PPP de Eduardo Leite
PPP de Eduardo Leite para reforma das escolas não prioriza as mais vulneráveis
Alunos do Julinho, como é conhecido pela comunidade escolar, não podem acessar o terceiro andar desde o início do ano
“Não temos perspectiva para voltar a usar esse andar. A promessa, informal, era de que as obras durariam nove meses, mas já é setembro. A cada chuva, a obra do telhado para novamente”, diz o vice-diretor Daniel Damiani.
Os problemas de infraestrutura na escola que formou Leonel Brizola e Moacyr Scliar são comuns a pelo menos outras 20% das instituições estaduais. O levantamento mais recente da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa aponta que 505 escolas estaduais relataram necessidades de reformas (nesta época, 22 estavam interditadas) – o número subiu desde 2023, quarndo eram 334.
Mas o tradicional Julinho é apenas uma das diversas escolas precisando de reformas que ficaram de fora da lista de 99 escolas a serem reformadas com a parceria público-privada lançada pelo governador Eduardo Leite (PSD) em julho do ano passado. Em audiência pública realizada em agosto de 2024, professores e diretores questionaram por que suas escolas, enfrentando condições precárias, foram excluídas da seleção. Utilizando o Inse, o indicador socioeconômico elaborado pelo Ministério da Educação (MEC), um cruzamento feito pela Matinal revela que somente dez escolas selecionadas (10%) constam no ranking das instituições com os piores índices socioeconômicos. Por outro lado, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) incluiu o cobiçado colégio Tiradentes na lista da PPP, que ocupa o topo na lista de aprovados no vestibular quase todos os anos.
A falta de critérios para a seleção das escolas a serem incluídas na PPP chamou a atenção de auditores do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e do Ministério Público de Contas (MPC). Em dezembro, cinco meses após Leite ter lançado o projeto da PPP, o conselheiro do TCE Estilac Xavier emitiu uma medida cautelar, em que pediu esclarecimentos à Seduc e impediu a publicação do edital. A pasta apresentou recursos, mas, em relatório de julho de 2025, o conselheiro manteve a decisão com tutela de urgência, intimando o envio de mais documentos. O MPC enviou uma representação ao TCE, e também segue processo próprio de avaliação do projeto.
A PPP pretende reformar 4% das escolas estaduais em um contrato de 25 anos, orçado em mais de R$ 4 bilhões. Nesta terça-feira (16), os conselheiros do TCE devem julgar o caso.
A Matinal teve acesso a trechos do documento da auditoria minuciosa do tribunal, que irritou o governador. Em um almoço no Palácio Piratini, Leite fez pressão sobre os conselheiros para liberarem a PPP. “Estamos pedindo que levante essa restrição para que a gente possa lançar o edital, porque estamos falando de um investimento próximo de R$ 1 bilhão em 99 escolas que estão nas regiões mais vulneráveis do estado”, disse em frase reproduzida por Zero Hora.
O edital da PPP de reforma das escolas estaduais é assinado pela SP Parcerias, empresa paulista que também ficou responsável pelo edital de concessão do Gasômetro, suspenso pela Justiça Federal em agosto. Um dos problemas que baseou a suspensão do edital do Gasômetro é o fato de que a prefeitura da Capital não tem a posse sobre o imóvel. No caso da PPP das escolas, o TCE apontou que das 99 instituições selecionadas, 46 ficam em imóveis de propriedade municipal – ou seja, não pertencem ao estado. Dessas, 33 nem sequer têm termos de cessão de uso.
Seduc usou índice de segurança pública não transparente
A análise feita pelo TCE e pelo MPC aponta desconhecer os critérios que o governo Leite usou para eleger as escolas da PPP. Índices de nível socioeconômico e listas da própria Seduc não foram mencionados como parte dos critérios, conforme indica a auditoria.
Nem mesmo a lista que o próprio governo apurou sobre as escolas mais vulneráveis foi usada para elaborar a da PPP. Em fevereiro de 2023, Eduardo Leite apresentou um diagnóstico próprio: dentre as 2.311 escolas estaduais, havia 176 escolas em situação urgente para reformas, com risco de não conseguir iniciar o ano letivo. Outras 1.898 escolas tinham necessidades graves e complementares, como reformas hidráulicas e elétricas ou obras paralisadas. Somente 99 escolas não tinham necessidade de reforma naquele momento.
