Por quem os sinos dobram?

Por quem os sinos dobram?

Estudante Assinste Uma Pauta Pelo Celular Enquanto Escreve Em Um Caderno.

 

Por quem os sinos dobram?

Gustavo Neves

Depois de tantos acontecimentos, o ano de 2020 vai terminando. O findar de um ano é tradicionalmente um importante rito de passagem e de mudança de ciclo. Nos renovamos em nossas esperanças, reabastecemos nossas expectativas, fazemos promessas mirabolantes e temos a oportunidade de fazer um balanço do ponto em que estamos, em relação ao ponto em que gostaríamos de estar.

Como diria Drummond, “no meio do caminho, tinha uma pedra” e este ano ficará registrado na história, como aquele em que fomos assolados por uma pandemia. De fato, não foi a primeira, mas com toda a certeza, foi a mais ricamente registrada e globalmente vivenciada. Uma doença potencialmente letal, provocada por um vírus, obviamente impactou (e ainda impacta) o cotidiano em diversas localidades mundo afora. Nós não estivemos e não estamos imunes a isso.

Também é verdade que a pandemia não foi esperada por nenhum governante. Não foi planejada e nem sequer havia protocolos que nos direcionassem em situações como esta. No mundo todo, este momento representou um desafio sem precedentes. Todos nós, sem distinção, tivemos de nos reinventar. E sejamos honestos, nem todas as “reinvenções” funcionaram.

Ser professor em 2020, foi algo especialmente inquietante. Decretada a pandemia, migramos para o ensino remoto. Com alguma dificuldade, mas dispondo de recursos, a rede privada de educação conseguiu seguir adiante. Não sem problemas, mas seguiu. Por outro lado, na rede pública, os danos parecem atravessar o tempo. Em Minas Gerais, por exemplo, o Governo do Estado promoveu uma série de ações que tinham por objetivo, garantir o acesso dos alunos à educação. O plano de emergência podia até ser bem intencionado, mas é notório que não conseguiu alcançar seu objetivo.

Foi desenvolvido um Plano de Estudo Tutorado (PET), com aulas transmitidas pela TV e pela internet. Na teoria, tais canais alcançariam a totalidade dos alunos ou um número expressivo e bem próximo do total. Na prática, elementos da realidade e da pobreza deixaram claro que não estamos nos referindo a uma diferença entre os modelos público e privado. Estamos tratando de um abismo.

O programa de TV desconsiderou o fato de que boa parte dos alunos não habitam casas espaçosas e confortáveis. Vale lembrar que, o confinamento não esteve restrito aos estudantes da rede pública, mas foi sugerido para toda a sociedade. Nossos alunos passaram então, a conviver muitas horas do dia, com outros familiares em casas apertadas. Por vezes, num mesmo cômodo, estava o estudante tentando assistir a aula, com a avó noutro canto, ouvindo rádio, acompanhando o louvor da igreja, enquanto a irmã mais velha, ouve música alta para arrumar a casa. Uma casa cheia de gente e de incertezas.

Pensando nisso, foi dada a dimensão da mobilidade. O aluno poderia acompanhar as aulas pelo telefone celular e teoricamente, poderia fazê-lo em qualquer outra localidade. Bastava que tivesse acesso à internet. Esqueceram, porém, que no Brasil, segundo um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), apenas 61% dos lares estão conectados à rede mundial, e que quando consideramos o recorte econômico, nas classes C e D, o número de pessoas conectadas despenca para 42%. Este aluno precisa possuir um smartphone e um bom plano de internet. Mais que isso, precisa dispor de espaço tranquilo, estar alimentado, com materiais adequados e minimamente motivado.

Depois de tantas condicionantes, há de se concordar que o resultado não poderia mesmo ser alcançado. E pasmem, o Governo parece ter compreendido esta falha. Mas, na tentativa de reorganizar o caos, a emenda saiu pior que o soneto. A Secretaria de Educação elabora uma série de atividades a serem desempenhadas agora pelos professores, (os mesmos que não foram ouvidos nem consultados durante todo o distanciamento social) e que em pleno dezembro, precisam se desdobrar, para localizar os alunos e tentar extrair deles, alguma atividade, algo que comprove que em algum momento, este estudante pelo menos tentou fazer uma única tarefa outrora sugerida. E isso, garantiria ao aluno carga horária e aprovação para o ciclo seguinte. Mas, para quê? Seria essa medida, que poderia recompor efetivamente as perdas ocorridas após período tão longo?

É importante sinalizar que, como professor, por mais absurdo que pareça, não sou contrário à aprovação total e indiscriminada de TODOS os estudantes. Não por mérito, mas por puro reconhecimento. O ano letivo foi interrompido por motivo de força maior. Naquele momento, era importante priorizar e preservar a vida. E isso foi feito. Considerando os estudos avançados e a vacina que já se anuncia. É provável que em 2021, tenhamos a oportunidade de promover outro ano atípico, desta vez, compactando um pouco as aulas para comportar os conteúdos do período anterior e do próximo. Não é o ideal, mas é o que pode ser feito sem que precise criar um ambiente tão desgastante em um momento em que ninguém mais parece ter forças para reunir tantos elementos meramente burocráticos.

Finalmente, se o ponto em que estamos não é o melhor, talvez fosse a oportunidade de estarmos organizados, elaborando medidas efetivamente concretas, que viabilizassem um retorno seguro e verdadeiramente comprometido com a recuperação das eventuais perdas que inevitavelmente ocorreram. Incentivar, ensinar, acreditar e educar, são tarefas genuinamente complexas e que só podem ser desempenhadas por um professor. Alguém que compreende a dinâmica de uma sala de aula, de dentro para fora. Estamos sempre ouvindo que o futuro da nação se dará pela educação. Diante de tantos obstáculos, desconfio que não é por nós que os sinos dobram!

Gustavo Silva Neves

 

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