PPP, risco de interferência nas escolas
Pesquisadores apontam risco de interferência nas escolas com modelo de PPP proposto por Melo

apoio do secretário da educação, Leonardo Pascoal (à direita) | Foto: Mateus Raugust/PMPA
A prefeitura de Porto Alegre espera aprovar ainda em 2025 a PPP da Escola Bem-Cuidada, um dos 14 projetos do Plano de Parcerias Público-Privadas anunciado em abril pelo prefeito Sebastião Melo (MDB). Voltada para uma secretaria marcada por escândalos de corrupção recentes, a iniciativa propõe a contratação de empresa ou consórcio que ficará responsável pela construção, reforma, manutenção e prestação de serviços não pedagógicos nas 100 escolas da rede municipal.
Especialistas em educação ouvidos pela Matinal criticam a proposta de PPP para escolas da capital, que abre caminho para interferências no processo de aprendizagem e pode ser classificada até mesmo como um ataque à democracia.
A meta da gestão Melo é que a empresa selecionada no edital passe a atuar nas escolas ainda em 2025. Em maio, quando questionado pela vereadora Karen Santos (PSOL) a respeito do detalhamento dos valores a serem aportados, Melo informou que a questão seria respondida apenas no edital, pois a informação “ainda se encontrava sob restrição”. Questionada sobre quando o edital será publicado, a Secretaria Municipal de Parcerias não retornou o contato.
Prefeitura fala em desburocratização
Na perspectiva da prefeitura, o embasamento para a PPP é a centralização de contratos, uma forma de otimizar o atendimento aos estudantes. O Executivo acredita que a parceria tem potencial para garantir a manutenção com regularidade das demandas das instituições de ensino. “É uma forma moderna e menos burocrática para a infraestrutura da educação”, afirmou em 2023 o então vice-prefeito e secretário interino da Educação, Ricardo Gomes, quando o projeto foi apresentado. Gomes é ligado à produtora Brasil Paralelo, plataforma de conteúdo conservador com foco em educação, envolvida em episódios de desinformação.
Pela PPP, as atuais 100 escolas da rede municipal seriam divididas em três blocos – Sul, Norte e Centro. O contrato vai prever a manutenção de futuras 10 instituições de ensino, além das já existentes. Os eventuais interessados competirão por cada lote por meio de concorrência pública, com o critério de menor valor de contraprestação a ser pago pelo município. Ou seja, vence o leilão quem requisitar menos valores públicos para realizar o serviço.
Cada lote tem pouco mais de 30 escolas. Conforme o plano da PPP, a contraprestação máxima que a prefeitura se dispõe a pagar mensalmente é de R$ 8,37 milhões ao bloco Sul, R$ 6,5 milhões ao Centro e R$ 7,3 milhões ao Bloco Norte.

Divisão de território dos blocos das escolas
O tempo de contrato está estipulado em 20 anos, período de cinco gestões municipais. Na documentação anexa ao contrato e disponível no site da prefeitura, o município cita que o período segue parâmetros legais e viabiliza “a amortização dos investimentos de construção e manutenção feitos” pelo eventual parceiro privado.
A estruturação da PPP foi feita pela SP Parcerias, sociedade de economia mista integrante da Administração Pública Indireta do município de São Paulo, cujo foco é estruturar e desenvolver projetos de concessão, privatização e parcerias público-privadas. Em São Paulo, tanto na capital quanto no estado, avançam projetos de privatização de escolas públicas.
“Tudo é pedagógico numa escola”
A comunidade escolar de Porto Alegre critica a proposta de PPP, alegando que a iniciativa vai influenciar na questão pedagógica. “Não tem como separar”, afirmou Ângela Chagas, doutora em educação e pesquisadora de pós-doutorado UFRGS/CNPq, em entrevista à Matinal. “Tudo é pedagógico numa escola, inclusive a parte administrativa-financeira”, complementou ela, citando a experiência da capital paulista. “Em São Paulo foi feito um leilão de PPPs em escolas com o mesmo argumento de que seria só na parte administrativa e quem venceu um dos lotes foi um consórcio que faz gestão de cemitérios. É isso que queremos para as nossas escolas?.”
A pesquisadora disse que vê semelhanças do projeto de Porto Alegre com o que vem ocorrendo na esfera estadual: “Existe um projeto sistemático de precarização da educação pública que tem servido para legitimar a privatização das escolas”, apontou. A precarização citada por ela passa pela desvalorização de professores e pela burocracia por meio de plataformas. “Se investe em tecnologias, sem ao menos ter rede elétrica ou internet que dê conta das supostas inovações.”
“Ainda passa por uma desvalorização da escola como espaço de apropriação do conhecimento e de vivência democrática, retirando carga horária de disciplinas fundamentais para o pensamento crítico e impondo uma estrutura curricular padronizada e esvaziada de sentido. Aí sai o resultado do Ideb ruim, e a bala de prata dos governantes é fazer PPP, como se privatizar fosse garantir qualidade”, complementou Chagas.
