre Rios, província argentina.
Teria sido bem mais prático.
A qualidade dos campos uruguaios era tão superior, segundo Spencer Leitman, que “as estâncias brasileiras na Banda Oriental tinham quase o dobro da capacidade da maioria de suas congêneres no Rio Grande do Sul”.
Ao contrário do mito difundido, “havia um grande número de escravos em quase todas as estâncias”, sendo que no Uruguai havia ainda mais escravos do que no lado brasileiro. A Revolução Farroupilha oporia, ainda conforme o norte-americano Spencer Leitman, os “coronéis da pecuária” às elites “industriais” da Lagoa.
“Estas elites exigiam mais impostos e mais produção provenientes da zona da fronteira. O problema é que os estancieiros não queriam saber de impostos.
Moacyr Flores faz um comentário deveras curioso: “O presidente Antônio Rodrigues Fernandes pretendia criar impostos sobre a propriedade rural, pois não achava justo que grandes latifundiários nada pagassem, enquanto o habitante do núcleo urbano, às vezes, tendo apenas uma casinhola para viver, pertencesse ao único grupo contribuinte de impostos territorial e predial. Os estancieiros protestaram contra a medida, apesar de o imposto ser bastante módico, pois segundo as ideias da época, as taxas só podiam recair na produção, jamais no capital”. A farsa parece que se repete.
Na época da eclosão do movimento farroupilha, a província do Rio Grande tinha 14 municípios. Os estancieiros faziam também o papel de militares. Spencer Leitman, em “Raízes Socioeconômicas da Guerra dos Farrapos”, sugere que os rebeldes criaram pretextos para deflagrar um conflito com o poder central. Depois que Fernandes Braga acusou Bento Gonçalves de conspiração, em 20 de abril de 1835, os deputados, em sua maioria farroupilhas, rejeitaram que houvesse fundamento nessa denúncia. A tomada de Porto Alegre, cinco meses depois, teve por justificativa derrubar um governante que se tornara insuportável. Colocou-se no lugar dele, por coincidência, o quarto vice-presidente, “por ser o que mais pronto estava”, Marciano Ribeiro, justamente o mais identificado com as ideias dos rebeldes. Os três primeiros foram declarados oportunamente doentes.
Tudo começou sem um fim claro.
A revolução dos estancieiros teve início em 20 de setembro de 1835, quando os rebeldes tomaram a capital da província, Porto Alegre. Menos de um ano depois eles a perderiam e, embora a sitiassem demoradamente em outras ocasiões, não mais a retomariam. Porto Alegre se manteve imperial praticamente ao longo de todo o conflito. Talvez por isso as grandes comemorações dos gaúchos, herdeiros dos farroupilhas, a cada 20 de setembro, na mui leal e valorosa Porto Alegre, pareçam fora de lugar, embora as suas ruas abundem em nomes de insurretos rejeitados. Em 1836, os rebeldes perceberam que não iriam muito longe se não engrossassem as suas tropas com a “negrada” que lhes servia de pau para toda obra. E é aí que começa uma história mal contada dentro de uma História excessivamente bem contada, uma narrativa tão perfeita a ponto de ligar todos os fios, mesmo os mais contraditórios, numa fábula sem brechas nem falhas.
A mais famosa causa da revolução dos proprietários do Rio Grande, nobres demais para falar em carrapatos, é a disparidade dos impostos cobrados pelo governo imperial ao charque rio-grandense e ao charque uruguaio. A verdade é que, além dos carrapatos e dos impostos, a principal causa da chamada Revolução Farroupilha foi a independência da Banda Oriental, a Cisplatina, o Uruguai, em 1828. Perdidas as Guerras da Cisplatina, nas quais homens como Bento Gonçalves e Bento Manoel fizeram curso preparatório para a guerra civil que os levaria a entrar definitivamente para a história, os fazendeiros do Rio Grande ficaram sem as pastagens uruguaias. Boa parte deles possuía terras do outro lado da fronteira. Sendo, porém, outro país, havia que pagar impostos para transitar com o gado. Sem dúvida, uma complicação desagradável e que lhes parecia artificial e injusta. As pastagens uruguaias eram melhores. Os caudilhos da Banda Oriental sabiam disso e resolveram, a partir de certo momento, levar a cabo uma ideia estapafúrdia: ficar com a terra uruguaia para os uruguaios. Antes disso, alguns brasileiros e uruguaios, entre os quais Bento Gonçalves e Lavellaja, pensaram numa solução diferente: fazer um novo país unindo Rio Grande, Banda Oriental e Entre Rios, província argentina. Teria sido bem mais prático.