A solução apresentada naquele momento foi encaminhar R$ 30 milhões extras para o programa Agiliza, voltado a reparos pouco complexos. Desse dinheiro, só R$ 3 milhões seriam reservados para as 176 escolas em situação urgente.
O valor apresentado em 2023 é bem menor do que este que Leite pretende agora destinar à iniciativa privada. Estão previstos mais de R$ 4,3 bilhões para a empresa, nacional ou estrangeira, que arrematar o leilão da PPP, distribuídos em parcelas de contraprestação anuais de quase R$ 200 milhões.
O conselheiro do TCE solicitou à Secretaria de Obras gaúcha uma relação da estrutura das escolas para avaliar se a seleção atendia as instituições mais necessitadas, mas não recebeu o documento até a publicação do relatório de julho. A Matinal também solicitou à Seduc a lista elaborada pelo governo em 2023, mas não recebeu até a publicação desta reportagem.
“Não foi enviada a este Tribunal a relação completa das escolas estaduais, em ordem decrescente de grau de comprometimento de estruturas e necessidade de reformas, demanda para a qual a Secretaria da Educação e a Secretaria de Obras foram intimadas a responder, mas não apresentaram resposta”, afirma o conselheiro Estilac Xavier no documento ao qual a Matinal teve acesso. “Assim, escolas com prioridade de reformas podem ter sido excluídas do projeto, assim como outras com menor necessidade de obras podem ter sido incluídas, como se verifica, a título exemplificativo, o Colégio Tiradentes da Brigada Militar.”
A comissão de educação da AL, presidida pela deputada Sofia Cavedon (PT), averiguou a lista de escolas indicadas à concessão via PPP. O projeto de monitoramento de obras escolares da comissão acompanhou 60 das 99 escolas listadas. Entre essas, 15 não apresentavam problemas estruturais. “O governo do estado diz que vai cuidar das instituições mais precárias, mais vulneráveis, mas, na verdade, não usa esse critério. Mesmo com fiscalizações, o que vemos durante todo o governo Leite é que as empresas abandonam obras, fazem mal feito”, afirma Cavedon.
Em maio, o Cpers também divulgou um dossiê próprio, após a visita a 429 escolas em todo o Rio Grande do Sul, com relatos alarmantes. Em uma das visitadas, a escola indígena de Ensino Fundamental Adalirio Lima Siqueira, em Passo Fundo, os alunos assistem às aulas em salas improvisadas em barracos de lona, sem iluminação. Já a escola Padre Fernando, em Roca Sales, permanecia fechada desde a enchente, e as aulas ocorrem nas dependências da Igreja Matriz São José. Nenhuma dessas escolas está incluída na lista da PPP de Leite.
O RS Seguro, conforme consta na página do governo, usa como base indicadores de violência nas cidades. Mas, no programa de PPP, não há clareza dos números usados para escolher as escolas.
Para especialistas, índices de segurança pública podem não ser os mais acurados para definir políticas públicas da educação. “Podemos usar vários critérios para atestar vulnerabilidade nas escolas. O Inep tem um índice socioeconômico, que avalia quais são as escolas com alunos com menor renda, qual a formação dos pais. Em geral, as escolas mais vulneráveis são as de ensino fundamental, na periferia. Não me parece o perfil de escola selecionada (na PPP)”, diz o professor Mateus Saraiva, da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Para a professora Maria de Fátima Cóssio, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o governo precisa dar um passo atrás para conhecer a realidade das escolas, antes de lançar um edital como o da PPP. “Sem dúvida, a questão da vulnerabilidade é importante. Há certa lógica em pensar que algumas áreas vulnerabilizadas apresentam mais criminalidade, mas considerar isso uma regra é um absurdo. O critério deveriam ser as condições objetivas das escolas. Então, que se faça um levantamento das escolas que estão em condições de maior precariedade na infraestrutura”, pontua.
O Inse, índice do Inep, avaliado a cada dois anos, se baseia em dois critérios principais: a escolaridade dos pais dos alunos e os bens e serviços aos quais a família tem acesso, como geladeira, wi-fi, computador ou mesa de estudos. O Inse mais recente é referente a 2021, resultado de questionário aplicado entre os alunos do 5º e do 9º anos do ensino fundamental e da 3ª e da 4ª anos do ensino médio, de todas as escolas públicas.