“Sequestro da autonomia”
Professor de filosofia e ex-vice-diretor de uma escola na rede municipal, André Pares reiterou que a iniciativa privada tem como objetivo a busca do lucro e não a responsabilidade social. Para ele, a boa qualidade do ensino é baseada no respeito aos servidores e boas condições de trabalho, “sem defasagem de 34% no seu salário, como é o caso de servidoras e servidores da educação hoje, em Porto Alegre”, criticou. A demanda de 34% foi defendida pelos municipários na última greve, em abril. O cálculo se dá por perdas ocorridas desde 2016. A paralisação, porém, foi encerrada em um acordo de 4,84%.
Pares também frisa que a PPP significaria colocar “mais uma empresa” dentro das escolas. “São pelo menos cinco empresas dentro das escolas públicas de Porto Alegre: uma que contrata cozinheiras, outra que contrata auxiliares de cozinha, a que contrata serviço de limpeza, outra os vigilantes, além da que contrata os chamados ‘agentes de inclusão’, o que que causou a remoção de monitores concursados das escolas, que já tinham vínculo com crianças com necessidades educativas especiais e suas famílias”, citou. O professor vê nessas condições e na alteração na definição dos diretores de escolas uma interferência da gestão municipal nas instituições de ensino. No início do ano, a prefeitura, embasada por decisão judicial, realizou duas destituições de diretores, que haviam sido eleitos pela comunidade escolar.
O professor também ecoa a definição do caráter pedagógico da infraestrutura, ao contrário do que diz a PPP. “No Campo Social da Educação, estamos permanentemente em um terreno no qual tudo é absolutamente significativo, porque, não bastasse estarmos lidando com pessoas, estamos lidando com pessoas em idades e/ou em contextos de formação de sensibilidades e intelectualidades. Tudo o que se faz, o que se diz, o que se mostra, o que escuta, sobretudo o que se decide, em um ambiente educacional, é educativo. Estamos imersos em relações de aprendizagens, então é preciso, no mínimo, atenção a respeito de todas as ações dentro de uma escola”, explicou. “Ficar à mercê de condições impostas por um agente externo à escola para a manutenção de sua infraestrutura é, evidentemente, uma situação de sequestro do que mais importa para um comunidade escolar: a garantia constitucional do direito à autonomia de suas decisões e ações.”
Simpa alerta sobre fiscal do contrato
Diretora-geral do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa), Cindi Sandri faz coro às críticas de Chagas e Pares. “Para nós, a conta é a seguinte: este secretário (Leonardo Pascoal) está executando a pauta da privatização e, portanto, da entrega da iniciativa privada da educação em Porto Alegre”, afirmou. “Chama a atenção o volume deste contrato. Estão dividindo a cidade em três lotes. Para cada um, um conjunto de empresas que vão realizar este trabalho.”
Outro ponto questionado pela sindicalista foi com relação à figura do fiscal do contrato, chamado formalmente de “verificador independente”, que será contratado pela prefeitura, assim como uma “certificadora de obras”. Apesar de constarem no contrato, ambos não substituem ou afastam a fiscalização própria do município, conforme o documento.
A disputa pelo público e o risco à democracia
Além do debate sobre o efeito imediato da PPP nas escolas, a professora Vera Maria Vidal Peroni, coordenadora do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado em Educação da UFRGS, crê que a lógica de trazer o ente privado ao ambiente público escolar, ao fim, gera consequências à democracia. Isso ocorre, conforme ela, por se tratar de um projeto que afeta a formação da pessoa.
“Não é só uma forma de gestão”, argumentou ela, que enfatiza o caráter pedagógico em todas as estruturas de uma escola. “Trata-se da aprendizagem da democracia, porque a aprendizagem da democracia se dá via democrática”, acrescentou. “Se chegar o privado e ele diz o que fazer – que é o que está acontecendo em escolas –, acaba a gestão democrática. Isso tem consequências muito sérias”, ilustrou ela.
“Estamos disputando qual o projeto societário de construção da democracia, quem é esse sujeito que passa desde zero até os 18 anos na escola”, observou a professora. “A construção da democracia é também um projeto da educação”, acrescentou a professora, que diz perceber o que muitos autores denominam de um processo de “desdemocratização”.
“Isso é quase uma consequência do neoliberalismo”, diz Peroni ao afirmar que houve uma “naturalização do possível”, isto é, tornou-se aceitável lecionar em escolas públicas mesmo sem as melhores condições. “Toda a questão da austeridade fiscal foi sendo naturalizada ao mesmo tempo em que estava se construindo o público”, explicou. Neste contexto, então, cria-se o imaginário de que o privado deve assumir o papel do Estado.
Tal fenômeno é espalhado e não necessariamente novo: “Há muitos anos, vem ocorrendo aquilo que chamamos do privado como política pública. Vários governos têm assumido a administração do Estado tendo como plataforma acabar com o próprio Estado”, pontuou. “Isso ocorre por vários argumentos, como o que o privado é melhor, mais eficiente, que os professores custam muito caro, então seria melhor contratar sem concurso”, citou. “Vem acontecendo um processo de precarização da educação pública e o privado vem assumindo de várias formas.”
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