A qualidade dos campos uruguaios era tão superior, segundo Spencer Leitman, que “as estâncias brasileiras na Banda Oriental tinham quase o dobro da capacidade da maioria de suas congêneres no Rio Grande do Sul” (1979, p. 22). Ao contrário do mito difundido, “havia um grande número de escravos em quase todas as estâncias”, sendo que no Uruguai havia ainda mais escravos do que no lado brasileiro. A Revolução Farroupilha oporia, ainda conforme o norte-americano Spencer Leitman, os “coronéis da pecuária” às elites “industriais” da Lagoa. “Estas elites exigiam mais impostos e mais produção provenientes da zona da fronteira” (1979, p. 23). O problema é que os estancieiros não queriam saber de impostos. Moacyr Flores faz um comentário deveras curioso: “O presidente Antônio Rodrigues Fernandes pretendia criar impostos sobre a propriedade rural, pois não achava justo que grandes latifundiários nada pagassem, enquanto o habitante do núcleo urbano, às vezes, tendo apenas uma casinhola para viver, pertencesse ao único grupo contribuinte de impostos territorial e predial. Os estancieiros protestaram contra a medida, apesar de o imposto ser bastante módico, pois segundo as ideias da época, as taxas só podiam recair na produção, jamais no capital” (Flores, 1990, p. 16-17). A farsa parece que se repete.
Na época da eclosão do movimento farroupilha, a província do Rio Grande tinha 14 municípios. Os estancieiros faziam também o papel de militares. Spencer Leitman, em “Raízes Socioeconômicas da Guerra dos Farrapos”, sugere que os rebeldes criaram pretextos para deflagrar um conflito com o poder central. Depois que Fernandes Braga acusou Bento Gonçalves de conspiração, em 20 de abril de 1835, os deputados, em sua maioria farroupilhas, rejeitaram que houvesse fundamento nessa denúncia. A tomada de Porto Alegre, cinco meses depois, teve por justificativa derrubar um governante que se tornara insuportável. Colocou-se no lugar dele, por coincidência, o quarto vice-presidente, “por ser o que mais pronto estava”, Marciano Ribeiro, justamente o mais identificado com as ideias dos rebeldes. Os três primeiros foram declarados oportunamente doentes.
Havia radicais e moderados nas fileiras rebeldes. Estes aceitaram tranquilamente o nome do rio-grandense Araújo Ribeiro para substituir o presidente deposto. Os radicais, ao contrário, separatistas que eram, prepararam-se para vetar a sua posse na Assembleia Legislativa. Embora Bento Gonçalves negasse qualquer inclinação separatista, em proclamações estudadas, a ambiguidade persistia. Os fatos são conhecidos.
Araújo Ribeiro, sem alternativa, tomou posse em Rio Grande, infringindo a lei. O melhor pretexto para negar a aceitação do seu governo surgiu com a ordem de retirar as credenciais do vice-cônsul de Hamburgo, Antônio Gonçalves Duarte, por “haver aconselhado no ‘Recompilador’, aos seus jurisdicionados, que se mantivessem neutros por ocasião da revolução de 20 de setembro”.
Os farroupilhas acharam esse ato descabido e injusto. Esse mesmo Duarte seria responsável por transportar em seu barco Bento Gonçalves em fuga da Bahia. A lógica farroupilha era extraordinária. Haviam subvertido a ordem, mas como se julgavam com razão, toda medida do governo central para debelar o movimento era considerada arbitrária. Queriam um governador da terra.
Foram atendidos. Deram um jeito de recusá-lo. Uma frase, citada por Sá Brito, relatando fato ocorrido na Loja Maçônica Filantropia e Liberdade, resume a situação com uma clareza irônica: “Um indivíduo, sentado em uma cadeira, em atitude arrogante, como se tivesse entre as mãos os destinos do mundo (era o Venerável-Mestre) dizia: ‘Não se há de dar posse ao novo Presidente; a Província não o quer’”.
Bento Gonçalves, em carta de 12 de outubro de 1835 ao regente Francisco de Lima e Silva, exige: “Um governador de nossa confiança, que olhe pelos nossos interesses, pelo nosso progresso, pela nossa dignidade, ou nos separaremos do centro, e, com a espada na mão, saberemos MORRER COM HONRA OU VIVER COM LIBERDADE”.
E ameaça mais uma vez o império com a separação: “Em nome do Rio Grande, como brasileiro, eu lhe digo, Sr. Regente, reflita bem antes de responder, porque da sua resposta depende talvez o sossego do Brasil. Dela resultará a satisfação dos justos desejos de um punhado de brasileiros que defendeu contra a voracidade espanhola uma nesga da Pátria; e dela também poderá resultar uma luta sangrenta, a ruína de uma província ou a formação de um novo Estado dentro do Brasil”.
Bento Gonçalves era mestre em inversões. Depois de passar parte da vida lutando para manter o Uruguai anexado ao Brasil, falava em “voracidade espanhola”. Nos manifestos ao povo rio-grandense, não esquecia de dar vivas ao jovem imperador. Apostava todas as cartas ao mesmo tempo. Tratava de aumentar suas chances de ganho.
(Juremir Machado da Silva. História regional da infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras. Porto Alegre, L&PM, 2010.)
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