Os valores são distribuídos em uma escala de oito níveis: escolas classificadas no nível I têm a maioria dos alunos sem acesso aos itens listados e com mais baixa escolaridade dos pais; já no nível VIII, a maior parte dos estudantes tem acesso aos bens e serviços, assim como pais, com escolaridade mais elevada.
No Rio Grande do Sul, 1.858 escolas estaduais participaram do último levantamento. A maioria das instituições ficou enquadrada no nível V: aqui, a maioria dos alunos respondeu ter uma geladeira, dois ou mais celulares com internet, carro, mesa para estudar, wi-fi, etc. A escolaridade dos pais nesse nível varia entre ensino médio e superior completo (para a mãe ou responsável) e ensino fundamental ou médio completo (para o pai ou segundo responsável).
A Matinal hierarquizou as escolas estaduais gaúchas de forma decrescente conforme o Inse de 2021 e elaborou um ranking das 99 escolas com os piores índices socioeconômicos. Fizemos, então, um cruzamento com a lista das escolas contempladas pela PPP do governo. Somente 10 das 99 escolas da seleção constam na lista dos piores Inse. Algumas escolas não constam no Inse de 2021, nesses casos, usamos o número de 2019. Confira a tabela completa aqui.
Conselheiro aponta outras irregularidades no projeto
Os critérios de seleção das escolas para a PPP são apenas um dos aspectos levantados pelo TCE. Outro problema está na comprovação sobre as vantagens de se contratar uma empresa privada para assumir as obras em vez do estado. Segundo o conselheiro Estilac Xavier, o projeto apresentado por Leite se apropria de referências “inválidas” para um projeto deste porte na educação gaúcha. Os percentuais usados para justificar a vantagem da PPP partem de um estudo sobre obras públicas municipais em Belo Horizonte (realizadas de 2009 a 2014) e outro sobre custos de obras públicas da União feitas de 2008 a 2015 (esse último inclui na avaliação grandes obras, como terminais pesqueiros, portos e adutoras, por exemplo).
Na liminar, Xavier considerou que a Seduc não se ateve à ciência para atestar os benefícios para a educação com a PPP. “[…] a extrapolação dos argumentos presentes no artigo para o caso específico do projeto de PPP em exame se dá por conta da Seduc, à revelia de métodos científicos mínimos para tal propósito”. O documento ainda questiona o uso de “custos de oportunidade” para basear o projeto –
no parecer ao qual a Matinal teve acesso, estes indicadores servem para investimentos privados, e não para obras públicas. “Diferentemente de uma escolha privada sobre a decisão de investir, o retorno esperado não é maximizar retornos econômico-financeiros, e sim prover a infraestrutura e serviços necessários às escolas”, explica, no texto.
Anexado ao processo do TCE, há ainda um pedido do procurador-geral do Ministério Público de Contas (MPC), Ângelo Borghetti, para que seja instaurada uma Auditoria Operacional na Seduc para acompanhar o projeto de PPP. O objetivo seria o de examinar como a secretaria tem se articulado com a pasta de Obras, as coordenadorias regionais e as escolas para estabelecer as reformas.
O texto ainda destaca a deficiência no planejamento e governança entre a Secretaria da Educação, as coordenadorias regionais e as escolas. O procurador requereu uma análise dos programas de governo Escola Padrão, Agiliza Educação e Lição de Casa, assim como a contratação simplificada e os recursos destinados via autonomia financeira. O programa Escola Padrão, que previa reformar 56 instituições, foi descontinuado sem entregar qualquer obra. Eram previstos R$ 72 milhões para as melhorias.
Sofia Cavedon apresentou denúncias ao MPC e ao Ministério Público sobre os processos de contratação simplificada na educação. “Vemos que, nesses processos sem licitações, as construtoras maquiam as obras, param. Há casos em que levaram telhas de uma escola para outra, para disfarçar. Como este projeto vai chegar aos 25 anos? O governo não dá conta sequer de avaliar a qualidade de obras corriqueiras”, aponta a deputada.
O Julinho é, de novo, exemplo das falhas de fiscalização das obras. Segundo o vice-diretor, Daniel Damiani, as obras do telhado estão paradas há meses. “Sequer solicitamos a reforma do andar, somente do telhado. A obra ficou totalmente parada, aí trouxeram telhas de outra escola para cá. Dez dias depois, tiraram daqui. Estão fazendo obras como pintura de paredes, e o telhado segue parado”, descreve.
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