PPP da educação estadual volta ao TCE

PPP da educação estadual volta ao TCE

PPP da educação estadual volta ao TCE sob críticas de especialistas e diretores de escolas

Proposta que repassa reformas e manutenção de 99 instituições está paralisada desde dezembro, quando uma cautelar do Tribunal de Contas apontou falta de critérios na escolha das escolas, lacunas de fiscalização e comprovação da vantagem do projeto. Pauta volta a julgamento na próxima semana

Por Valentina Bressan   Publicado em:

 

Na E.E.E.F. Venezuela, salas de aula estão interditadas desde um destelhamento de 2020
| Foto: Clarissa Pont

A direção da Escola Estadual de Ensino Fundamental Venezuela recebeu com surpresa a notícia de que havia sido selecionada para se tornar uma das escolas-modelo do projeto de parceria público-privada (PPP) da educação do governo Eduardo Leite (PSD). “Não fomos consultados em nenhum momento”, conta a diretora Maria Kátia Baptista.

Caso o projeto avance, o objetivo é que a Escola Venezuela, no bairro Medianeira, em Porto Alegre, e outras 17 instituições do Rio Grande do Sul se tornem instituições de ensino médio em tempo integral. 

Desde dezembro de 2024, a proposta de conceder a reforma e a manutenção de 99 escolas (sendo 18 dessas classificadas como escolas-modelo) aguarda julgamento de uma medida cautelar do Tribunal de Contas do Estado (TCE), Uma auditoria identificou uma série de problemas no edital, como insuficiência na comprovação das vantagens da proposta, problemas de ausência de previsão de fiscalização do contrato, escolas em terrenos não regularizados, falta de comprovação dos critérios para selecionar as escolas da lista e violação da autonomia pedagógica.

O tema volta à pauta em 4 de novembro, quando a conselheira Ana Moraes, que havia pedido vistas, apresenta seu voto. O conselheiro Roberto Loureiro votou pela derrubada da cautelar, enquanto Estilac Xavier, o relator, foi na direção contrária. Se a cautelar for mantida, novos recursos podem ser apresentados pelo governo.

Violação da autonomia pedagógica

Para a diretora da Venezuela, a inclusão na PPP não é solução para os problemas de infraestrutura enfrentados. Desde 2020, ela aguarda obras para consertar um destelhamento no prédio da escola. Por causa do problema, somente sete salas de aula podem ser usadas; outras 12 estão interditadas. “Ficamos matando cachorro a grito, usando verbas para, literalmente, tapar buraco. Estou aqui há 24 anos, essa escola é minha vida e quero vê-la em pé de novo. Tínhamos quase mil alunos, hoje são 200, porque não tem espaço físico”, lamenta. 

Maria Kátia Baptista acredita que, por trás da PPP, está o plano de acabar com o ensino fundamental na escola. “Hoje trabalhamos do primeiro ao nono ano. Na frente da escola, fica o colégio Costa e Silva, que está sem espaço físico. Para nós, a intenção é que nossa escola seja adequada para o ensino médio, para que os alunos do Costa venham para cá”, explica.

Na audiência realizada no TCE, o governo do estado disse que a PPP liberaria os diretores da função de gerir demandas não pedagógicas, como reformas, dedicando-se mais ao ensino. Esta, porém, não é a opinião de diretores e especialistas ouvidos pela Matinal. “Ninguém melhor que a gente, equipe, professores, famílias, para saber do que a gente precisa. Tenho receio de que, daqui a pouco, eles se envolvam no pedagógico”, diz a diretora da Venezuela. 

O Rio Grande do Sul é pioneiro na gestão democrática do ensino: em 1995, o estado aprovou uma lei que versava sobre a autonomia dos estabelecimentos de ensino. Em 2024, uma nova lei foi aprovada pela Assembleia Legislativa, definindo a “autonomia dos estabelecimentos de ensino na gestão pedagógica, administrativa e financeira, observadas as diretrizes da Secretaria da Educação e disposições legais vigentes”.

Além da equipe diretiva, composta por diretor e vice-diretor, o conselho escolar participa da administração das unidades escolares. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) também reforça a garantia de gestão democrática das instituições de ensino. 

Na ocasião do julgamento sobre a PPP no TCE, a procuradora do estado Lívia Sulzbach afirmou que não haverá interferência na educação. “A concessionária não será gestora da unidade escolar, só responsável pelo provimento de serviços não pedagógicos, inclusive sob demanda da direção. 

Em nota enviada à Matinal, a Secretaria da Reconstrução Gaúcha (SERG) reforçou a fala da procuradora. Segundo a pasta, essa responsabilidade seguirá sendo da Secretaria de Educação (Seduc). 

“O parceiro privado ficará encarregado de requalificar a infraestrutura das escolas e prestar serviços de apoio, que não interferem nas atividades pedagógicas, tais como: conservação e manutenção predial, conectividade, zeladoria, higiene e limpeza, segurança e vigilância, jardinagem e controle de pragas, fornecimento de utilidades, gestão de resíduos sólidos e fornecimento de mobiliário e equipamentos”, informou.  

Sem divisões

Para pesquisadores em educação, no entanto, além de ferir as leis federal e estadual de autonomia escolar, não há como desvincular a gestão do espaço físico da dimensão pedagógica. 

“A educação não é só professor, alunos e quadro. É o conforto ambiental, salas específicas, espaços recreativos e de educação física. A escola é que define o que é prioridade dentro de seu projeto pedagógico: o que precisa reformar, comprar, quais equipamentos”, explica Maria de Fátima Cóssio, professora de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

A professora afirma ainda que a fiscalização da PPP contribui para a violação da gestão democrática. O projeto prevê que a(s) empresa(s) selecionada(s) seja(m) responsável(is) por definir um instituto de pesquisa independente para avaliar, por amostragem, o avanço dos serviços. 

“Uma obra pública sem gestão direta do setor público é uma forma de privatização, mesmo que indireta, porque a comunidade escolar fica sem ingerência sobre essa gestão. A empresa privada decide, avalia, executa e monitora. O papel da escola é anulado, o diretor se torna um gerente para cumprir tarefas, e o professor deixa de ser um intelectual. Com isso, o aluno não é mais protagonista da educação, mas objeto dessas políticas”, sintetiza a especialista.

Fátima Cóssio liderou uma pesquisa na UFPel que investigou o avanço de PPPs em escolas públicas municipais em todos os 497 municípios do estado. O mapeamento, que teve contribuições também da UFRGS e da Universidade Federal de Rio Grande (Furg), gerou um banco de dados aberto

A conclusão é que predominam parcerias ligadas à questão pedagógica, como contratos para oferta de vagas na educação infantil; assessoria em gestão educacional; formação de professores; e material didático.

“Identificamos que os municípios de pequeno porte são os que mais firmam parcerias. Cada vez mais, surgem novas instituições privadas, de pequeno porte, que tentam obter recurso público e estão focadas em intervir nas políticas, como definidores em vez de executores”, pontua a pesquisadora. 

Sobre a fiscalização dos serviços na PPP estadual, a SERG informou, por meio de nota, que a atribuição “continuará sendo da Seduc, com o apoio de um verificador independente”. Segundo a secretaria, a remuneração do parceiro privado será de acordo com o seu índice de desempenho. 

“A SERG vem prestando esclarecimentos e informações sobre a PPP da Educação ao TCE-RS desde que foi acionada pelo órgão, em junho de 2024.  

Cabe mencionar, em relação à atuação do Tribunal, que foi concluída a análise técnica do projeto pelo Serviço de Auditoria do TCE-RS com a indicação de que não há óbice (obstáculos) para o lançamento do edital. Recentes PPPs com a mesma modelagem, em Porto Alegre e Caxias do Sul, estão com seus processos em andamento. Sobre a hipótese de uma possível manutenção da cautelar do Tribunal, a pasta prefere não se manifestar, no momento.”

Modelo pode agravar evasão escolar

Outro fator que preocupa diretores e especialistas é a evasão escolar. Ao selecionar escolas para implementar o ensino integral sem diálogo constante com a comunidade escolar, o governo pode aumentar o já preocupante abandono no ensino médio.

De acordo com a própria Seduc, mais de 43 mil alunos da rede estadual têm risco alto ou crítico de evasão. O dado parte de um monitoramento realizado pela pasta em 859 escolas.  

Essa também foi a visão compartilhada pelo conselheiro do TCE Estilac Xavier em seu voto pela manutenção da cautelar. “A Seduc [Secretaria da Educação] afirma que a PPP não interfere na autonomia, mas um exemplo que mostra a interferência é a instalação de módulos. O propósito é que essas escolas adotem o ensino integral”, disse Estilac. “Mas as escolas não foram consultadas: na audiência pública, um diretor disse que isso é preocupante porque, na contramão do que a Seduc afirma, o ensino integral pode levar à evasão dos alunos de ensino médio, em vulnerabilidade, que precisam trabalhar.”

Para o conselheiro, essa questão evidencia como a gestão administrativa está associada à gestão pedagógica. “A forma como são destinados os espaços físicos da escola reflete na formação dos alunos”, disse. 

Segundo a pesquisadora Fátima Cóssio, a discussão do ensino integral não está concluída. “Percebe-se um aumento considerável da evasão. A maioria dos estudantes precisa trabalhar, formal ou informalmente. É uma questão de sobrevivência”, observa. “Os projetos como o Pé de Meia e o Todo Jovem na Escola não são suficientes para manter esses jovens na escola”, acrescenta  Mateus Saraiva, professor de Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Outro ponto não contemplado pela PPP é a falta de professores para assumir as atividades previstas com o turno integral. Nas escolas-modelo, onde planeja-se implementar um ensino integral, está prevista a instalação de vários módulos, como sala maker, sala de vivências, ateliê de artes, sala esportiva, entre outros.

“Mesmo se as comunidades participassem da definição dos projetos, é o estado que precisa materializar a escola desejada”, diz Saraiva. “Se vou instalar um módulo para aulas de dança, a pergunta é: vai ter um concurso do estado para professor de dança? É um problema de origem, não há a perspectiva de uma escola que integre, realmente, arte, cultura e conhecimento”, explica. 

Para Rosane Zan, presidente do Cpers – Sindicato dos Professores do Estado, as escolas integrais devem oferecer alternativas aos estudantes. “Vemos exemplos de evasão em escolas rurais. Quando a escola se torna integral, os alunos evadem porque precisam ajudar a família na agricultura. Uma opção seria ter aulas em apenas um dos turnos paralelamente, para contemplar os alunos que não podem participar das aulas em tempo integral”, sugere Zan. 

Valentina Bressan

Repórter investigativa na Matinal. Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Já publicou nas revistas Veja Saúde, Viagem & Turismo e Superinteressante. Contato: valentina@matinal.org

FONTE:

https://www.matinal.org/reportagem/ppp-da-educacao-estadual-volta-ao-tce-sob-criticas-de-especialistas-e-diretores-de-escolas/ 




ONLINE
36